A tua graça sutil se desfaz na cópula
Os dentes rasgando os lábios
Os olhos enlouquecidos nas órbitas
As mãos arranham meu corpo
O castigo
A tua graça é selvagem
No coito todos os sentidos giram em torno da tua alma de bicho
A fogueira das paixões a que te entregas
Como voluptuosa bruxa
Carrascos irão te buscar no sono
Talvez a culpa lhe guarde uma porção de medo
Mas jamais irá lhe privar do prazer insaciável
Arrasta-me inelutavelmente
Para a embriaguez de por tanto prazer ser fustigado
O gozo que transcende
Torna-se dor
A dor dos sentidos extenuados
O grito
O gemido
Os pedidos suplicantes a Deus, nosso Pai
Quando por fim morremos nos braços um do outro
Caindo no sono letárgico
Com os corpos estendidos em prazeres-dores
O último suspiro da concupiscência louca
De todas as nossas células acasaladas
quinta-feira, dezembro 29, 2005
quarta-feira, dezembro 28, 2005
domingo, dezembro 25, 2005
A bicicleta vermelha
Um velho andando numa bicicleta vermelha. A pequena bicicleta vermelha que eu usava no sítio de vovô, rondando por horas e horas a pequena área da frente da propriedade.
Nem ovo de codorna, catuaba ou tiborna
Não tem jeito não, não tem jeito não
Dando voltas ao redor da enorme amendoeira, o pneu passando por cima das folhas secas, o sagüi danado de lá do galho alto olhando pra mim, e as raízes rasgando a terra. A pequena elevação de areia onde se encontrava uma planta cheia de flores roxas, subindo na montanha, olha só, tô subindo na montanha, as flores batendo no rosto, ah é gostoso demais, descendo, descendo, rápido, rápido, lá vou eu.
Certo mesmo é o ditado do povo
Pra cavalo velho, o remédio é capim novo
Menina, já faz duas horas que você está nessa bicicleta, eita serviço. A flor do pé de laranja, flor feia, sem graça. Vovó na cozinha fazendo o almoço de junto do fogão à lenha. Fogão de roça é bonito demais, queria saber fazer fogo com pedra, que nem os homens das cavernas. Mainha e vovó falando mal da dona do sítio vizinho que não dá banho nos filhos, você precisa ver, filha, o menino se arrastando no chão sujo, o outro com a frauda mijada, sei não, uma porca.
Vovó uma vez me contou de uma história de uma dona que deixou o bebê na rede na porta de casa. Não se pode fazer isso quando se criam porcos. Não é que um porco bem grande devorou o menininho, pobre criança, imagine o quanto não sofreu, e seus berros, buaaaa, buaaa.
Sertão é cheio de bicho, pra tudo que é lado. As rãs gélidas pulando em cima da gente na hora do banho, que a gente toma com água do poço. Buscar a água do poço é tão bom, imagine só eu descendo nessa balde até as profundezas, como será que é lá no fundo, ein? Daqui dá pra ver eu em meio à luz da noite na água negra. Tem alguém aí? Responde: tem alguém aí? A balde voltando, balança, força!
O que se esconde nas telhas à noite e foge de dia? Quem sabe. Há alguns pequenos buracos nas telhas, tomara que não chova, e que barulho é esse na cozinha? Mãe, você tá acordada? Eu é que não vou lá ver.
Foi tão bom passear de bicicleta, a jaca estava gostosa como o quê, será que vovó vai perceber que eu quebrei o abajur de gato dela? Como será que é nadar no poço? Homem bêbo enjoado aquele na cancela pedindo dinheiro pra comprar pinga. Ele tava batendo na mulher, eu ouvi os gritos, aquela que minha mãe disse que era porca, mandando o homem bêbo da cancela parar. Alguns filhos dele vivem carregando baldes bem grandes na cabeça, e ele trabalha numa fazenda até não sei que horas da noite.
Verde da cor do mato, uma cobra verde! Mamãe uma cobra verde no telhado, mamãaae! Acorda, José, uma cobra no telhado. Não acredito, uma cobra? Mata, mata! A gente vai pendurar ela na cerca, ein, ein? Agora deu pra dar cobra nesse sítio, ta beleza, meu Deus! Não posso nem ter sossego. Todo mundo pra lá e pra cá, um aperreio. Tio Augusto matou a cobra com um pedaço de pau e se empertigou todo fazendo cara de que não era grande coisa. Vou levar essa cobra pro laboratório de ciências lá da escola.
Um homem negro e forte sem camisa andando numa bicicleta vermelha, bêbado de álcool e infelicidade, cantando alguma canção em álcoolês, cuidado com o poste. Vermelho e azul, vermelho e azul, caras de desprezo cheias de autoridade em olhares altivos nas janelas do carro, fardas, cacetete, armas. O que foi que eu fiz, doutor, eu sou pai de família. Cê é malandro que eu tô ligado.
Nem ovo de codorna, catuaba ou tiborna
Não tem jeito não, não tem jeito não
Dando voltas ao redor da enorme amendoeira, o pneu passando por cima das folhas secas, o sagüi danado de lá do galho alto olhando pra mim, e as raízes rasgando a terra. A pequena elevação de areia onde se encontrava uma planta cheia de flores roxas, subindo na montanha, olha só, tô subindo na montanha, as flores batendo no rosto, ah é gostoso demais, descendo, descendo, rápido, rápido, lá vou eu.
Certo mesmo é o ditado do povo
Pra cavalo velho, o remédio é capim novo
Menina, já faz duas horas que você está nessa bicicleta, eita serviço. A flor do pé de laranja, flor feia, sem graça. Vovó na cozinha fazendo o almoço de junto do fogão à lenha. Fogão de roça é bonito demais, queria saber fazer fogo com pedra, que nem os homens das cavernas. Mainha e vovó falando mal da dona do sítio vizinho que não dá banho nos filhos, você precisa ver, filha, o menino se arrastando no chão sujo, o outro com a frauda mijada, sei não, uma porca.
Vovó uma vez me contou de uma história de uma dona que deixou o bebê na rede na porta de casa. Não se pode fazer isso quando se criam porcos. Não é que um porco bem grande devorou o menininho, pobre criança, imagine o quanto não sofreu, e seus berros, buaaaa, buaaa.
Sertão é cheio de bicho, pra tudo que é lado. As rãs gélidas pulando em cima da gente na hora do banho, que a gente toma com água do poço. Buscar a água do poço é tão bom, imagine só eu descendo nessa balde até as profundezas, como será que é lá no fundo, ein? Daqui dá pra ver eu em meio à luz da noite na água negra. Tem alguém aí? Responde: tem alguém aí? A balde voltando, balança, força!
O que se esconde nas telhas à noite e foge de dia? Quem sabe. Há alguns pequenos buracos nas telhas, tomara que não chova, e que barulho é esse na cozinha? Mãe, você tá acordada? Eu é que não vou lá ver.
Foi tão bom passear de bicicleta, a jaca estava gostosa como o quê, será que vovó vai perceber que eu quebrei o abajur de gato dela? Como será que é nadar no poço? Homem bêbo enjoado aquele na cancela pedindo dinheiro pra comprar pinga. Ele tava batendo na mulher, eu ouvi os gritos, aquela que minha mãe disse que era porca, mandando o homem bêbo da cancela parar. Alguns filhos dele vivem carregando baldes bem grandes na cabeça, e ele trabalha numa fazenda até não sei que horas da noite.
Verde da cor do mato, uma cobra verde! Mamãe uma cobra verde no telhado, mamãaae! Acorda, José, uma cobra no telhado. Não acredito, uma cobra? Mata, mata! A gente vai pendurar ela na cerca, ein, ein? Agora deu pra dar cobra nesse sítio, ta beleza, meu Deus! Não posso nem ter sossego. Todo mundo pra lá e pra cá, um aperreio. Tio Augusto matou a cobra com um pedaço de pau e se empertigou todo fazendo cara de que não era grande coisa. Vou levar essa cobra pro laboratório de ciências lá da escola.
Um homem negro e forte sem camisa andando numa bicicleta vermelha, bêbado de álcool e infelicidade, cantando alguma canção em álcoolês, cuidado com o poste. Vermelho e azul, vermelho e azul, caras de desprezo cheias de autoridade em olhares altivos nas janelas do carro, fardas, cacetete, armas. O que foi que eu fiz, doutor, eu sou pai de família. Cê é malandro que eu tô ligado.
sexta-feira, dezembro 23, 2005
Quem tem medo de James Joyce?
Bem longe de querer fazer uma análise da obra de James Joyce, o que está a anos-luz da minha capacidade intelectual, venho aqui para romper com o elitismo que ronda Ulisses, mistificando a maior obra da literatura mundial no século XX, e certamente um divisor de águas em termos de narração.
Joyce introduziu a técnica do fluxo de consciência, em que o narrador expõe o monólogo interior do personagem, com lembranças da infância, idéias desconexas, laborando personagens com uma complexidade abismal. Influenciado pela descoberta do inconsciente realizada por Freud, James Joyce arquiteta reflexões e universos oníricos antes jamais vistos na literatura.
A criação de James Joyce encontra o universal no particular, quando ele tem uma obra onde se cristalizam aspectos de uma rígida educação católica na cidade irlandesa de Dublin, ao mesmo tempo em que trata de temas comuns a toda a humanidade.
Ele constrói personagens com mais íntimo de si, tocando a convergência com a consciência humana.
Por que é tão difícil ler James Joyce? Bem, é fato que o autor traz uma gama muito vasta de referências em sua obra-prima Ulisses. Ele usa expressões em latim, anglo-saxônicas, passagens da bíblia, versos de diversos poetas ingleses, uma constante alusão a Hamlet, de Shakespeare, e a outro livro de Joyce, Um Retrato do artista quando jovem, fora que Ulisses é uma paródia da Odisséia, de Homero, e por aí vai. Para completar, o autor chega a ter a audácia de inventar palavras, às vezes asquerosas, como “verdemeleca”, usada em uma passagem por Stephen Dedalus para descrever a cor do mar.
Deixando de lado grande parte dos enigmas de que se encarregarão os especialistas para elucidar a obra de Joyce, nós como meros mortais podemos sim apreciar a arte desse magnífico escritor. Enquanto leio Joyce, percebo que ele não é autor para se ler. É para penetrar nas veias, misturando-se com o sangue e com a alma, perdendo-se no não-lugar da hipnose das palavras que nos aparecem como um sonho em figuras eternas. O próprio James Joyce fala em uma passagem de Ulisses:
“Você acha minhas palavras obscuras. A escuridão está em nossas almas, você não acha? Mais aflautado. Nossas almas, feridas pelas vergonhas de nossos pecados se aferram ainda mais a nós, uma mulher se apega a seu amante, mais e mais”
Joyce declara assim que a obscuridade dos seus dizeres, a forma como seu texto se constrói de maneira abstrusa, é constituído em harmonia com a linguagem das nossas almas envoltas em processos de contradição entre id e superego, “as vergonhas de nossos pecados”, mediados pelo ego. Acredito que a maior riqueza do texto esteja aí, no desafio lançado por Joyce às nossas almas, e não no elitismo castrador e restritivo. Claro que é muito bom reconhecer a relação de Ulisses com outras grandes obras da literatura mundial, mas restringir-se a isso é intelectualismo arrogante que deslegitima os objetivos da autêntica arte sublimatória. A arte que liberta os sentidos no universo do sem fim nem começo na inelutável modalidade das paixões.
segunda-feira, dezembro 19, 2005
Verde, amarelo, vermelho
Minha casa é a rua, rua dos carros que correm com gente suada gritando e buzinando nos sinais. Dos vidros sujos do carro dá pra ver o cansaço, e quando estendo a mão são algumas míseras moedas dadas com displicência e um olhar sutilmente hostil. Verde, amarelo, vermelho, aprendi a contar o tempo no ritmo das cores.
Na padaria, peço dez pães a uma moça gorda com vestido vermelho e óculos na ponta do nariz, escondida atrás do vidro em que está fixado o aviso “fiado só em 3005”. Ela me olha de soslaio deixando os óculos escorregar e quase cair no chão, até levantá-lo com ar de soberba desenhado por uma de suas sobrancelhas erguida.
Vou comer meu almoço na parte onde fica repleta de água suja quando a maré está cheia, mas agora está seca, lá na 13 de julho. Prefiro rasgar a sacola de pães a desfazer os nós porque a fome tem pressa, e como o primeiro pão com medo de que ele fuja. Reconheço os pés sujos em sandálias havaianas pretas gastas, as pernas cheias de hematomas, o short azul, o umbigo grande, os braços fortes, João!
- Me dê esse rango aí vá!
- É o meu almoço.- disse num misto de indignação e medo.
- Tu é ousado mermu né, Zé?
Lutei com todas as forças pra João não tomar o meu almoço. Mordi os dentes, vi minhas veias saltarem no braço. Mas João não estava só, e ele mais seu bando me roubaram aqueles pães bem branquinhos e cheios de miolos, do jeito que eu gosto. Os pães caíram na areia, e eles se lambuzaram de pão e mar. Eu caído no chão chorava de ódio os padecimentos.
Eles eram cinco, e vieram um por um, começando por João, que rasgou o meu short. Eu ali não era homem, com a faca querendo rasgar meu pescoço, eu ali era qualquer coisa sem Deus. Depois eles foram correndo pela areia, rindo e me chamando de viado. Por que João fez isso comigo, se ele sabe da dor, se um dia um corsa fez isso com ele também?
Olha a maré, baixa como o quê, o céu azulado bonito que só onde dizem que está Deus. E ele não tá vendo de lá, não? Ele me largou tão só nesse mundo, qualquer um me pega, me bate, me leva não sei pra onde.
- Que é que você tá fazendo aí, trombadinha? Eu mandei você limpar o vidro do meu carro?
Crônica criada a partir de um relato real contado por minha mãe que viu da sacada do prédio onde trabalha um menino de rua ser estuprado por outros mais velhos.
domingo, dezembro 18, 2005
Rimas de quem
Hoje não quero dizer
Só desdizer
O dito pelo não dito
Palavras feitas de puro querer
Palavras em olhares fontes
Deixando estar fico onde
Eu me deixo
Me permito
Esquecer
Rima bandida, desgraçada
Rima sem véu e sem nome
Assim como a vida que olhei nas cartas
Segue sem rumo com o céu no horizonte
Segue cantando para o sol da noite
Finda e renova no sonho de ontem.
Só desdizer
O dito pelo não dito
Palavras feitas de puro querer
Palavras em olhares fontes
Deixando estar fico onde
Eu me deixo
Me permito
Esquecer
Rima bandida, desgraçada
Rima sem véu e sem nome
Assim como a vida que olhei nas cartas
Segue sem rumo com o céu no horizonte
Segue cantando para o sol da noite
Finda e renova no sonho de ontem.
sábado, dezembro 17, 2005
Antíteses manoelescas
Sei que fazer o inconexo aclara as loucuras
Sou formado em desencontros
A sensatez me absurda.
Os delírios verbais me terapeutam.
Posso dar alegria ao esgoto (palavra aceita tudo).
(E sei de Baudelaire que passou muitos meses tenso porque não encontrava um título para os seus poemas. Um título que harmonizasse os seus conflitos. Até que apareceu Flores do mal. A beleza e a dor. Essa antítese o acalmou.)
As antíteses congraçam.
Trecho retirado do Livro sobre nada, de Manoel de Barros, falando algo sobre mim.
Sou formado em desencontros
A sensatez me absurda.
Os delírios verbais me terapeutam.
Posso dar alegria ao esgoto (palavra aceita tudo).
(E sei de Baudelaire que passou muitos meses tenso porque não encontrava um título para os seus poemas. Um título que harmonizasse os seus conflitos. Até que apareceu Flores do mal. A beleza e a dor. Essa antítese o acalmou.)
As antíteses congraçam.
Trecho retirado do Livro sobre nada, de Manoel de Barros, falando algo sobre mim.
As cartas de José
Durante muito tempo, eu sempre recebia cartas de José. Ele me escrevia umas três vezes por semana, geralmente no domingo, na quarta, e na sexta. José era um homem de poucas palavras. Existem aqueles que pouco falam porque sintetizam muito e com perfeição as idéias verbalizadas, e há aqueles que escondem seus pensamentos em frases curtas. José fazia parte do segundo grupo.
Ele era um ermitão, com seus trinta e poucos anos não vividos, e morava numa casa amarela cheia de janelas com seu enorme cachorro. Raras eram as vezes em que eu ia no interior visitar José, e eu detestava quando ele dizia não tenha medo de Jack, ele não morde, veja como ele é bobão. Lembro-me do dia em que Zé ganhou Jack de uma antiga namorada dele no seu aniversário, e não sei, com o tempo o cão foi ficando parecido com ele. Aquele cachorro que antes estava sempre pulando e correndo, agora vivia deitado no tapete com os olhos derramados no horizonte.
Quando eu dizia que ia voltar para casa, José inventava doença, deitava na cama e segurava minha mão com triste candura. Ele mergulhava a cabeça no travesseiro fingindo esconder o choro, para que eu o puxasse e acariciasse suas lágrimas. Bebia todos os licores e ia correndo vomitar no quarto onde eu dormia, na minha frente, para me ver limpar o seu vômito no chão como alguém que cuida. José nunca se despedia de mim, ficava olhando para a televisão como se fitasse algo além. Tchau, primo, fique bem.
No domingo, eu recebi uma carta: “Jack está comendo pouco; não sei o que fazer”. Na quinta, eu recebi outra: era uma folha de papel branca de silêncio. O que estava acontecendo? Por que José parou de me escrever? Fiquei muito preocupada e acabei adiantando uma folga só pra ir visitar o meu primo em Caxanguinha.
Chegando lá, ninguém veio atender a porta. Gritei não sei quantas vezes, mas só o vão da noite me respondia. Caminhei auscultando em redor da casa, até que encontrei uma janela indo e voltando pelo vento. Todas as luzes estavam acesas, menos a do quarto onde eu costumava dormir. Quando acendi a luz, encontrei José estendido no chão ao lado de garrafas sem licores e várias caixas de remédio vazias. Jack estava deitado na cama, e se ergueu abruptamente com as pernas bem esticadas e os olhos arregalados. Ele nem pulou em cima de mim, só deitou-se de novo na cama com uma indiferença lúgubre.
Apesar de detestar animais, não tive coragem de deixar Jack sozinho. Trouxe-o para casa contra as vontades do meu marido. Era sempre eu quem colocava a comida para Jack, e com o tempo comecei a amá-lo quando me vi tão preocupada porque ele não queria comer. Certo dia, encontrei-o morto quando voltei do trabalho. Chorei convulsivamente, para surpresa do meu marido, pois eu não havia derramado uma lágrima no enterro de José. Chorei agarrando os seus pêlos, José, por que fez isso comigo, José?
Ele era um ermitão, com seus trinta e poucos anos não vividos, e morava numa casa amarela cheia de janelas com seu enorme cachorro. Raras eram as vezes em que eu ia no interior visitar José, e eu detestava quando ele dizia não tenha medo de Jack, ele não morde, veja como ele é bobão. Lembro-me do dia em que Zé ganhou Jack de uma antiga namorada dele no seu aniversário, e não sei, com o tempo o cão foi ficando parecido com ele. Aquele cachorro que antes estava sempre pulando e correndo, agora vivia deitado no tapete com os olhos derramados no horizonte.
Quando eu dizia que ia voltar para casa, José inventava doença, deitava na cama e segurava minha mão com triste candura. Ele mergulhava a cabeça no travesseiro fingindo esconder o choro, para que eu o puxasse e acariciasse suas lágrimas. Bebia todos os licores e ia correndo vomitar no quarto onde eu dormia, na minha frente, para me ver limpar o seu vômito no chão como alguém que cuida. José nunca se despedia de mim, ficava olhando para a televisão como se fitasse algo além. Tchau, primo, fique bem.
No domingo, eu recebi uma carta: “Jack está comendo pouco; não sei o que fazer”. Na quinta, eu recebi outra: era uma folha de papel branca de silêncio. O que estava acontecendo? Por que José parou de me escrever? Fiquei muito preocupada e acabei adiantando uma folga só pra ir visitar o meu primo em Caxanguinha.
Chegando lá, ninguém veio atender a porta. Gritei não sei quantas vezes, mas só o vão da noite me respondia. Caminhei auscultando em redor da casa, até que encontrei uma janela indo e voltando pelo vento. Todas as luzes estavam acesas, menos a do quarto onde eu costumava dormir. Quando acendi a luz, encontrei José estendido no chão ao lado de garrafas sem licores e várias caixas de remédio vazias. Jack estava deitado na cama, e se ergueu abruptamente com as pernas bem esticadas e os olhos arregalados. Ele nem pulou em cima de mim, só deitou-se de novo na cama com uma indiferença lúgubre.
Apesar de detestar animais, não tive coragem de deixar Jack sozinho. Trouxe-o para casa contra as vontades do meu marido. Era sempre eu quem colocava a comida para Jack, e com o tempo comecei a amá-lo quando me vi tão preocupada porque ele não queria comer. Certo dia, encontrei-o morto quando voltei do trabalho. Chorei convulsivamente, para surpresa do meu marido, pois eu não havia derramado uma lágrima no enterro de José. Chorei agarrando os seus pêlos, José, por que fez isso comigo, José?
quinta-feira, dezembro 15, 2005
Rito de passagem
Há tempos em que a gente vive de acaso
Andando sem olhar para os lados
Como se já soubesse o caminho
Mas na verdade estamos perdidos
E há tempos em que o acaso é deixado de lado
E tomamos o controle das nossas vidas
Mas elas parecem tão pequeninas
Em seu berço leve e frágil
Choramos por já não vivermos mais
Só controlamos
Esperando saltar pelo ar
Mas o ar é mais pesado quando saltamos
Nesses tempos perdemos a inocência, os ideais
Eu comecei passando de acreditar em outros possíveis mundos nesta terra
A não acreditar em nada
Mas eu agarrava o nada como um último suspiro do que eu era
Agora o nada me serve sem que eu saiba
Neste mundo a tristeza é fazer o que não se quer
É estar onde não se encaixa
E sufocar todos os quereres
Para que o eu caiba
Onde fui escolhida para estar
É aí onde morrem os versos
Quando a vida fica sem poesia
Quando a gente se enterra com uma pá de inércia todos os dias
Pra depois alguém nos enterrar
Andando sem olhar para os lados
Como se já soubesse o caminho
Mas na verdade estamos perdidos
E há tempos em que o acaso é deixado de lado
E tomamos o controle das nossas vidas
Mas elas parecem tão pequeninas
Em seu berço leve e frágil
Choramos por já não vivermos mais
Só controlamos
Esperando saltar pelo ar
Mas o ar é mais pesado quando saltamos
Nesses tempos perdemos a inocência, os ideais
Eu comecei passando de acreditar em outros possíveis mundos nesta terra
A não acreditar em nada
Mas eu agarrava o nada como um último suspiro do que eu era
Agora o nada me serve sem que eu saiba
Neste mundo a tristeza é fazer o que não se quer
É estar onde não se encaixa
E sufocar todos os quereres
Para que o eu caiba
Onde fui escolhida para estar
É aí onde morrem os versos
Quando a vida fica sem poesia
Quando a gente se enterra com uma pá de inércia todos os dias
Pra depois alguém nos enterrar
quarta-feira, dezembro 14, 2005
Pequeno retrato
Nunca vislumbrei
No momento exíguo,
No dia contigo,
O dia contíguo
Sempre desprezei
A estrela sinistra,
O falso zodíaco,
A esfera de cristal
E o terceiro aviso
Do galo matinal
Como submeter
O desejo ao fado
Se todo prazer
Ri da cautela,
Ri do cuidado,
Que o quer prender?
Vou despreocupado,
Dora, tão despreocupado,
Que nem sei morrer
Poema encontrado por acaso no dia de hoje no livro de José Paulo Paes.
No momento exíguo,
No dia contigo,
O dia contíguo
Sempre desprezei
A estrela sinistra,
O falso zodíaco,
A esfera de cristal
E o terceiro aviso
Do galo matinal
Como submeter
O desejo ao fado
Se todo prazer
Ri da cautela,
Ri do cuidado,
Que o quer prender?
Vou despreocupado,
Dora, tão despreocupado,
Que nem sei morrer
Poema encontrado por acaso no dia de hoje no livro de José Paulo Paes.
Ele não te ama, mas eu sim, mamãe
Onde está mamãe com os seus gritos? Faz horas que estou aqui embaixo conversando com meus amigos e nada do rosto dela aparecer na janela como uma sombra. Aprendi a amá-la assim, e agora se ela não gritar o meu nome com cólera penso que ela me esqueceu.
Volta e meia enquanto converso eu fito a janela. Um dia desses, ela me deu uma surra de cinto porque saí numa das madrugadas que ela passa de plantão no hospital. Quando me perguntou se o que meu irmão havia dito era verdade, se eu tinha mesmo ido pra um desses shows cheios de putas, malandros, cachaça, neguei, tudo mentira de Daniel. Ela me deu uma surra de mágoas, e a ira com que levantava o cinto imperiosa, era o gesto que reprimia as lágrimas da sua própria dor e a transformava em violência cáustica arrasando minha pele sem dono.
Não chorei enquanto apanhava para não lhe dar o gosto das pancadas. Fui chorar depois escondida no quarto. Ela foi atrás de mim pedindo perdão, e me incomodava tê-la por perto participando da esfera da minha tristeza, coisa tão íntima, e distantes éramos nós. Filha, mamãe não gosta de bater em você, mas você faz raiva à mamãe, não me faça raiva, não. Disse puxando o meu braço como se pra me fazer parar de chorar fosse preciso me dar outra surra.
Depois ela foi chorar no seu quarto. Eu a encontrei vulnerável e estendida em padecimentos naquela cama onde dormia sozinha e havia sido feita pra dois. A imagem daquela mulher amargurada me lembrou a paixão louca que ela sentiu por meu pai. Ah, como o cheiro dele na cama fazia falta para ela, como acordar todos os dias sem ele a deixava com aquele semblante absorto naquelas melancólicas brincadeiras com a comida que iria deixar no prato.
Às vezes meu pai pergunta por ela, querendo saber de sua vida e desejando que esteja mal. Não gosto quando ele faz essas perguntas, quem é ele pra falar mal da minha mãe? Ela que lho dedicou tanto amor, agora tão sofrida em suas palavras me falando pra não amar homem nenhum nessa terra. Ela que agora o odeia, ou odeia a existência dele livre da dela.
Filha, você é a minha vida, o que seria de mim sem você? Eu me preocupo tanto com você porque você é fêmea, minha menina, os outros são uns marmanjos, eles sabem se cuidar. Mas você é tão inocente, e eu não quero que você passe pelo que eu passei, meu amor. Mamãe te ama, viu? Entenda a mamãe, não faça raiva à mamãe...
Volta e meia enquanto converso eu fito a janela. Um dia desses, ela me deu uma surra de cinto porque saí numa das madrugadas que ela passa de plantão no hospital. Quando me perguntou se o que meu irmão havia dito era verdade, se eu tinha mesmo ido pra um desses shows cheios de putas, malandros, cachaça, neguei, tudo mentira de Daniel. Ela me deu uma surra de mágoas, e a ira com que levantava o cinto imperiosa, era o gesto que reprimia as lágrimas da sua própria dor e a transformava em violência cáustica arrasando minha pele sem dono.
Não chorei enquanto apanhava para não lhe dar o gosto das pancadas. Fui chorar depois escondida no quarto. Ela foi atrás de mim pedindo perdão, e me incomodava tê-la por perto participando da esfera da minha tristeza, coisa tão íntima, e distantes éramos nós. Filha, mamãe não gosta de bater em você, mas você faz raiva à mamãe, não me faça raiva, não. Disse puxando o meu braço como se pra me fazer parar de chorar fosse preciso me dar outra surra.
Depois ela foi chorar no seu quarto. Eu a encontrei vulnerável e estendida em padecimentos naquela cama onde dormia sozinha e havia sido feita pra dois. A imagem daquela mulher amargurada me lembrou a paixão louca que ela sentiu por meu pai. Ah, como o cheiro dele na cama fazia falta para ela, como acordar todos os dias sem ele a deixava com aquele semblante absorto naquelas melancólicas brincadeiras com a comida que iria deixar no prato.
Às vezes meu pai pergunta por ela, querendo saber de sua vida e desejando que esteja mal. Não gosto quando ele faz essas perguntas, quem é ele pra falar mal da minha mãe? Ela que lho dedicou tanto amor, agora tão sofrida em suas palavras me falando pra não amar homem nenhum nessa terra. Ela que agora o odeia, ou odeia a existência dele livre da dela.
Filha, você é a minha vida, o que seria de mim sem você? Eu me preocupo tanto com você porque você é fêmea, minha menina, os outros são uns marmanjos, eles sabem se cuidar. Mas você é tão inocente, e eu não quero que você passe pelo que eu passei, meu amor. Mamãe te ama, viu? Entenda a mamãe, não faça raiva à mamãe...
segunda-feira, dezembro 12, 2005
A vida pode até ser triste, mas é sempre bela
Atualmente, meu filme preferido é Pierrot le fou, de Jean-Luc Godard. Eu me encantei completamente por essa película, não como se ela fosse meras imagens na tela, mas tivesse uma vida própria. E uma das coisas que mais me chamou a atenção foi uma frase dita por Pierrot, interpretado pelo adorável Jean Paul Belmondo: “A vida pode até ser triste, mas é sempre bela”.
Acho que se fosse para definir a minha visão de mundo em uma frase, eu usaria essa. Em minha sensibilidade exacerbada, estou sempre vendo as coisas com uma lente que torna tudo gigante, e eu fico me sentindo pequenina, mas querendo subir no pé de feijão. Tudo se torna tão inebriante, cada som, imagem, toque, levam para alguma poesia dentro de mim, dentro do mundo.
Sinto tanto tudo o que me rodeia que às vezes dói. É como se eu estivesse sempre parindo vida, e a dor do parto é tão intensa. A beleza do mundo é uma beleza triste, um encantamento que vem de tudo que é insaciável, a criança chorando porque não consegue andar, fica caindo e encostando-se nas paredes da casa.
Às vezes a vida é tão gostosa, que me sinto mergulhando naquela piscina cheia de bolas coloridas, surgindo de lá do fundo triunfante e jogando as bolas pra cima. E ela às vezes é triste como um pintor que perdeu a visão, mas até aí ela é bela. Sim, porque em toda tristeza há uma saudade da vida, e nessa saudade se constitui a sua própria beleza, um querer sempre mais, e os quadros feitos com pinceladas que a gente não vê, mas sente.
A vida pode até ser triste, mas é sempre bela, porque ela é arte, arte dos homens que inventaram Deus e o amor.
Acho que se fosse para definir a minha visão de mundo em uma frase, eu usaria essa. Em minha sensibilidade exacerbada, estou sempre vendo as coisas com uma lente que torna tudo gigante, e eu fico me sentindo pequenina, mas querendo subir no pé de feijão. Tudo se torna tão inebriante, cada som, imagem, toque, levam para alguma poesia dentro de mim, dentro do mundo.
Sinto tanto tudo o que me rodeia que às vezes dói. É como se eu estivesse sempre parindo vida, e a dor do parto é tão intensa. A beleza do mundo é uma beleza triste, um encantamento que vem de tudo que é insaciável, a criança chorando porque não consegue andar, fica caindo e encostando-se nas paredes da casa.
Às vezes a vida é tão gostosa, que me sinto mergulhando naquela piscina cheia de bolas coloridas, surgindo de lá do fundo triunfante e jogando as bolas pra cima. E ela às vezes é triste como um pintor que perdeu a visão, mas até aí ela é bela. Sim, porque em toda tristeza há uma saudade da vida, e nessa saudade se constitui a sua própria beleza, um querer sempre mais, e os quadros feitos com pinceladas que a gente não vê, mas sente.
A vida pode até ser triste, mas é sempre bela, porque ela é arte, arte dos homens que inventaram Deus e o amor.
domingo, dezembro 11, 2005
Pierrot, não! Meu nome é Ferdinand!
Após o suicídio de Ferdinand, que era Pierrot até ser traído por sua amada Marianne e tê-la assassinado, a lente de Godard flutua perante o oceano banhado de sol. A voz de Marianne, a que enaltecia as paixões e a música, triunfa ao final do filme falando sobre a morte de Pierrot, o defensor da literatura e das idéias acima da música e da Natureza.
“O que é isso, a eternidade? Não, é só o mar e o sol”.
Kika, de Pedro Almodóvar
Nesta película, Almodóvar trata do voyeurismo, faz uma crítica à sociedade do espetáculo, e até coloca o feminismo em cheque.
E para falar de voyeurismo, Almodóvar não poderia deixar de lembrar Janela Indiscreta, clássico de Hitchcock. Ele está o tempo inteiro brincando com o espectador, que por vezes pensa estar vendo uma determinada cena pelas lentes do diretor, quando na verdade é pelo olhar de um voyeur, com ambientações que lembram muito o Janela Indiscreta. Almodóvar trata o espectador como um voyeur, e o cinema como uma brincadeira de voyeurismo em que espionamos a realidade diegética dos personagens.
Nicholas Pierce escreve um livro sobre um escritor que matou sua esposa e afirma ter ela se suicidado para escapar das grades. Pierce diz num programa de TV que escreveu esse livro inspirado nas acusações feitas a ele depois da morte de sua mulher. No decorrer do filme, a desconfiança do espectador irá se confirmar: Pierce realmente matou sua esposa.
Algo intrigante é Almodóvar ter colocado Nicholas Pierce como jornalista e americano, sendo os Estados Unidos o grande centro da indústria cultural. E Pierce é um típico psicopata, que confunde realidade e fantasia, fazendo dos seus crimes inspiração para livros best-seller. A confusão entre real e imaginário é um sintoma da própria sociedade do espetáculo, e Pierce se apresenta no filme como símbolo dela.
Há uma cena em que Kika está sendo estuprada por Paul Bazzo, um ator pornô irmão de sua empregada Juana. A ousadia da cena está em mostrar Kika agindo como se o estupro não tivesse grande importância. Em outro momento do filme, ela havia transado com seu noivo cataléptico Ramón, e ele era tão voyeur que tinha fetiche por tirar fotos enquanto fazia sexo. Durante o estupro, Kika se comporta de forma muito semelhante a quando transa com Ramón, o mesmo olhar, a mesma falta de prazer, a mesma submissão, e ela até fica esperando ele gozar, pois Paul afirma que seu recorde era ter quatro orgasmos numa única relação.
Só que Almodóvar não vem com aqueles feminismos chatos e maniqueístas. Ele torna tudo muito mais complexo. Ramón é por vezes tão submisso à Kika, que o trai com seu pai Nicholas Pierce, e ele finge não perceber. Almodóvar brinca tanto com o feminismo, que num primeiro momento pode parecer machista banalizando um estupro com humor negro, mas ele está falando da própria mulher que se banaliza como objeto.
O estupro de Kika é mostrado em rede nacional por Andréa Caracortada, apresentadora de um show de horrores na televisão. A gravação do estupro havia sido feita por Ramón, o noivo voyeur de Kika, que tinha obsessão por ficar espionando a vida dela do prédio vizinho. Dessa forma, Almodóvar critica o império do grotesco construído pela mídia, e o público que o alimenta, o público representado pelo próprio Ramón.
Almodóvar também coloca em questão relações familiares, fazendo surgir personagens cheios de dramas e angústias. A distância entre Pierce e Ramón é tão grande, que Kika nem sabia da relação de parentesco entre eles. Ramón tinha ciúme do amor obsessivo da mãe pelo seu pai, e o odiava porque acreditava que ele a havia matado. Almodóvar lida com o complexo de Édipo em seu personagem Ramón, que até fantasia com a morte de seu pai, dizendo a Kika que ele havia morrido degolado num acidente de carro.
Outra relação interessante é a de Juana com seu irmão Paul. Ela já havia sido estuprada por ele, e mesmo assim faz de tudo pelo irmão, até permitindo que ele entre na casa de sua patroa para cometer crimes em nome dos seus laços de sangue. Juana surge aos nossos olhos como uma mulher solitária que só tinha como família o seu irmão criminoso. Ela é lésbica, e Almodóvar coloca fora de questão a possibilidade de ela ser homossexual por causa de algum trauma deixado pelo incesto. Juana fala num tom altivo e impetuoso: “Que trauma coisa nenhuma! Nada como uma boa xoxota!”.
Enredos que se entrelaçam, crítica à sociedade, personagens aparentemente estereotipados, mas complexos, e relações tão complexas quanto, essa é dignamente uma típica película do genial Almodóvar. Um filme sarcástico com um ar brega que diverte o espectador sem deixar de ter uma intrigante reflexão.
sábado, dezembro 10, 2005
Para Julieta
Quando eu lhe disser fique, não vire a cara para mim. Quando eu lhe disser não vá, que o ficar não pareça mais duro do que o não ir, veja a lição das nossas faltas, e a graça dos nossos acertos.
Julieta, eu só peço que me entenda, mesmo isso sendo impossível até para mim mesmo. Eu nunca me entendi como seus olhos quando me fitam, sei lá onde eu me escondi dos seus exames, embaixo de um riso forçado, observando a mesa ou qualquer coisa que não fosse seu olhar.
Não Julieta, não entenda, nem queira entender. Nunca quis te amar, nem você nunca se amou ou quis amar você e eu, o par. Esse par tão inseguro, entre seguir por caminhos tão tortuosos melhor ser o ímpar, o singular.
Concordo com tudo que você disse. Não sou homem pra você, e você não é mulher pra ninguém, porém uma coisa só já fazia todo o sentido. Sou apenas um homem encantado com seus olhos arregalados, mas eu cheiro a sofrimento. E essa carta é borrada com lágrimas. Um beijo. Mateus.
Julieta, eu só peço que me entenda, mesmo isso sendo impossível até para mim mesmo. Eu nunca me entendi como seus olhos quando me fitam, sei lá onde eu me escondi dos seus exames, embaixo de um riso forçado, observando a mesa ou qualquer coisa que não fosse seu olhar.
Não Julieta, não entenda, nem queira entender. Nunca quis te amar, nem você nunca se amou ou quis amar você e eu, o par. Esse par tão inseguro, entre seguir por caminhos tão tortuosos melhor ser o ímpar, o singular.
Concordo com tudo que você disse. Não sou homem pra você, e você não é mulher pra ninguém, porém uma coisa só já fazia todo o sentido. Sou apenas um homem encantado com seus olhos arregalados, mas eu cheiro a sofrimento. E essa carta é borrada com lágrimas. Um beijo. Mateus.
quinta-feira, dezembro 08, 2005
O tempo e os sonhos
Estive me perguntando sobre o tempo que se passa enquanto sonhamos. Acredito que o tempo seja uma ilusão com a qual brincamos de entender o andar do mundo, uma concepção subjetiva que nos conduz no universo das coisas e dos sentidos, e dos sentidos das coisas.
Um indivíduo ao usar ópio pode aumentar em dez, até sessenta vezes, o tempo que decorre na sua mente. Então imagine como seria o universo onírico. Sim, porque enquanto o mundo se constrói e se destrói na realidade objetiva de tal maneira, qual forma de tempo se passa na mente daquele que sonha, percorrendo espaços oníricos imiscíveis, vivendo incríveis histórias em questão de poucas horas?
Sabemos que é impossível medir o tempo onírico, e ele faz parte da nossa inconsciência, tão distante da consciência que mede o tempo objetivo. São formas de realidade por demais abstrusas para serem compreendidas pelas nossas limitadas faculdades. Entretanto, uma coisa parece se mostrar certa: o tempo da mente daqueles que se encontram no sonho não é o mesmo dos que estão de vigília.
Quais seriam os limites do tempo onírico? Imagine o quanto a mente num estado de sonho poderia ousar e recriar o tempo. Ele não seria necessariamente nem maior nem menor, mas teria um movimento próprio, posto que a forma como a nossa mente sente o tempo sofre influências da realidade exterior, e no sonho o indivíduo só está em contato consigo mesmo.
Os relógios dos nossos sonhos são tão somente nossos e criados por nós mesmos. Nós passeamos para aqui e para ali, e ao fim de tudo para lugar nenhum que se possa determinar. Encontramo-nos em um não-lugar, ou na poesia da nossa inconsciência.
Um indivíduo ao usar ópio pode aumentar em dez, até sessenta vezes, o tempo que decorre na sua mente. Então imagine como seria o universo onírico. Sim, porque enquanto o mundo se constrói e se destrói na realidade objetiva de tal maneira, qual forma de tempo se passa na mente daquele que sonha, percorrendo espaços oníricos imiscíveis, vivendo incríveis histórias em questão de poucas horas?
Sabemos que é impossível medir o tempo onírico, e ele faz parte da nossa inconsciência, tão distante da consciência que mede o tempo objetivo. São formas de realidade por demais abstrusas para serem compreendidas pelas nossas limitadas faculdades. Entretanto, uma coisa parece se mostrar certa: o tempo da mente daqueles que se encontram no sonho não é o mesmo dos que estão de vigília.
Quais seriam os limites do tempo onírico? Imagine o quanto a mente num estado de sonho poderia ousar e recriar o tempo. Ele não seria necessariamente nem maior nem menor, mas teria um movimento próprio, posto que a forma como a nossa mente sente o tempo sofre influências da realidade exterior, e no sonho o indivíduo só está em contato consigo mesmo.
Os relógios dos nossos sonhos são tão somente nossos e criados por nós mesmos. Nós passeamos para aqui e para ali, e ao fim de tudo para lugar nenhum que se possa determinar. Encontramo-nos em um não-lugar, ou na poesia da nossa inconsciência.
segunda-feira, dezembro 05, 2005
Beverly Hills?
As cadeiras nas portas e os olhares seguindo os passos do meu grupo de amigos lembram muito a atmosfera do interior. Não, não é uma cidadezinha nos confins de Sergipe, é o bairro Augusto Franco. A maior parte de seus moradores se diverte como nos pequenos municípios, e as praças ficam cheias de gente à noite, cantando em videokê, tomando uma cervejinha, vendo jogo de futebol pelas lentes da Globo, ou comendo algum sanduíche vagabundo.
Passeio pela periferia de Aracaju e fico admirada com o ar de tranqüilidade dos moradores do bairro, tão indolentes em suas cadeiras no meio da rua falando da vida alheia e auscultando os que passam. Depois de algumas horas, lá pras duas da manhã, as ruas ficam vazias, com uma ou outra pessoa vagando nos bares das praças, e meus amigos dizem que está tudo sob controle, “estamos em Beverly Hills”. Beverly Hills? Sim, isso mesmo, eles comparam o Augusto Franco àquele bairro de ricos que teve até um seriado homônimo na TV.
Nessa hora eu me lembro dos ricos, não daqueles distantes de nós lá nos States, mas dos que ficam bem pertinho, aqui no eixo Luzia-Jardins-Grageru-13 de Julho, onde moro por atrevimento na Adélia Franco. Bem, eu diria que os ricos não vivem em paz. Nas minhas andanças madrugada adentro, o que vejo nas suntuosas casas na 13 de julho são cercas elétricas denunciando o medo, e cães de guarda furiosos ladrando em varandas como se fossem saltar sobre nossas cabeças.
Entretanto, engana-se quem pensa que estou dizendo que a periferia, até porque o Augusto Franco nem é a genuína periferia de Aracaju, é o paraíso, e o olimpo das elites é o verdadeiro inferno. Não me esqueço de quando estava no Terminal D.I.A. e, certa vez, escutei uma senhora suada e cheia de sacolas falando da barbárie que tomava conta do seu bairro, o Padre Pedro. Ela disse que quase toda noite ouvia falar de facadas, muitas vezes em conhecidos seus, e a calamidade chegara a tal ponto, que famílias eram brindadas com cabeças de parentes nas suas portas. Aquela mulher falava num tom de horror, indignação, e descrença, uma combinação bastante comum em gente tão sofrida e sem ter a quem recorrer.
Nos vãos das noites de Aracaju, os ricos se aprisionam a sete chaves diante da desigualdade irrefreável, alguns pobres se divertem em seu mundo fantasioso interiorano achando que não têm nada a perder, e outros vivem do medo das facas. Há portas onde há gente em cadeiras sentada, outras com grades e cercas de choques, e ainda aquelas presenteadas com cabeças. E tudo é Beverly Hills. Será?
Passeio pela periferia de Aracaju e fico admirada com o ar de tranqüilidade dos moradores do bairro, tão indolentes em suas cadeiras no meio da rua falando da vida alheia e auscultando os que passam. Depois de algumas horas, lá pras duas da manhã, as ruas ficam vazias, com uma ou outra pessoa vagando nos bares das praças, e meus amigos dizem que está tudo sob controle, “estamos em Beverly Hills”. Beverly Hills? Sim, isso mesmo, eles comparam o Augusto Franco àquele bairro de ricos que teve até um seriado homônimo na TV.
Nessa hora eu me lembro dos ricos, não daqueles distantes de nós lá nos States, mas dos que ficam bem pertinho, aqui no eixo Luzia-Jardins-Grageru-13 de Julho, onde moro por atrevimento na Adélia Franco. Bem, eu diria que os ricos não vivem em paz. Nas minhas andanças madrugada adentro, o que vejo nas suntuosas casas na 13 de julho são cercas elétricas denunciando o medo, e cães de guarda furiosos ladrando em varandas como se fossem saltar sobre nossas cabeças.
Entretanto, engana-se quem pensa que estou dizendo que a periferia, até porque o Augusto Franco nem é a genuína periferia de Aracaju, é o paraíso, e o olimpo das elites é o verdadeiro inferno. Não me esqueço de quando estava no Terminal D.I.A. e, certa vez, escutei uma senhora suada e cheia de sacolas falando da barbárie que tomava conta do seu bairro, o Padre Pedro. Ela disse que quase toda noite ouvia falar de facadas, muitas vezes em conhecidos seus, e a calamidade chegara a tal ponto, que famílias eram brindadas com cabeças de parentes nas suas portas. Aquela mulher falava num tom de horror, indignação, e descrença, uma combinação bastante comum em gente tão sofrida e sem ter a quem recorrer.
Nos vãos das noites de Aracaju, os ricos se aprisionam a sete chaves diante da desigualdade irrefreável, alguns pobres se divertem em seu mundo fantasioso interiorano achando que não têm nada a perder, e outros vivem do medo das facas. Há portas onde há gente em cadeiras sentada, outras com grades e cercas de choques, e ainda aquelas presenteadas com cabeças. E tudo é Beverly Hills. Será?
sábado, dezembro 03, 2005
Perigosamente apaixonados
Poesias, cartas, lágrimas por filmes, flores, sonhos, palavras insanas. O universo daqueles que se apaixonam fácil e exageradamente é tão belo e frágil como uma enorme casa de vidro a beira mar. Estar apaixonado para eles é um estado narcótico. É como andar na corda bamba e transformar a vida num mundo fantástico.
Aqueles que se apaixonam fácil são pessoas intensas, alcoólatras, fumantes, compulsivos das mais variadas formas, apaixonados... Eles estão sempre em busca do ópio que os libertará das amarras da realidade pusilânime. Só que o eterno dilema dos perigosamente apaixonados é que eles não se apaixonam pelo outro, mas pela própria paixão.
Então eles acabam não gostando de ninguém. E esse fogo todo que arde sem se ver nasce da ausência de si mesmo, do não se gostar e estar sempre em busca daquele que irá gostar em seu lugar. Aí está o grande problema. Ninguém veio ao mundo para salvar ninguém, e quando o indivíduo não gosta de si mesmo, não tem essa, fudeu. Vai se deparar com toda forma de humilhação, falta de respeito, descaso, e uma série de torturas que só vão fazer aquele que não se ama, amar-se menos ainda.
E por não se gostar e perceber a displicência do objeto amado, ele inconscientemente acha que só irá conseguir conviver consigo mesmo se o outro se unir a esse seu eu perdido no mundo. Na incrível maioria das vezes a paixão não correspondida resulta em desprezo, e esse desprezo é recebido pelo apaixonado como uma distância, uma forma de tornar o amor platônico, mesmo quando a relação carnal está envolvida.
Pessoas assim sofrem muito. Quando se deparam com um tipo igual ao seu, a intensidade dos dois tende a levar a uma relação explosiva, uma catástrofe eu diria. Quando conhecem alguém que leve mais tempo para se apaixonar, inquietam-se e ficam insaciáveis e inseguros.
É difícil encontrar alguém que veja beleza nas suas loucuras, e que acompanhe a sua cadência histérica formando um belo conjunto. Na maioria das vezes, o que acontece é só o desprezo, o descaso, a falta de carinho. E os perigosamente apaixonados descobrem que a fórmula para acabar com a solidão não era essa, que tantas vezes tinham alguém ao seu lado e estavam tão só, completamente só, com suas angústias, seus medos, e seus afetos não correspondidos.
Talvez um dia descubram a afável aventura de se apaixonar por si mesmos, e desvendem tantas outras incríveis paixões ao seu redor, outras formas de amor, arte... Não para poder encontrar alguém, mas para conseguirem conviver consigo mesmos. Aí eles não vão se sentir tão desconfortáveis com a solidão, e se tiverem alguém ao seu lado, não vai ser buscando o pedaço que falta, mas crescendo juntos e vivendo um simples e modesto bem estar, a calma.
sexta-feira, dezembro 02, 2005
Uma criança apenas
Os cacos de vidro se espalham no chão como se cortassem a minha garganta. O pavor dos meus olhos não esconde, meu pai sabia que eu havia feito algo de errado. Ele corre para a sala com passos imperiosos, uma ira saciada pela delícia de me ver em prantos nos seus braços. Seus olhos deslizam delirantes pelos cacos, sua voz soa entre cuspes ameaçadora, e eu sucumbo às suas mãos gigantes, que capturam-me como águia, e me surram como se isso fosse o seu próprio gozo. Depois me deixava lá, estendida no sofá me revolvendo em dores, e batia a porta para seguir para o trabalho, ou ir aos bares, quem sabe.
Eu não derramava uma única lágrima, eu não daria esse gosto a ele. Agora fico aqui, com os movimentos imobilizados pelo ódio, mordendo os lábios e sentindo um pouco do meu sangue. Hoje faço treze anos, e ele nem se lembrou. Só me deu uma surra porque quebrei um vaso ordinário. Se ninguém se lembra de mim, quem garante que eu existo mesmo? E agora nem consigo me levantar depois da surra que meu pai me deu com a vassoura que eu limpava a casa. Maldita casa.
O gelo dói no corpo, mas dói pra depois me saciar com a calma. Tomo vários anti-inflamatórios sem nenhuma prudência, mas nunca me preocupei muito com minha saúde, e talvez eu dormisse muito. O sono não chega. Meu ódio queria enfiar aquela faca no meu pai.
Um homem do prédio em frente me observa deitada no sofá com meu pequeno camisola rosa meio transparente, justo no momento em que eu estava com as pernas abertas para o ar. Baixo as pernas assim de repente num susto. O homem era bonito, e casado, eu sabia. Devia ter seus trinta anos. Ele me contemplava com um desejo violento, e eu sentia os seus olhos caminhando pelas minhas pernas, pelos meus pequenos seios, pela minha intocada vagina. Eu tinha o semblante enfermo, pálido, e hematomas na pernas, mas isso não o incomodava. Ele só se embriagava na minha virgindade hostil.
Liguei o som. Vim caminhando na direção dele enquanto levantava delicadamente a minha camisola rosa. Quando ele me viu só de calcinha, quase não podia acreditar, e um certo pudor enrusbeceu o seu rosto. Virei de costas, ameaçei tirar a calcinha, e movia-me como uma serpente. Eu era o próprio pecado, e o que havia de mais sórdido nas fantasias de um homem. No mundo só havia minha infantil luxúria, o meu vizinho era um espectador objeto, o meu gozo estava em mim mesma. Quando me virei já nua em direção ao prédio do meu vizinho, encontrei a janelas, as cortinas fechadas, e as luzes apagadas num abandono. Ri da minha imprudência voluptuosa, do medo que causei a ele, e acendi um cigarro para fumar na varanda, contemplando as janelas que escondiam as histórias de tantas famílias.
Eu não derramava uma única lágrima, eu não daria esse gosto a ele. Agora fico aqui, com os movimentos imobilizados pelo ódio, mordendo os lábios e sentindo um pouco do meu sangue. Hoje faço treze anos, e ele nem se lembrou. Só me deu uma surra porque quebrei um vaso ordinário. Se ninguém se lembra de mim, quem garante que eu existo mesmo? E agora nem consigo me levantar depois da surra que meu pai me deu com a vassoura que eu limpava a casa. Maldita casa.
O gelo dói no corpo, mas dói pra depois me saciar com a calma. Tomo vários anti-inflamatórios sem nenhuma prudência, mas nunca me preocupei muito com minha saúde, e talvez eu dormisse muito. O sono não chega. Meu ódio queria enfiar aquela faca no meu pai.
Um homem do prédio em frente me observa deitada no sofá com meu pequeno camisola rosa meio transparente, justo no momento em que eu estava com as pernas abertas para o ar. Baixo as pernas assim de repente num susto. O homem era bonito, e casado, eu sabia. Devia ter seus trinta anos. Ele me contemplava com um desejo violento, e eu sentia os seus olhos caminhando pelas minhas pernas, pelos meus pequenos seios, pela minha intocada vagina. Eu tinha o semblante enfermo, pálido, e hematomas na pernas, mas isso não o incomodava. Ele só se embriagava na minha virgindade hostil.
Liguei o som. Vim caminhando na direção dele enquanto levantava delicadamente a minha camisola rosa. Quando ele me viu só de calcinha, quase não podia acreditar, e um certo pudor enrusbeceu o seu rosto. Virei de costas, ameaçei tirar a calcinha, e movia-me como uma serpente. Eu era o próprio pecado, e o que havia de mais sórdido nas fantasias de um homem. No mundo só havia minha infantil luxúria, o meu vizinho era um espectador objeto, o meu gozo estava em mim mesma. Quando me virei já nua em direção ao prédio do meu vizinho, encontrei a janelas, as cortinas fechadas, e as luzes apagadas num abandono. Ri da minha imprudência voluptuosa, do medo que causei a ele, e acendi um cigarro para fumar na varanda, contemplando as janelas que escondiam as histórias de tantas famílias.
terça-feira, novembro 29, 2005
1#1, 0=1+ (-1) ; 1+1=2?, 1+0=1?, 1+1=1?
Vá logo tomar o remédio
A boneca em cima da cômoda à esquerda me fita com um ar de cobrança maternal estranha às suas trancinhas coloridas e à sua falta de vida. “Vá logo tomar o remédio”, é o que diz o bilhete escrito com minha insegura letra, colado ao vestido de Jasmim. Já vou, respondo em pensamento, dialogando com o olhar estático dela.
A pia parece uma montanha de pratos para lavar, e a combinação daquela imagem com os gritos coléricos da minha mãe e as ordens dos meus irmãos querendo comida na mesa faz um belo começo de dia, igual àqueles das propagandas de margarina.
- Você só vive na rua tomando cachaça, virando noite, enquanto eu me mato de trabalhar naquela porra de hospital pra lhe dar de comer, e chegar em casa e você vir me pedir dinheiro pra ir pra essas festas? Não quer saber de estudar, depois faça que nem eu que não tirei diploma e vivo nessa merda. Meu Deus do céu, eu tô pagando meus pecados!
Sinceramente, é melhor nem responder. Olho a minha mãe de relance, só para ela não me dar um tapa dizendo que a ignorei como fez outro dia. Finjo que presto atenção nas suas lamúrias enquanto atento ao ruído do meu anel em atrito com o prato. Brinco um pouco com a espuma. Os talheres, ah, eu até que gosto de lavar os talheres, fico meio encostada na pia, toda preguiçosa, lavando um por um.
Meu irmão já reclamava do almoço, dizia que o de ontem estava muito ruim. E eu lá tenho culpa se nessa casa não tem nada pra comer? Vou inventar o quê agora? Abro a geladeira e só vejo água e uma tigela cheia de feijão de anteontem. Mas o importante é que eu era a culpada de tudo.
Só limpo a casa cantando, e isso dá uma demora! Às vezes faço uma enganação, não limpo debaixo da cama, sei lá, estou farta de cansaço, e minha mãe não vai perceber se eu fizer isso uma vez ou outra. Deus me livre ela me bater com o pau que ela guarda no armário dela.
A cômoda do meu quarto está cheia de poeirinhas que tratei com displicência, e de repente vejo novamente a porcaria da boneca. “Vá logo tomar o remédio”. Eu já vou, aiai, eu não disse que já vou, mas primeiro preciso terminar de limpar o meu quarto.
Uma sensação de paz, dever cumprido, uma vontade de se jogar em qualquer lugar é o que eu tenho ao terminar as tarefas da manhã. Fico estendida indolentemente na cama e entregue ao abandono de nada fazer. Oxalá o tempo não passe para eu não ter de ir à escola assim, como queria contemplar o êxtase da mais insolente lassidão. Viro para a esquerda. “Vá logo tomar o remédio”. Eu já tomei, porra, que saco!
A pia parece uma montanha de pratos para lavar, e a combinação daquela imagem com os gritos coléricos da minha mãe e as ordens dos meus irmãos querendo comida na mesa faz um belo começo de dia, igual àqueles das propagandas de margarina.
- Você só vive na rua tomando cachaça, virando noite, enquanto eu me mato de trabalhar naquela porra de hospital pra lhe dar de comer, e chegar em casa e você vir me pedir dinheiro pra ir pra essas festas? Não quer saber de estudar, depois faça que nem eu que não tirei diploma e vivo nessa merda. Meu Deus do céu, eu tô pagando meus pecados!
Sinceramente, é melhor nem responder. Olho a minha mãe de relance, só para ela não me dar um tapa dizendo que a ignorei como fez outro dia. Finjo que presto atenção nas suas lamúrias enquanto atento ao ruído do meu anel em atrito com o prato. Brinco um pouco com a espuma. Os talheres, ah, eu até que gosto de lavar os talheres, fico meio encostada na pia, toda preguiçosa, lavando um por um.
Meu irmão já reclamava do almoço, dizia que o de ontem estava muito ruim. E eu lá tenho culpa se nessa casa não tem nada pra comer? Vou inventar o quê agora? Abro a geladeira e só vejo água e uma tigela cheia de feijão de anteontem. Mas o importante é que eu era a culpada de tudo.
Só limpo a casa cantando, e isso dá uma demora! Às vezes faço uma enganação, não limpo debaixo da cama, sei lá, estou farta de cansaço, e minha mãe não vai perceber se eu fizer isso uma vez ou outra. Deus me livre ela me bater com o pau que ela guarda no armário dela.
A cômoda do meu quarto está cheia de poeirinhas que tratei com displicência, e de repente vejo novamente a porcaria da boneca. “Vá logo tomar o remédio”. Eu já vou, aiai, eu não disse que já vou, mas primeiro preciso terminar de limpar o meu quarto.
Uma sensação de paz, dever cumprido, uma vontade de se jogar em qualquer lugar é o que eu tenho ao terminar as tarefas da manhã. Fico estendida indolentemente na cama e entregue ao abandono de nada fazer. Oxalá o tempo não passe para eu não ter de ir à escola assim, como queria contemplar o êxtase da mais insolente lassidão. Viro para a esquerda. “Vá logo tomar o remédio”. Eu já tomei, porra, que saco!
segunda-feira, novembro 28, 2005
Pensamentos avulsos 1, 2, 3...
1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12... Luíza chegou ao banheiro. A primeira coisa que ela faz quando se acorda é urinar. 15, 16, 17, 18, 19, 20. Pensamentos avulsos, não há como controlar, dos desenhos de flores da parede do banheiro até o olhar displicente do pai. Ela precisa contar. 23, 24, 25, 26...
Luíza procurava a fórmula para ser feliz, pensar em coisas boas, mas ela só conseguia contar, se não contasse, lá vinha uma avalanche de lembranças e paranóias tristes que brincavam com sua mente como se não fosse dela. Sempre lhe diziam que ela era burra, ou trouxa, culpa sua passar por todo esse sofrimento, isso é coisa da sua cabeça. 80, 81, 82, 83...
Havia momentos em que Luíza parava de contar. Era quando ela recriava os mundos perdidos na mente de alguém e escritos nas páginas de um livro secular. Ou quando ela se encontrava nos seus personagens, sendo eles crianças, prostitutas, mães, assassinos. Cada um deles tinha algo seu, e toda a história se tornava um entrelaçado dos encontros e desencontros dela mesma.
Luíza acende o cigarro com um olhar altivo na frente do espelho, por favor, chamem-me de senhora. Ela quer ser mulher, mas toda a arrogância das suas baforadas, do seu jeito de levantar o rosto, da forma como a mão que segurava o cigarro estava curvada e pairando no ar, lembram uma menina vestindo as roupas da mãe. Luíza era uma mulher desesperada para se livrar da menina guardada dentro de si, mas odiava a mulher em que tinha de se tornar.
Uma menina que não sabia lutar, uma mulher que cobrava por isso. Reclusa no seu pequeno mundo, tentando viver de arte ou... 99, 100, 1, 2, 3. Luíza era tão só, mesmo estando com amigos, sua euforia exacerbada escondia uma dor que passeava no seu sangue como um martírio. Os olhos às vezes perdidos paravam em algum ponto invisível no ar, mas não, eu não estava pensando em nada, do que vocês estavam falando mesmo? 50, 51, 52...
97, 98, 99, 100. 1, 2, 3, 4, 5... O sono não chegava, e quanto mais Luíza pensava no sono, mais se sentia acordada. Ela não pode ver as horas, a mãe disse que isso a deixaria mais aflita. Luíza vai ler, mas não consegue se deter no universo de Flaubert, e tudo são páginas cheias de letras e seus pensamentos em conflito. Volta para a cama, fita o teto, mas lembra que não pode dormir com o ventre para cima, isso resultaria em pesadelos. Fica em posição fetal, e lembra que a mãe dorme na cama ao lado. 1, 2, 3, 4, 5, 6...
Luíza procurava a fórmula para ser feliz, pensar em coisas boas, mas ela só conseguia contar, se não contasse, lá vinha uma avalanche de lembranças e paranóias tristes que brincavam com sua mente como se não fosse dela. Sempre lhe diziam que ela era burra, ou trouxa, culpa sua passar por todo esse sofrimento, isso é coisa da sua cabeça. 80, 81, 82, 83...
Havia momentos em que Luíza parava de contar. Era quando ela recriava os mundos perdidos na mente de alguém e escritos nas páginas de um livro secular. Ou quando ela se encontrava nos seus personagens, sendo eles crianças, prostitutas, mães, assassinos. Cada um deles tinha algo seu, e toda a história se tornava um entrelaçado dos encontros e desencontros dela mesma.
Luíza acende o cigarro com um olhar altivo na frente do espelho, por favor, chamem-me de senhora. Ela quer ser mulher, mas toda a arrogância das suas baforadas, do seu jeito de levantar o rosto, da forma como a mão que segurava o cigarro estava curvada e pairando no ar, lembram uma menina vestindo as roupas da mãe. Luíza era uma mulher desesperada para se livrar da menina guardada dentro de si, mas odiava a mulher em que tinha de se tornar.
Uma menina que não sabia lutar, uma mulher que cobrava por isso. Reclusa no seu pequeno mundo, tentando viver de arte ou... 99, 100, 1, 2, 3. Luíza era tão só, mesmo estando com amigos, sua euforia exacerbada escondia uma dor que passeava no seu sangue como um martírio. Os olhos às vezes perdidos paravam em algum ponto invisível no ar, mas não, eu não estava pensando em nada, do que vocês estavam falando mesmo? 50, 51, 52...
97, 98, 99, 100. 1, 2, 3, 4, 5... O sono não chegava, e quanto mais Luíza pensava no sono, mais se sentia acordada. Ela não pode ver as horas, a mãe disse que isso a deixaria mais aflita. Luíza vai ler, mas não consegue se deter no universo de Flaubert, e tudo são páginas cheias de letras e seus pensamentos em conflito. Volta para a cama, fita o teto, mas lembra que não pode dormir com o ventre para cima, isso resultaria em pesadelos. Fica em posição fetal, e lembra que a mãe dorme na cama ao lado. 1, 2, 3, 4, 5, 6...
domingo, novembro 27, 2005
As estrelas do sertão
Ontem fui surpreendida pela minha mãe me chamando ao telefone com os olhos comovidos. Era minha avó de Porto da Folha, com a voz enferma e pausada, querendo saber mais sobre mim do que falar do seu sofrimento.
Maria é uma mulher sofrida, do sertão, onde nos olhos há sempre um brilho de quem vive na luta, e o rosto marcado pelo sol que a castiga no trabalho. Há quanto tempo que não vejo um gesto simples nas suas palavras serenas, e dói no peito sentir sua voz sofrida contendo a tristeza.
Vovó perguntou se eu ainda me lembrava dela, quanto tempo não vou lá no sertão, uma forma angustiada de saber se eu assim tão longe correspondia aos seus afetos. E ela ficou tão feliz quando lhe falei das minhas doces lembranças de quando eu corria por aquela terra ardente na minha infância.
Lembrei dos passeios a cavalo sem cela, as duas rumavam na noite, e da noite o que ficou foram as estrelas, que eu guardo num canto mágico da minha memória. E a foto dos pais de Dona Maria, os dois com o aspecto indígena, sempre me chamava a atenção. Ah, lá eu corria atrás de sapos, nos tempos em que de alguma forma eu me misturava com a naturerza.
Nunca vou me esquecer do carinho ingênuo que minha avó me dedicava. Do pirão que ela preparava pra mim, ah como era gostoso, da xícara pequenina enfeitada com florzinhas vermelhas e era só minha, de quando ela deixava eu comer o almoço com as mãos, ato que minha mãe jamais permitiria.
Vó Maria agora é uma recordação bonita e uma voz triste ao telefone. Espero viajar para Poto da Folha, ver como vai o vô, ele parece estar caminhando para uma outra forma de vida que eu não sei explicar. Queria poder botar minha avó no colo, e cantar canções do Luiz Gonzaga que a gente dançava nos bailes do sertão. Ela só quer, só pensa em namorar, ela só quer, só pensa em namorar...
Maria é uma mulher sofrida, do sertão, onde nos olhos há sempre um brilho de quem vive na luta, e o rosto marcado pelo sol que a castiga no trabalho. Há quanto tempo que não vejo um gesto simples nas suas palavras serenas, e dói no peito sentir sua voz sofrida contendo a tristeza.
Vovó perguntou se eu ainda me lembrava dela, quanto tempo não vou lá no sertão, uma forma angustiada de saber se eu assim tão longe correspondia aos seus afetos. E ela ficou tão feliz quando lhe falei das minhas doces lembranças de quando eu corria por aquela terra ardente na minha infância.
Lembrei dos passeios a cavalo sem cela, as duas rumavam na noite, e da noite o que ficou foram as estrelas, que eu guardo num canto mágico da minha memória. E a foto dos pais de Dona Maria, os dois com o aspecto indígena, sempre me chamava a atenção. Ah, lá eu corria atrás de sapos, nos tempos em que de alguma forma eu me misturava com a naturerza.
Nunca vou me esquecer do carinho ingênuo que minha avó me dedicava. Do pirão que ela preparava pra mim, ah como era gostoso, da xícara pequenina enfeitada com florzinhas vermelhas e era só minha, de quando ela deixava eu comer o almoço com as mãos, ato que minha mãe jamais permitiria.
Vó Maria agora é uma recordação bonita e uma voz triste ao telefone. Espero viajar para Poto da Folha, ver como vai o vô, ele parece estar caminhando para uma outra forma de vida que eu não sei explicar. Queria poder botar minha avó no colo, e cantar canções do Luiz Gonzaga que a gente dançava nos bailes do sertão. Ela só quer, só pensa em namorar, ela só quer, só pensa em namorar...
sexta-feira, novembro 25, 2005
Do progresso
“Deus o abençoou e disse: Crescei e multiplicai, e enchei a terra e sujeitai-a e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves do céu e sobre todos os animais que se movem sobre a terra”.
Gênesis (I, 22)
“Tu comerás o teu pão com o suor do teu rosto, até que te tornes na terra, de que foste tomado; porque tu és pó e em pó te hás de tornar”.
Gênesis (I, 19)
A arte pela arte, o mundo pelo mundo
A admiração de Ricardo pelas coisas do Rio lhe provocava no peito uma cadência inebriante, a contemplação do artista perante o mundo, o mundo que é a sua própria arte. A arte pela arte, o mundo pelo mundo.
Ricardo morava no Edifício Ulisses, no Leblon, um enorme e suntuoso prédio que ostentava luxo em meio a favelas onde o caos se pronunciava por tiroteios na calada da noite. Quando visitas vindas de outras cidades perguntavam o motivo de tantos fogos de artifício, Ricardo explicava de maneira plácida e tom afetado que na verdade eram tiros. Os visitantes disfarçavam o espanto por pura polidez.
Ele, como bom anfitrião, para tirá-los de tamanho desconforto, não deixava de mostrar os seus quadros espalhados por toda a casa, lado a lado de fotos tiradas na Europa. A obra de que ele mais gostava e tinha imenso orgulho, ou talvez soberba, chamava-se “A pomba”.
Certa vez estava ele na sacada do apartamento, bem diante do imenso morro onde nas entranhas havia uma guerra entre policiais e traficantes. Ali atiraram por engano numa mulher que estava parindo no meio da rua. O pai de Ricardo, o juiz Fernando, perguntou o que tanto entretinha o filho por horas na sacada, às vezes hipnotizado com o pincel na mão e a tela na frente como se não existisse. Ricardo pediu para não ser incomodado, pois aquele era um momento sublime de transe artístico, e era um pecado invadir o templo da sua criação.
Estava Fernando na sala de estar fumando um charuto cubano, quando seu filho veio com os olhos reluzentes e o ar altivo lhe mostrar sua obra-prima. Ele não pôde conter uma enorme vaidade ao contemplar a arte do filho. Ricardo havia pintado uma belíssima pomba branca voando pelo céu azul do Rio de Janeiro.
Ricardo morava no Edifício Ulisses, no Leblon, um enorme e suntuoso prédio que ostentava luxo em meio a favelas onde o caos se pronunciava por tiroteios na calada da noite. Quando visitas vindas de outras cidades perguntavam o motivo de tantos fogos de artifício, Ricardo explicava de maneira plácida e tom afetado que na verdade eram tiros. Os visitantes disfarçavam o espanto por pura polidez.
Ele, como bom anfitrião, para tirá-los de tamanho desconforto, não deixava de mostrar os seus quadros espalhados por toda a casa, lado a lado de fotos tiradas na Europa. A obra de que ele mais gostava e tinha imenso orgulho, ou talvez soberba, chamava-se “A pomba”.
Certa vez estava ele na sacada do apartamento, bem diante do imenso morro onde nas entranhas havia uma guerra entre policiais e traficantes. Ali atiraram por engano numa mulher que estava parindo no meio da rua. O pai de Ricardo, o juiz Fernando, perguntou o que tanto entretinha o filho por horas na sacada, às vezes hipnotizado com o pincel na mão e a tela na frente como se não existisse. Ricardo pediu para não ser incomodado, pois aquele era um momento sublime de transe artístico, e era um pecado invadir o templo da sua criação.
Estava Fernando na sala de estar fumando um charuto cubano, quando seu filho veio com os olhos reluzentes e o ar altivo lhe mostrar sua obra-prima. Ele não pôde conter uma enorme vaidade ao contemplar a arte do filho. Ricardo havia pintado uma belíssima pomba branca voando pelo céu azul do Rio de Janeiro.
quinta-feira, novembro 24, 2005
Das patologias
Hans Castorp, o personagem principal de A montanha mágica, do Thomas Mann, reflete ser a vida uma doença, uma espécie de perturbação enferma da matéria, enquanto que a matéria era uma excrescência da patologia do imaterial.
Depois de me defrontar com tais elucubrações, eu me pergunto: acaso não seria o amor uma enfermidade da vida?
Depois de me defrontar com tais elucubrações, eu me pergunto: acaso não seria o amor uma enfermidade da vida?
quarta-feira, novembro 23, 2005
Cachaça de mi corazón - histórias de todos os dias e a outra história
Ana vai buscar o marido que só vive no bar e a deixa sozinha sem sexo, amor, carinho, e ajuda na hora de criar os três filhos.
- Eduardo, venha pra casa, eu tô te avisando, senão eu vou embora pra casa da mamãe e levo as crianças, eu não agüento mais essa merda!
-A minha grande paixão é a cachaça, mulher, não venha agora me dizer que não sabia. Casou comigo porque quis, você é a mulher da casa, e a cachaça é a do meu coração.
Ela voltou ao seu lar doce lar com a arma dele no bolso do avental vencida.
- Eduardo, venha pra casa, eu tô te avisando, senão eu vou embora pra casa da mamãe e levo as crianças, eu não agüento mais essa merda!
-A minha grande paixão é a cachaça, mulher, não venha agora me dizer que não sabia. Casou comigo porque quis, você é a mulher da casa, e a cachaça é a do meu coração.
Ela voltou ao seu lar doce lar com a arma dele no bolso do avental vencida.
Pelo amor de Maria
Na porta, José se arrasta pelo chão nadando em lágrimas que inventou. Segurando o pé de Maria, ele implora pelo amor que ela tem por ele e ele não tem de volta.
-Meu amor, eu fiz um poema pra ti.
-Qual?- perguntou José, contendo os prantos cínicos e com os olhos arregalados em suspeita.
-Vá se fuder.
E José se fudeu depois que Maria bateu a porta.
-Meu amor, eu fiz um poema pra ti.
-Qual?- perguntou José, contendo os prantos cínicos e com os olhos arregalados em suspeita.
-Vá se fuder.
E José se fudeu depois que Maria bateu a porta.
terça-feira, novembro 22, 2005
O mundo faz cinema e o cinema faz mundo
Adorno afirma que o cinema tenta se aproximar ao máximo na sua dimensão imagética do universo empírico para o espectador perceber o mundo como uma espécie de continuação da tela. Além disso, segundo ele, a seqüência célere de imagens impede a reflexão se o espectador quiser continuar acompanhando o filme. À primeira vista, isso pode parecer um exagero tremendo do apocalíptico Adorno. Mas tomadas às devidas proporções, até que faz sentido.
Assistir a um filme pode ser uma espécie de transe. Se ele for violento e mexer com as pulsões de tanatus, a agressividade reprimida pode encontrar sua expressão. Igual a quando as crianças saem dando chutes para todos os lados depois de assistir a um filme como Missão Impossível. Entretanto, existe uma diferença entre pessoas saudáveis e psicopatas, e foi essa a distinção que o Adorno não estabeleceu.
Os indivíduos “normais” são influenciáveis pela obra fílmica, mas estabelecem uma distinção entre fantasia e realidade, justamente o que não está ao alcance dos psicopatas, como foi o caso dos jovens assassinos de Columbine. Eles saíram atirando em colegas e professores de sala vestindo sobretudos semelhantes aos de Neo e Trinity em Matrix. Entretanto, os “normais” não deixam de se vestir como os atores famosos, imitar personagens, como se a vida fosse uma continuação do filme.
Quando o Adorno fala que o cinema paralisa a reflexão e impede o caos cognitivo, ele está certo na maioria das vezes em se tratando do que é produzido na indústria cultural. As produções da grande indústria cinematográfica não consideram o espectador como produtor de significado, e sim como mero decodificador de historinhas a serem contadas ou/e efeitos especiais caprichados sem nenhuma proposta mais ousada esteticamente.
O transe do cinema pode ser muito mais rico quando a contemplação provoca a reflexão, faz o indivíduo ser autônomo e criar junto com o diretor-autor. Essa é a arte autêntica, revolucionária, porque a arte busca antes de tudo libertar o indivíduo, para dessa forma pensar a mudança social. E o sertão vai virar mar, e o mar vai virar sertão...
segunda-feira, novembro 21, 2005
Maria não pode cantar
Mamãe, eu queria saber por que o tio está ficando cada dia mais magro, agora tem que tomar soro, e a senhora dá banho nele. Filha, isso passa, seu tio está doente, mas já já ele fica bom. Mãe, ouvi dizer que ele está com câncer, a senhora está escondendo de mim, não é? Não, minha filha, de jeito nenhum, fique calma, seu tio vai melhorar.
Música no quintal. Maria salta, canta em alguma língua ininteligível da sua fantástica imaginação uma canção dos Backstreet boys. A mãe grita da janela como se o que ela estivesse fazendo fosse uma espécie de crime, e a manda lavar os pratos.
Na cozinha, Maria canta suspirando outra música dos Backstreet boys. Dessa vez sua mãe aparece furiosa, puxa-a pelo braço que Maria balançava no ar de acordo com o ritmo, e fita-a com um ar violentamente repreensivo.
O seu tio está morrendo ein, ein, e você fica aí cantando, você não tem vergonha, tenha mais respeito, daqui a uns dias ele morre, sabia, e você aí cantando.
Maria desembesta a chorar, e passa a mão ensaboada na cara, soluçando a dor que não cabia no peito, a cara vermelha, o bico de criança. A mãe arrependida só fazia abraça-la e passar a mão na sua cabecinha, mainha você não me avisou, mainha. Eu sei, minha filha, eu sei, fique calma.
Música no quintal. Maria salta, canta em alguma língua ininteligível da sua fantástica imaginação uma canção dos Backstreet boys. A mãe grita da janela como se o que ela estivesse fazendo fosse uma espécie de crime, e a manda lavar os pratos.
Na cozinha, Maria canta suspirando outra música dos Backstreet boys. Dessa vez sua mãe aparece furiosa, puxa-a pelo braço que Maria balançava no ar de acordo com o ritmo, e fita-a com um ar violentamente repreensivo.
O seu tio está morrendo ein, ein, e você fica aí cantando, você não tem vergonha, tenha mais respeito, daqui a uns dias ele morre, sabia, e você aí cantando.
Maria desembesta a chorar, e passa a mão ensaboada na cara, soluçando a dor que não cabia no peito, a cara vermelha, o bico de criança. A mãe arrependida só fazia abraça-la e passar a mão na sua cabecinha, mainha você não me avisou, mainha. Eu sei, minha filha, eu sei, fique calma.
Brilho eterno de uma mente sem lembranças
Imagine poder apagar tudo o que você viveu com alguém especial para poder seguir em frente com sua vida? É o que Clementine, interpretada por Kate Winslet, faz para esquecer Joel, vivido por Jim Carrey. Brilho eterno de uma mente sem lembranças é um filme sem grandes pretensões intelectuais, mas também sem a imbecilidade comum às produções do cinema pipocão, dirigido por Michel Gondry, e com roteiro do aclamado Charlie Kaufman, roteirista de outras peripécias cinematográficas como Quero ser John Malkovich e Adaptação. É gostoso ver um filme desses que parece falar de gente como a gente, para gente como a gente, sem intelectualizar demais ou subestimar a nossa inteligência. E nada como assistir a uma película dessas na madrugada.
Clementine é uma mulher intensa, impulsiva, extrovertida, que tem uma necessidade gritante de falar sobre si mesma e buscar novas aventuras a cada momento. Ela se apaixona por Joel, um homem tímido, retraído, sempre guardado no seu pequeno escondido mundo. Ela queria tudo e agora. Para ele, “legal” era ótimo. Ela era tão instável que até seu cabelo estava sempre mudando de cor. Ele tinha os seus dias todos iguais, um diário onde não havia nada escrito.
Joel fica deslumbrado com o encantamento que Clementine tem pelas coisas do mundo, assim como ela quer conhecê-lo e se aventura em fazê-lo se embriagar com a vida. Só que com o passar do tempo os interesses deles se chocam, Joel é muito reservado, às vezes se sente invadido, e os impulsos incontroláveis de Clementine fazem a relação se tornar estressante. A oposição entre os dois, que de início parecia formar um conjunto perfeito, aos poucos vai se tornando fator de crise na relação.
As brigas e os bons momentos vividos pelo casal são reconstruídos no labirinto da mente de Joel no decorrer do filme. Clementine paga à empresa Lacuna para apagar Joel da sua memória e assim ela poder seguir em frente com sua vida. Ele recorre à mesma empresa quando sabe da decisão dela, só que se arrepende no meio do processo e tenta manter Clementine viva na sua mente.
O filme é conduzido sob o ponto de vista de Joel, pelas lembranças dele, e há uma confusão entre passado e presente, a narrativa é não-linear e repleta de flashbacks, onde por vezes o que Joel escuta ou pensa enquanto está sofrendo uma lavagem cerebral influencia a rememoração dos fatos. Afinal nada do que lembramos é objetivo, uma boa parte é inventada e recriamos semanticamente o passado. Então boa parte do filme é a reinvenção de Joel de tudo o que aconteceu.
É interessante ver que eles se conhecem de novo, uma espécie de recomeço, mas tudo estava gravado pela Lacuna, as confissões de ambos sobre o porquê de terem decidido apagar o outro da memória. Eles tentam reviver a relação, mas se deparam com antigas feridas, e tudo já havia se perdido, toda a pureza do relacionamento deles foi destruída pelo medo de se envolver, pela falta de comunicação, pela hostilidade nascida de tudo isso.
Joel e Clementine são de carne e osso, cheios de angústias e nada holywoodianos. Lembro-me de uma frase hilária dela repetida várias vezes durante o filme, “se você está procurando alguém que irá te salvar essa pessoa não sou eu, eu sou apenas uma pobre infeliz procurando um pouco de paz”. Nesse mundo caótico todos querem um pouco de paz, mas criam muitas expectativas, e acabam se perdendo num emaranhado de temores e frustrações. É a angústia da contemplação do outro, como o próprio Sartre diria, o inferno são os outros.
O filme é contra a reificação das relações humanas, num mundo onde as pessoas têm medo umas das outras e acham que qualquer um é deletável. Será que é mesmo legal esquecer de tudo o que se viveu ao lado de outra pessoa, da aventura de conhecer alguém cheio de defeitinhos e coisas boas? Alguém que já faz parte do que você é e já te ensinou algo que você vai levar para a vida? E as lembranças que fazem parte da sua memória poética? São essas as perguntas a que o filme se propõe.
domingo, novembro 20, 2005
O que não é neurose
Adorei essas explicações a respeito de neurose que vi num site de psicologia. Detesto os comentários preconceituosos e mal informados que escuto por aí sobre as pessoas neuróticas... Até porque sou assumidamente uma delas e uma das coisas que mais ojerizo na vida é senso comum. Aí vai...
Neurose não é:
- Falta de Homem (ou de Mulher)
- Falta de pensamento positivo
- Cabeça ou mente fraca
- Falta de vontade
- Falta de ter o que fazer
- Ruindade ou maldade
- Senvergonhice
- Influência espiritual
- Mal-olhado ou encosto
- Coisa "de sua cabeça" (isso é caspa)
- Falta de ter passado por dificuldades de verdade (isso é azar)
- Por nunca ter passado dificuldades
- Falta de uma boa surra
- A "gente é que permite"
- Conseqüência de ter tido de tudo na vida
- Conseqüência de não ter tido nada na vida
- Porque o pai brigava com a mãe
- Porque o pai separou da mãe
- Porque o pai era enérgico
- Porque o pai era omisso
- Porque não teve pai
- Porque a mãe era protetora
- Porque a mãe era omissa
- Porque não tinha mãe
- Porque soube que a mãe não era essa
- Porque "forçou demais a cabeça"
- Porque nunca "teve que forçar a cabeça"
- Porque a menstruação subiu para a cabeça
- Finalmente, porque misturou manga com leite...
A Neurose é uma Doença Mental?
Não, a Neurose não é sonônimo de loucura, assim como também, a pessoa neurótica não apresenta nenhum comprometimento de sua inteligência, nem de contato com a realidade. Seus sentimentos também são normais. Eles amam, sentem alegria, tristeza, raiva, etc., como qualquer pessoa.A diferença entre uma pessoa neurótica e uma normal é em relação à quantidade de emoções e sentimentos e não quanto à qualidade deles. Os neuróticos ficam mais ansiosos, mais angustiados, mais deprimidos, mais sugestionáveis, mais teatrais, mais impressionados, mais preocupados, com mais medo, enfim, eles têm as mesmas emoções que todos nós temos, porém, exageradamente.A Neurose, portanto, não é uma doença mental é, sobretudo, uma doença da personalidade.
Neurose não é:
- Falta de Homem (ou de Mulher)
- Falta de pensamento positivo
- Cabeça ou mente fraca
- Falta de vontade
- Falta de ter o que fazer
- Ruindade ou maldade
- Senvergonhice
- Influência espiritual
- Mal-olhado ou encosto
- Coisa "de sua cabeça" (isso é caspa)
- Falta de ter passado por dificuldades de verdade (isso é azar)
- Por nunca ter passado dificuldades
- Falta de uma boa surra
- A "gente é que permite"
- Conseqüência de ter tido de tudo na vida
- Conseqüência de não ter tido nada na vida
- Porque o pai brigava com a mãe
- Porque o pai separou da mãe
- Porque o pai era enérgico
- Porque o pai era omisso
- Porque não teve pai
- Porque a mãe era protetora
- Porque a mãe era omissa
- Porque não tinha mãe
- Porque soube que a mãe não era essa
- Porque "forçou demais a cabeça"
- Porque nunca "teve que forçar a cabeça"
- Porque a menstruação subiu para a cabeça
- Finalmente, porque misturou manga com leite...
A Neurose é uma Doença Mental?
Não, a Neurose não é sonônimo de loucura, assim como também, a pessoa neurótica não apresenta nenhum comprometimento de sua inteligência, nem de contato com a realidade. Seus sentimentos também são normais. Eles amam, sentem alegria, tristeza, raiva, etc., como qualquer pessoa.A diferença entre uma pessoa neurótica e uma normal é em relação à quantidade de emoções e sentimentos e não quanto à qualidade deles. Os neuróticos ficam mais ansiosos, mais angustiados, mais deprimidos, mais sugestionáveis, mais teatrais, mais impressionados, mais preocupados, com mais medo, enfim, eles têm as mesmas emoções que todos nós temos, porém, exageradamente.A Neurose, portanto, não é uma doença mental é, sobretudo, uma doença da personalidade.
quinta-feira, novembro 17, 2005
Devolva o filho que é da terra
Eu me rendo ao chão que descreve na areia sofrida as dores vividas como um batalhão passando por sobre o meu peito. É verdade, eu não sabia que na estrada se podia encontrar com a própria alma, supunha eu tê-la deixado enterrada debaixo da areia, e agora a vejo aqui, diante de mim, assombrando-me na noite como um fantasma maldito. Vá embora, e não me assuste com sua cara feia, triste, descorada, vai que eu quero seguir caminhando, e nessa estrada não cabe meu corpo e a alma.
Pego os pedregulhos do chão, admiro os ossos da terra, e jogo para cima enquanto meus olhos reluzem. As pedras caem cantando junto com os grilos da noite, e onde estará o sapo nojento que está prestes a pular por sobre as minhas costas? Qual alívio sentir derramar na terra a água suja que o corpo expulsou. Os mosquitos se fartam com minhas pernas, e o mato gigante dá medo da cobra, que pode estar onde eu ouvi o barulho do mato se mexendo.
Mulher como eu não chora, tem ódio, isso sim. O corpo está cheio de marcas do ciúme e do fracasso do meu marido. Quantas manhãs eu me acordei cheia de manchas roxas sem saber de onde vinham? Era o costume desgraçado de apanhar, às vezes bêbada, às vezes dormindo, e os hematomas insistiam em me lembrar que eu tinha tomado uma surra do canalha a quem chamam meu homem.
Corro pelo mato, ou o mato foge de mim? O vento joga os meus cabelos na boca, e eu os como involuntariamente com suor. A minha saia dançando com o vento me faz sentir livre, até que a sandália velha sai do pé. Vou buscá-la e vejo pés de homem. Antes de ver o seu rosto, eu já sabia que era meu pai. Ergo-me lentamente como quem tem medo, e logo ao encarar o pai recebo uma bofetada. Era um ritual de humilhação. Ele segurou pelo meu braço com força, e caminhou à frente como se eu fosse sua posse, sem dizer palavras, com o três oitão bem à vista pendurado na cintura, ele disse que mataria uma filha desonrada.
- Pai, eu estou grávida.
Ele me fitou com ódio preciso.
- E queria fugir do seu marido com o filho dele na barriga, ein? Com meu neto?
Nunca tive uma conversa franca com meu pai, e não era agora que iria ter. Todos os seus diálogos se resumiam a olhares repreensivos, e sempre que tentei me pronunciar fui acusada de desrespeito, sofri surras que me doeram por semanas. Acaso não era agora que eu iria lhe falar do meu sofrimento, dos meus medos, das minhas angústias, ou dos maus tratos recebidos do meu marido. Ele mesmo, o pai, dava tapas na cara da minha mãe quando o patrão atrasava o salário, dizendo que estava com fome, trabalho o dia inteiro, você só faz ficar em casa, e eu fico aqui esperando a hora em que a sua preguiça vai deixar você fazer minha comida.
Voltando para casa, fito os meus pés cheios de calos que caminham sofridos sobre a terra seca, onde eu devia ter deixado a minha alma. As lágrimas ficam querendo sair, mas eu prendo com tanto gosto, que sinto uma dor no peito e a tristeza passando pela garganta. Não olho para a cara do meu marido, deixo-o lá, recebendo do meu pai a notícia de que eu terei um filho, ah, tomara seja homem, vamos tomar uma pinga pra comemorar. No quarto, acendo uma vela junto à estátua de Nossa Senhora, e rezo meu terço sem pensar nas orações, só pedindo pra minha santa não me deixar matar meu filho e eu, pra eu ser forte com as dores desse mundo de cruzes. Amém.
Pego os pedregulhos do chão, admiro os ossos da terra, e jogo para cima enquanto meus olhos reluzem. As pedras caem cantando junto com os grilos da noite, e onde estará o sapo nojento que está prestes a pular por sobre as minhas costas? Qual alívio sentir derramar na terra a água suja que o corpo expulsou. Os mosquitos se fartam com minhas pernas, e o mato gigante dá medo da cobra, que pode estar onde eu ouvi o barulho do mato se mexendo.
Mulher como eu não chora, tem ódio, isso sim. O corpo está cheio de marcas do ciúme e do fracasso do meu marido. Quantas manhãs eu me acordei cheia de manchas roxas sem saber de onde vinham? Era o costume desgraçado de apanhar, às vezes bêbada, às vezes dormindo, e os hematomas insistiam em me lembrar que eu tinha tomado uma surra do canalha a quem chamam meu homem.
Corro pelo mato, ou o mato foge de mim? O vento joga os meus cabelos na boca, e eu os como involuntariamente com suor. A minha saia dançando com o vento me faz sentir livre, até que a sandália velha sai do pé. Vou buscá-la e vejo pés de homem. Antes de ver o seu rosto, eu já sabia que era meu pai. Ergo-me lentamente como quem tem medo, e logo ao encarar o pai recebo uma bofetada. Era um ritual de humilhação. Ele segurou pelo meu braço com força, e caminhou à frente como se eu fosse sua posse, sem dizer palavras, com o três oitão bem à vista pendurado na cintura, ele disse que mataria uma filha desonrada.
- Pai, eu estou grávida.
Ele me fitou com ódio preciso.
- E queria fugir do seu marido com o filho dele na barriga, ein? Com meu neto?
Nunca tive uma conversa franca com meu pai, e não era agora que iria ter. Todos os seus diálogos se resumiam a olhares repreensivos, e sempre que tentei me pronunciar fui acusada de desrespeito, sofri surras que me doeram por semanas. Acaso não era agora que eu iria lhe falar do meu sofrimento, dos meus medos, das minhas angústias, ou dos maus tratos recebidos do meu marido. Ele mesmo, o pai, dava tapas na cara da minha mãe quando o patrão atrasava o salário, dizendo que estava com fome, trabalho o dia inteiro, você só faz ficar em casa, e eu fico aqui esperando a hora em que a sua preguiça vai deixar você fazer minha comida.
Voltando para casa, fito os meus pés cheios de calos que caminham sofridos sobre a terra seca, onde eu devia ter deixado a minha alma. As lágrimas ficam querendo sair, mas eu prendo com tanto gosto, que sinto uma dor no peito e a tristeza passando pela garganta. Não olho para a cara do meu marido, deixo-o lá, recebendo do meu pai a notícia de que eu terei um filho, ah, tomara seja homem, vamos tomar uma pinga pra comemorar. No quarto, acendo uma vela junto à estátua de Nossa Senhora, e rezo meu terço sem pensar nas orações, só pedindo pra minha santa não me deixar matar meu filho e eu, pra eu ser forte com as dores desse mundo de cruzes. Amém.
sexta-feira, novembro 11, 2005
A eterna saudade das coisas que não passaram
Você já teve saudade do que está acontecendo no presente? Eu já. Em um determinado momento danado de gostoso da vida, às vezes me pego com a alma indo e voltando num viver de miragens. É como se ela saltasse para algum lugar imaginário no futuro, e eu sentisse o meu corpo velho e cansado de braços rendidos, o olhar para o horizonte, aquele olhar de quem já fez tudo que tinha de fazer na vida, e agora só a contempla como uma obra de arte acabada. O meu ser volta para o presente e sente o agora com grande nostalgia, como se aquele tão afortunado instante fosse desde já só uma recordação, uma foto num álbum esquecido, certa vez encontrado numa faxina na casa.
A alma sente nessas horas o presente como se já o tivesse perdido tamanho é o encantamento que ele proporciona. A grande dor das coisas que estão passando e a gente sabe que vai perder. Não é angústia, é contemplação distante de um presente efêmero. A melancolia plácida como as águas paradas, junto com uma felicidade desiludida, sem a inocência de viver o momento como se ele fosse eterno, e já sentindo saudade do presente.
Bem quando eu olho para as caras embriagadas de euforia dos meus amigos em meio a farras épicas num lugar qualquer desse mundão, e admiro a beleza da ousadia da juventude, os beijos fáceis, os palavrões ditos com gosto, o se deitar na grama para apreciar as estrelas livres como somos. Aí eu me pego absorta pensando no porvir em meio às gargalhadas deles, no que não poderei fazer, ou nem ao menos terei vontade por causa do cansaço de viver.
Igual a quando a gente está vivendo uma coisa bem bonita, e pára para tirar uma foto. Aí perde o brilho, e tudo sai planejado, com os sorrisos sem graça e cheios de dentes. Assim acontece quando se sente saudade do presente. A gente vê o quanto aquele momento é importante, e o vive como se ele já fosse uma fotografia. Uma fotografia encontrada por acaso no meio da bagunça da casa, quando se procurava por um objeto qualquer.
quinta-feira, novembro 10, 2005
O dia em que não havia cuscuz
Tio Deval veio me visitar essa semana. Está cada vez mais gordo, ele que era o típico magro de ruim na juventude, agora tem uma barriga saltando da calça formando uma excêntrica protuberância. Deval era insuportável quando jovem, lembro-me que minha prima Andréa o odiava porque ele nos colocava em cima da cama e dizia para dali não sairmos de jeito nenhum, senão ele mandava uma “cinturãozada”.
- Mas a gente não fez nada!- dizia ela cheia de indignação muito bem embasada e clamando por justiça. Eu vou brincar, não quero nem saber.
Eu sinceramente não estava nem aí, sabia que era brincadeira do meu tio, e até o chamava de bobo, idiota, aí quando ele perguntava “como é?”, eu dizia, oxe, eu estava falando com as paredes (frase estranhamente imbecil que eu proferia com orgulho embriagado de sapiência). Eu ria da situação, e minha prima chorava, não por fraqueza, mas com a mais pura ira que lhe fazia a cara vermelha por baixo dos caracóis amarelos dos seus cabelos.
Sempre que vejo Tio Deval não posso deixar de lembrar das brigas homéricas dele com Andréa, e essa foi a minha primeira recordação ao vê-lo com o suor descendo na testa e os gordos braços abertos vindo me abraçar. Passamos horas conversando, ele sempre superestimando minhas virtudes e dizendo que sou capaz de fazer tudo em que não acredito. Para meu tio eu sou o auge da inteligência e da beleza entre as mulheres, ele me dedica um “complexo de pai” mal resolvido. E assim como todo bom pai, lembra de histórias hilárias e embaraçosas a meu respeito.
Estávamos eu e meu tio tomando nosso típico cafezinho na cozinha, que a gente sempre toma entre conversas inflamadas em suas raras visitas, quando eu disse a minha mãe que não iria comer cuscuz, e sim sanduíche de presunto e queijo. Não deu outra. Tio Deval se espantou com o meu pedido, e lembrou de uma história curiosa de quando eu tinha uns oito anos.
Era um daqueles raríssimos dias em que minha mãe se dava ao luxo de comer fora, e lá se foi toda a família para a pizzaria Janaína. Todos se acomodaram satisfeitíssimos de estarem prestes a fazer uma farta refeição fora de casa, alegria de pobre, se é que você me entende, quando minha mãe perguntou:
- Filhota, você vai querer pizza de quê?
Estava eu metida num vestido bordado e com fitas coloridas no cabelo diante de uma enorme massa desconhecida. Comecei a fazer uma cara de menina emburrada cheia de bico ameaçando chorar, e disse tão decidida ao ponto de aparentar revolta:
- Mamãe, eu não quero isso daí não. Tem cuscuz?
Todos os meus familiares desembestaram a rir, e minha mãe só faltou de descabelar dizendo “minha filha, você me mata de vergonha!”, com um sorriso azedo no rosto e fitando os atentos olhares desconhecidos. Não entendi bulhufas do por que da euforia exacerbada geral, eu só sabia que queria comer cuscuz e isso não se servia naquele maldito local. Nesse dia eu aprendi a gostar de pizza.
- Mas a gente não fez nada!- dizia ela cheia de indignação muito bem embasada e clamando por justiça. Eu vou brincar, não quero nem saber.
Eu sinceramente não estava nem aí, sabia que era brincadeira do meu tio, e até o chamava de bobo, idiota, aí quando ele perguntava “como é?”, eu dizia, oxe, eu estava falando com as paredes (frase estranhamente imbecil que eu proferia com orgulho embriagado de sapiência). Eu ria da situação, e minha prima chorava, não por fraqueza, mas com a mais pura ira que lhe fazia a cara vermelha por baixo dos caracóis amarelos dos seus cabelos.
Sempre que vejo Tio Deval não posso deixar de lembrar das brigas homéricas dele com Andréa, e essa foi a minha primeira recordação ao vê-lo com o suor descendo na testa e os gordos braços abertos vindo me abraçar. Passamos horas conversando, ele sempre superestimando minhas virtudes e dizendo que sou capaz de fazer tudo em que não acredito. Para meu tio eu sou o auge da inteligência e da beleza entre as mulheres, ele me dedica um “complexo de pai” mal resolvido. E assim como todo bom pai, lembra de histórias hilárias e embaraçosas a meu respeito.
Estávamos eu e meu tio tomando nosso típico cafezinho na cozinha, que a gente sempre toma entre conversas inflamadas em suas raras visitas, quando eu disse a minha mãe que não iria comer cuscuz, e sim sanduíche de presunto e queijo. Não deu outra. Tio Deval se espantou com o meu pedido, e lembrou de uma história curiosa de quando eu tinha uns oito anos.
Era um daqueles raríssimos dias em que minha mãe se dava ao luxo de comer fora, e lá se foi toda a família para a pizzaria Janaína. Todos se acomodaram satisfeitíssimos de estarem prestes a fazer uma farta refeição fora de casa, alegria de pobre, se é que você me entende, quando minha mãe perguntou:
- Filhota, você vai querer pizza de quê?
Estava eu metida num vestido bordado e com fitas coloridas no cabelo diante de uma enorme massa desconhecida. Comecei a fazer uma cara de menina emburrada cheia de bico ameaçando chorar, e disse tão decidida ao ponto de aparentar revolta:
- Mamãe, eu não quero isso daí não. Tem cuscuz?
Todos os meus familiares desembestaram a rir, e minha mãe só faltou de descabelar dizendo “minha filha, você me mata de vergonha!”, com um sorriso azedo no rosto e fitando os atentos olhares desconhecidos. Não entendi bulhufas do por que da euforia exacerbada geral, eu só sabia que queria comer cuscuz e isso não se servia naquele maldito local. Nesse dia eu aprendi a gostar de pizza.
segunda-feira, novembro 07, 2005
domingo, novembro 06, 2005
O canto das sereias
O som da campainha ecoa na noite avisando que estou chegando de um longo e penoso dia de trabalho. Contemplo a cerca elétrica da minha casa e ela estranhamente me proporciona uma sensação de medo. A cerca me lembrava o ladrão que poderia chegar, e eu me sentia vulnerável contemplando o imenso muro da mansão. Fito os olhos do meu enorme cão de guarda por entre as frestas do portão, e de repente minha esposa aparece vestida numa camisola rosa de seda frágil para me receber com um olhar de sono, de cansaço, um olhar que se desviava com indiferença do meu. Ouço o som da TV que distraía as crianças na sala, e eles me dão um oi como se não notassem a minha presença. Tiro a gravata que me sufoca. Boa noite.
Sigo correndo pelos corredores escuros e macabros da casa, era um labirinto sem fim nem começo. Finalmente chego à piscina e avisto a minha mulher com os seios desnudos entoando um canto que mais parecia um grito, e com os dois braços amarrados por correntes fixadas nas margens. Percebo assombrado que ela tinha uma cauda de peixe no lugar das pernas. Ouvir o seu canto é uma tortura, sinto como se facas atravessassem meus ouvidos, e grito pare, pare pelo amor de Deus, eu não agüento mais. Caio no chão do jardim como quem se rende, e começo a comer o mato de forma sedenta e insaciável, até me dar conta de que toda a grama já havia sido devorada pela minha fome. Restava só a terra, e eu me esfrego na terra, banho-me de terra, com a terra eu me misturo.
Vejo então um osso enterrado na areia, e começo a mordê-lo. Não posso acreditar no que vejo quando percebo que minhas mãos se tornaram patas e eu só conseguia andar de quatro. Tento gritar palavras de desespero, mas o que consigo é só latir e latir, até acordar o meu dono, um homem com o meu corpo, e, para meu espanto, com a cabeça do meu cão de guarda. Ele fala com a minha voz, chuta-me com desprezo e me manda calar a boca. Choro, choro, mas as lágrimas não saem, ficam todas presas na minha garganta, e minha garganta dói, dói de desespero. Olho para o vidro da porta da sala de jantar e percebo que meu rosto permanecia o mesmo, agora um rosto de homem preso a um corpo de cão.
Entro na casa e vejo meus três meninos nus amarrados nas cadeiras da sala de jantar, eles choram e pedem pai, por favor, ajude a gente, o homem de preto com luvas nos amarrou aqui e levou as jóias da mamãe, seu dinheiro, nossos relógios... O homem de preto aparece com a sua sombra, dá-me uns chutes, coloca uma coleira no meu pescoço e me prende ao pé da gigante mesa de madeira. Meus filhos não param de chorar e ficam exigindo com seus pequenos olhos aguados cor de fogo que eu faça alguma coisa. Eu me mexo como uma fera, corro, salto, sabendo ser inúteis os meus esforços, mas precisava expressar minha angústia.
O meu dono me solta enquanto fito a sua sombra. Corro para o jardim e fico cheirando o chão, até começar a cavar e encontrar um osso de ouro. Eu mordo, lambuzo com gosto o osso de ouro, que tem um sabor bom e me hipnotiza com seu brilho faustoso. De repente vejo minhas patas se transformarem em mãos brancas pálidas e mexo os dedos como se nunca antes os tivera. Fico ereto e contemplo meus pés que agora andam sem jeito, desnorteados, tortos. Estava sem equilíbrio, mas consegui me manter de pé. Visto a gravata com arrogância, um olhar altivo no espelho, e coloco o relógio que estava em cima da cômoda do quarto. Já são horas de ir para o trabalho.
Sigo correndo pelos corredores escuros e macabros da casa, era um labirinto sem fim nem começo. Finalmente chego à piscina e avisto a minha mulher com os seios desnudos entoando um canto que mais parecia um grito, e com os dois braços amarrados por correntes fixadas nas margens. Percebo assombrado que ela tinha uma cauda de peixe no lugar das pernas. Ouvir o seu canto é uma tortura, sinto como se facas atravessassem meus ouvidos, e grito pare, pare pelo amor de Deus, eu não agüento mais. Caio no chão do jardim como quem se rende, e começo a comer o mato de forma sedenta e insaciável, até me dar conta de que toda a grama já havia sido devorada pela minha fome. Restava só a terra, e eu me esfrego na terra, banho-me de terra, com a terra eu me misturo.
Vejo então um osso enterrado na areia, e começo a mordê-lo. Não posso acreditar no que vejo quando percebo que minhas mãos se tornaram patas e eu só conseguia andar de quatro. Tento gritar palavras de desespero, mas o que consigo é só latir e latir, até acordar o meu dono, um homem com o meu corpo, e, para meu espanto, com a cabeça do meu cão de guarda. Ele fala com a minha voz, chuta-me com desprezo e me manda calar a boca. Choro, choro, mas as lágrimas não saem, ficam todas presas na minha garganta, e minha garganta dói, dói de desespero. Olho para o vidro da porta da sala de jantar e percebo que meu rosto permanecia o mesmo, agora um rosto de homem preso a um corpo de cão.
Entro na casa e vejo meus três meninos nus amarrados nas cadeiras da sala de jantar, eles choram e pedem pai, por favor, ajude a gente, o homem de preto com luvas nos amarrou aqui e levou as jóias da mamãe, seu dinheiro, nossos relógios... O homem de preto aparece com a sua sombra, dá-me uns chutes, coloca uma coleira no meu pescoço e me prende ao pé da gigante mesa de madeira. Meus filhos não param de chorar e ficam exigindo com seus pequenos olhos aguados cor de fogo que eu faça alguma coisa. Eu me mexo como uma fera, corro, salto, sabendo ser inúteis os meus esforços, mas precisava expressar minha angústia.
O meu dono me solta enquanto fito a sua sombra. Corro para o jardim e fico cheirando o chão, até começar a cavar e encontrar um osso de ouro. Eu mordo, lambuzo com gosto o osso de ouro, que tem um sabor bom e me hipnotiza com seu brilho faustoso. De repente vejo minhas patas se transformarem em mãos brancas pálidas e mexo os dedos como se nunca antes os tivera. Fico ereto e contemplo meus pés que agora andam sem jeito, desnorteados, tortos. Estava sem equilíbrio, mas consegui me manter de pé. Visto a gravata com arrogância, um olhar altivo no espelho, e coloco o relógio que estava em cima da cômoda do quarto. Já são horas de ir para o trabalho.
terça-feira, novembro 01, 2005
O sangue
Resvalos de luz penetram sofregamente o quarto, e eu sinto que acordar dói como um parto todos os dias. Lucas me fita com seus olhos de encantamento aflito, ele os fecha para depois abri-los como uma flor desabrochando, acaricia o meu braço abandonado e meu rosto que agora repousa sobre seu peito ofegante. Sei que velou por mim a noite inteira, tentando descobrir quais seriam os meus sonhos, e sonhando acordado com meus cabelos, meus seios, meu ventre, principalmente meu ventre, que agora beija com lascívia ébria em sinal de adoração.
Então segue até o armário para cumprir o ritual de todas as manhãs. Retira as cordas e me amarra como se fosse prova do seu desejo, fazendo nós mordendo a corda com a boca entreaberta de luxúria. Amarra com força segurando com as mãos cheias de veias, e me observa amarrada como se eu fosse um objeto perfeito, expressando uma devoção dolorosa. Beija-me a testa como um pai, a boca como um amante, e se despede como um filho.
- Já vou trabalhar, meu amor, trago doces quando voltar. Nunca se esqueça que eu amo você.
Dizia que me amava como se tivesse sempre dúvida de que era recíproco, e esperando um “eu te amo também”. Para mim essas palavras já haviam perdido o significado, e eu as pronunciava como quem responde “tudo bem” a um “tudo bem?”. Na verdade, toda a minha vida perdera o significado, e agora só me restava a cama, o armário, a janela coberta de cortinas, a paixão de Lucas, e as paredes do quarto.
Durante boa parte do dia eu dormia sedada pelos medicamentos tarja preta que ele me dava, e ficava conversando com meu reflexo no espelho no teto do quarto. Lucas o havia colocado lá justamente para isso, dizia que era bom falar olhando para o espelho, porque é possível observar a si mesmo por outro ângulo. Ver-se chorando, rindo, porque estamos sentindo e as nossas reações corporais são percebidas. Ele também não queria que eu esquecesse de mim, eu devia saber da minha existência.
Quando chegava a noite eu estava morta de fome, toda encharcada de urina, e às vezes não conseguia me segurar e defecava ali mesmo na cama. Ele me advertia com um ar de condescendência afetada, desamarrava-me e levava os lençóis sujos até a máquina de lavar com a calma de um protetor. Então fazia questão de me dar banho sem nenhum erotismo, deslizando a esponja sobre o meu corpo lânguido como se eu fosse a sua cria.
Nós jantávamos na mesa da sala onde uma vela solitária iluminava o ambiente. Lucas fazia questão de dar a minha comida na boca, uma sopa rala que ele mexia fazendo barulho com a colher se arrastando em círculos pelo prato, uma música torturante como as tardes na frente do espelho. Eu tentava timidamente tomar a colher da sua mão, mas ele não me deixava comer sozinha em hipótese alguma.
Certo dia um fenômeno estranho aconteceu. Eu senti algo escorrendo entre as minhas pernas, devia ser minha menstruação, supus. Depois de uma hora vi uma pequena mancha de sangue no lençol que vestia a cama. Adormeci, e quando me acordei vi pelo espelho uma enorme mancha rubra no lençol, o sangue jorrando do meu corpo e deslizando pela cama. Detive-me contemplando essa imagem refletida no espelho, como se a quisesse deixar lá, como um quadro. Não sentia dor e não sabia se estava morrendo, porque a morte deveria ter alguma dor, ou seria só a vida?
Os passos de Lucas foram se tornando cada vez mais intensos aos meus ouvidos, até que o vi agachado ao lado da cama desatando os nós. Ele me deu o mesmo banho, o mesmo jantar, ignorando o sangue que continuava jorrando da minha vagina e pingando no chão enquanto eu andava de um lado para o outro da casa. Até que foi dormir comigo, e aguardava o meu sono com uma das mãos sustentando a cabeça e a outra bem em cima de uma poça de sangue. Era ele que não notava ou não havia nenhuma hemorragia? Preferi não perguntar.
Amanheceu e Lucas havia ido embora sem se despedir e sem me amarrar na cama. Eu ainda estava sangrando, e tive tanto nojo de mim que passei o dia inteiro me lavando. O sangue descia pelo ralo em círculos, e era como se a água doesse limpando o meu corpo. Onde estaria ele, já eram seis horas.... E se de agora em diante for só eu e o espelho?
Lucas jogou as chaves na mesa, e eu me joguei aos seus pés de tanto chorar. Prometa nunca mais ir embora sem se despedir de mim, prometa nunca mais se esquecer de me amarrar, eu fiquei desesperada, você não sabe o quanto sofri hoje, por que fez isso comigo, pobre de mim que te amo. Você não me ama mais, você não quer cuidar de mim? Trouxe-me doces, qual gosto suave, você se lembrou, ainda bem, de trazer esses chocolates com gosto de vida.
- Já vou trabalhar, meu amor, trago doces quando voltar. Nunca se esqueça que eu amo você.
- Eu te amo também.
Então segue até o armário para cumprir o ritual de todas as manhãs. Retira as cordas e me amarra como se fosse prova do seu desejo, fazendo nós mordendo a corda com a boca entreaberta de luxúria. Amarra com força segurando com as mãos cheias de veias, e me observa amarrada como se eu fosse um objeto perfeito, expressando uma devoção dolorosa. Beija-me a testa como um pai, a boca como um amante, e se despede como um filho.
- Já vou trabalhar, meu amor, trago doces quando voltar. Nunca se esqueça que eu amo você.
Dizia que me amava como se tivesse sempre dúvida de que era recíproco, e esperando um “eu te amo também”. Para mim essas palavras já haviam perdido o significado, e eu as pronunciava como quem responde “tudo bem” a um “tudo bem?”. Na verdade, toda a minha vida perdera o significado, e agora só me restava a cama, o armário, a janela coberta de cortinas, a paixão de Lucas, e as paredes do quarto.
Durante boa parte do dia eu dormia sedada pelos medicamentos tarja preta que ele me dava, e ficava conversando com meu reflexo no espelho no teto do quarto. Lucas o havia colocado lá justamente para isso, dizia que era bom falar olhando para o espelho, porque é possível observar a si mesmo por outro ângulo. Ver-se chorando, rindo, porque estamos sentindo e as nossas reações corporais são percebidas. Ele também não queria que eu esquecesse de mim, eu devia saber da minha existência.
Quando chegava a noite eu estava morta de fome, toda encharcada de urina, e às vezes não conseguia me segurar e defecava ali mesmo na cama. Ele me advertia com um ar de condescendência afetada, desamarrava-me e levava os lençóis sujos até a máquina de lavar com a calma de um protetor. Então fazia questão de me dar banho sem nenhum erotismo, deslizando a esponja sobre o meu corpo lânguido como se eu fosse a sua cria.
Nós jantávamos na mesa da sala onde uma vela solitária iluminava o ambiente. Lucas fazia questão de dar a minha comida na boca, uma sopa rala que ele mexia fazendo barulho com a colher se arrastando em círculos pelo prato, uma música torturante como as tardes na frente do espelho. Eu tentava timidamente tomar a colher da sua mão, mas ele não me deixava comer sozinha em hipótese alguma.
Certo dia um fenômeno estranho aconteceu. Eu senti algo escorrendo entre as minhas pernas, devia ser minha menstruação, supus. Depois de uma hora vi uma pequena mancha de sangue no lençol que vestia a cama. Adormeci, e quando me acordei vi pelo espelho uma enorme mancha rubra no lençol, o sangue jorrando do meu corpo e deslizando pela cama. Detive-me contemplando essa imagem refletida no espelho, como se a quisesse deixar lá, como um quadro. Não sentia dor e não sabia se estava morrendo, porque a morte deveria ter alguma dor, ou seria só a vida?
Os passos de Lucas foram se tornando cada vez mais intensos aos meus ouvidos, até que o vi agachado ao lado da cama desatando os nós. Ele me deu o mesmo banho, o mesmo jantar, ignorando o sangue que continuava jorrando da minha vagina e pingando no chão enquanto eu andava de um lado para o outro da casa. Até que foi dormir comigo, e aguardava o meu sono com uma das mãos sustentando a cabeça e a outra bem em cima de uma poça de sangue. Era ele que não notava ou não havia nenhuma hemorragia? Preferi não perguntar.
Amanheceu e Lucas havia ido embora sem se despedir e sem me amarrar na cama. Eu ainda estava sangrando, e tive tanto nojo de mim que passei o dia inteiro me lavando. O sangue descia pelo ralo em círculos, e era como se a água doesse limpando o meu corpo. Onde estaria ele, já eram seis horas.... E se de agora em diante for só eu e o espelho?
Lucas jogou as chaves na mesa, e eu me joguei aos seus pés de tanto chorar. Prometa nunca mais ir embora sem se despedir de mim, prometa nunca mais se esquecer de me amarrar, eu fiquei desesperada, você não sabe o quanto sofri hoje, por que fez isso comigo, pobre de mim que te amo. Você não me ama mais, você não quer cuidar de mim? Trouxe-me doces, qual gosto suave, você se lembrou, ainda bem, de trazer esses chocolates com gosto de vida.
- Já vou trabalhar, meu amor, trago doces quando voltar. Nunca se esqueça que eu amo você.
- Eu te amo também.
segunda-feira, outubro 31, 2005
Judite, a filha da lua
Eu não tenho fim nem começo nesse céu enorme essa noite, onde as estrelas guardam o segredo do universo e as aventuras do meu ser que perdido se encontrará nas miragens. Guardo no peito a lua prateada que hoje se faz pálida como o meu pobre coração, e canto com o olhar a canção que ninguém nunca irá entender nem ouvir. Onde estará Judite, aquela que me pariu depois de minha mãe? Se você soubesse, Judite, da saudade que você me faz, não me abandonaria na noite, nos vãos, nos escombros de quem sou sem você.
Minha Judite dos olhos distorcidos de infelicidade, eu conheci na praça onde a Igreja cantava o mais puro silêncio, Judite do meu querer, do meu ser sem ter por que, eu me vejo sem palavras, só sei que todas as belas canções foram escritas para você. Minha Judite não é bela nem feliz, ela tem o rosto marcado pelo suor desgraçado do trabalho, e faz o pão que não vai comer. Ela vem pra mim com um abraço, e o odor do cansaço eu sinto nela. A mulher das mãos cheias de calos, das palavras feias, do mau humor de quem vive a duras penas.
Ai que eu sinto tanta saudade, e de saudade eu vivo a lembrar dos beijos de Judite e a esquecer o presente. Foi tão gostoso morder as suas pernas e lamber a sua casa, que eu só quero morar dentro de você, e morrer para sempre dentro de você. Olhe pra mim de soslaio pelo menos quando passar de braço dado com seu marido na rua, pra eu sentir que ainda guarda na lembrança um carinho meu. Eu queria te arrancar dos braços dele, matá-lo com a bala do meu patrão, e te beijar no meio da rua, apertando você como se seu corpo não tivesse fim.
Judite, volte para mim que eu não agüento mais ser só eu. Prometo só o que tenho para dar, e você sabe quem é. Eu fico aqui olhando essa lua e falta você para pular sobre mim debaixo da lua, volte que você é filha da lua, e eu fui parido de novo. Vou dormir debaixo da lua para sonhar com você, prometa que em algum canto do universo você também estará sonhando comigo. Boa noite, Judite, que Deus te guarde pra mim onde quer que você esteja.
Minha Judite dos olhos distorcidos de infelicidade, eu conheci na praça onde a Igreja cantava o mais puro silêncio, Judite do meu querer, do meu ser sem ter por que, eu me vejo sem palavras, só sei que todas as belas canções foram escritas para você. Minha Judite não é bela nem feliz, ela tem o rosto marcado pelo suor desgraçado do trabalho, e faz o pão que não vai comer. Ela vem pra mim com um abraço, e o odor do cansaço eu sinto nela. A mulher das mãos cheias de calos, das palavras feias, do mau humor de quem vive a duras penas.
Ai que eu sinto tanta saudade, e de saudade eu vivo a lembrar dos beijos de Judite e a esquecer o presente. Foi tão gostoso morder as suas pernas e lamber a sua casa, que eu só quero morar dentro de você, e morrer para sempre dentro de você. Olhe pra mim de soslaio pelo menos quando passar de braço dado com seu marido na rua, pra eu sentir que ainda guarda na lembrança um carinho meu. Eu queria te arrancar dos braços dele, matá-lo com a bala do meu patrão, e te beijar no meio da rua, apertando você como se seu corpo não tivesse fim.
Judite, volte para mim que eu não agüento mais ser só eu. Prometo só o que tenho para dar, e você sabe quem é. Eu fico aqui olhando essa lua e falta você para pular sobre mim debaixo da lua, volte que você é filha da lua, e eu fui parido de novo. Vou dormir debaixo da lua para sonhar com você, prometa que em algum canto do universo você também estará sonhando comigo. Boa noite, Judite, que Deus te guarde pra mim onde quer que você esteja.
segunda-feira, outubro 24, 2005
O chão
Não há tristeza que caiba em mim em dias como esses
E não há também felicidade
Se choro é por desespero de não saber de mim, a que perdi
Eu não a reconheço
eu me enfio debaixo da cama
depois de me ver refletida no espelho
Em minhas caminhadas eu vejo o chão
Não vi pessoas, não conheci ninguém
eu só pensei na falta
Agora o que existe em mim é só a falta
Espero receber uma carta
e não há ninguém para me escrever.
Eu nem rezo mais antes de dormir
Não porque não acredite em Deus,
mas simplesmente o esqueci
Das tantas vidas que vivi eu só acredito em uma:
aquela que terei depois de findar essa
Dos pecados que cometi, eu só acredito em um:
o de não ter cometido pecados suficiente.
Eu me desfaço em versos mal escritos,
eu só consigo me achar em palavras de outrem
Eu que não sei fazer poesia,
eu que não sei amar ninguém ou coisa alguma
Escuto tantas músicas,
mas não sei do que falam,
e choro pelo que não são
Onde estarão as pessoas que por mim passaram enquanto eu olhava para o chão?
Esperanças e borboletas
Desde criança minha mãe me ensinou a ter medo de borboletas. Então eu voava para capturá-las, e depois as comia. Ela também me disse para ter nojo de moscas. Então eu prendia duas no copo de vidro e ficava observando na esperança de serem macho e fêmea, querendo que elas fizessem coisas como o casal da novela da TV. Queria muito sentir as borboletas voando na minha barriga, mas nada. Eu esperava ver asas no meu cocô, todavia era sempre um cocô como qualquer outro. As moscas se debatiam sob o meu olhar de vigília, até que eu me cansava e as deixava lá, presas num copo em cima da minha janela.
Certa vez, quando eu era bebê, mamãe foi trocar minha fralda e saiu para atender ao telefone. Quando ela voltou, estava eu lá, todo maroto, brincando e me lambuzando com o cocô. Ela gritou “mas menino!”, e foi me dar um banho rindo daquela insólita situação que contaria mais tarde para as amigas. Depois de um tempo, não sei como, eu aprendi a ter nojo de cocô e gritava por mainha para vir limpar minha bunda. Foi duro, mas aprendi a me limpar sozinho quando certo dia eu chamei seu nome e não havia ninguém em casa. Esperei mais ou menos uma hora por ela sentado no troninho, até que, finalmente, olhando o papel com muita resistência, eu me limpei sozinho. Logo depois, mamãe chegou e eu fui correndo lhe contar cheio de orgulho as aventuras que me levaram a ser um hominho.
Às vezes eu brincava com meu pinto, e sentia uma vontade danada de fazer xixi, aí ele crescia, para meu espanto, eu ia até o banheiro, mas nada de fazer xixi. Era gostoso sentir o pinto crescer, então vez por outra eu brincava com ele, e de vez em quando alguém me surpreendia. Minha mãe me chamava de safado e meu pai dizia que eu era um machinho danado. Não sei como, mas aprendi a ter vergonha do meu pinto, e mais tarde fui fazer isso escondido no banheiro.
Certo bicho verde me causava um misto de admiração e medo, igual ao que a gente sente por Deus, então eu corria e pedia para minha mãe matá-lo. Mas ela nunca fazia isso, dizia que o tal bicho era bonito, inofensivo, e seu nome era esperança. Entretanto, eu nunca achei a esperança bonita, e sempre tive medo dela, corria por entre os móveis da casa enquanto minha doce mãe sorria e brincava com a criatura verde no braço.
Eu rezava todos os dias o Santo Anjo, o Pai Nosso, e a Ave Maria antes de dormir, porque quem não reza, dizia minha avó, o bicho papão pega de noite. Então eu falava com um Deus que eu não conhecia, e tinha medo do bicho papão, que eu não sabia exatamente o que era, assim como Deus. Mamãe dizia para eu não pecar porque senão Ele ia me castigar. Então eu achava que Deus era um guarda dela, sempre de vigília, esperando eu fazer alguma travessura para ir lhe contar. Mas eu fazia muitas coisas que minha mãe nunca percebia como comer doce escondido no quarto antes do almoço, e aí me dei conta de que Deus não existia, era só um jeito de ela me impedir de fazer coisas gostosas.
Deixo meu filho gritar meu nome até chorar, mas não limpo a sua bunda. Nunca o chamei de nome nenhum ao pegá-lo brincando com o pinto, mas ele, com o tempo, foi se esconder no banheiro. Não o ensinei a rezar, mas vez por outra ele chama o nome de Deus quando não estudou para a prova. Eu me perguntava por que minha mãe me ensinou a ter medo de borboletas, aí percebi que ela tinha pavor delas, não sei, nem ela, a razão. E meu pequeno corre pra mim e me abraça forte, com desespero, quando vê alguma bela esperança voando soberba e assustadora de um canto a outro da casa.
Certa vez, quando eu era bebê, mamãe foi trocar minha fralda e saiu para atender ao telefone. Quando ela voltou, estava eu lá, todo maroto, brincando e me lambuzando com o cocô. Ela gritou “mas menino!”, e foi me dar um banho rindo daquela insólita situação que contaria mais tarde para as amigas. Depois de um tempo, não sei como, eu aprendi a ter nojo de cocô e gritava por mainha para vir limpar minha bunda. Foi duro, mas aprendi a me limpar sozinho quando certo dia eu chamei seu nome e não havia ninguém em casa. Esperei mais ou menos uma hora por ela sentado no troninho, até que, finalmente, olhando o papel com muita resistência, eu me limpei sozinho. Logo depois, mamãe chegou e eu fui correndo lhe contar cheio de orgulho as aventuras que me levaram a ser um hominho.
Às vezes eu brincava com meu pinto, e sentia uma vontade danada de fazer xixi, aí ele crescia, para meu espanto, eu ia até o banheiro, mas nada de fazer xixi. Era gostoso sentir o pinto crescer, então vez por outra eu brincava com ele, e de vez em quando alguém me surpreendia. Minha mãe me chamava de safado e meu pai dizia que eu era um machinho danado. Não sei como, mas aprendi a ter vergonha do meu pinto, e mais tarde fui fazer isso escondido no banheiro.
Certo bicho verde me causava um misto de admiração e medo, igual ao que a gente sente por Deus, então eu corria e pedia para minha mãe matá-lo. Mas ela nunca fazia isso, dizia que o tal bicho era bonito, inofensivo, e seu nome era esperança. Entretanto, eu nunca achei a esperança bonita, e sempre tive medo dela, corria por entre os móveis da casa enquanto minha doce mãe sorria e brincava com a criatura verde no braço.
Eu rezava todos os dias o Santo Anjo, o Pai Nosso, e a Ave Maria antes de dormir, porque quem não reza, dizia minha avó, o bicho papão pega de noite. Então eu falava com um Deus que eu não conhecia, e tinha medo do bicho papão, que eu não sabia exatamente o que era, assim como Deus. Mamãe dizia para eu não pecar porque senão Ele ia me castigar. Então eu achava que Deus era um guarda dela, sempre de vigília, esperando eu fazer alguma travessura para ir lhe contar. Mas eu fazia muitas coisas que minha mãe nunca percebia como comer doce escondido no quarto antes do almoço, e aí me dei conta de que Deus não existia, era só um jeito de ela me impedir de fazer coisas gostosas.
Deixo meu filho gritar meu nome até chorar, mas não limpo a sua bunda. Nunca o chamei de nome nenhum ao pegá-lo brincando com o pinto, mas ele, com o tempo, foi se esconder no banheiro. Não o ensinei a rezar, mas vez por outra ele chama o nome de Deus quando não estudou para a prova. Eu me perguntava por que minha mãe me ensinou a ter medo de borboletas, aí percebi que ela tinha pavor delas, não sei, nem ela, a razão. E meu pequeno corre pra mim e me abraça forte, com desespero, quando vê alguma bela esperança voando soberba e assustadora de um canto a outro da casa.
sábado, outubro 22, 2005
Não sonho ao lado teu
Nesta noite as minhas angústias me impedem de dormir ao teu lado. O corpo junto a outro corpo, a alma repartida em tristezas mil, eu fico a contemplar tua sandália, que guarda o teu pé aonde vais, e largas quando te abandonas no leito para não ter sonho nem porvir. Meu corpo está nu, a alma desprotegida, a tua nudez me incomoda, e não quero estar ao teu lado na hora de dormir.
Queria o lençol inteiro para mim, queria ser só eu nesta cama, sem tua respiração que exala esta alma lânguida. Eu sinto frio e ouço os passos de ninguém. Eu não consigo, eu já tentei, me entregar ao sono ao lado do teu corpo nu, da tua alma lânguida.
O teu abraço distraído enquanto sonhas o que vais esquecer, me faz ter medo como uma criança procurando a mãe perdida no parque. Já desisti, já nem quero compartilhar o sono, o lençol, a cama contigo. E quem és tu que não conheço, não sei de onde vens, sei que não tens para onde ir.
Eu fito as tuas sandálias, as tuas coisas todas tão parecidas contigo, e então percebo que meu lugar não é aqui. Não sou de ninguém, nem de lugar algum.
A luz do sol aos poucos vai clareando o quarto, é o fim da noite vã, mas ainda há restos de noite deixados pelas cortinas fechadas. Está na hora de partir sem dizer adeus.
Agora sim, caminhando sozinha por entre a neblina, eu me vejo num sonho, eu fico a sorrir, um sorriso calmo, ingênuo, sem jeito. Bem-vinda ao acaso, o dia amanheceu e estou livre para voltar para casa, onde estarei em paz, eu sei.
sexta-feira, outubro 21, 2005
Quem tem medo da chuva?
“A chuva engorda o barro e dá de beber aos mortos”, diria Dalton Trevisan. Hoje choveu. Esse fenômeno da natureza tão comum é encantador e irritante. Sim, eu adoro o cheiro da chuva, aquele ar tépido que fica nos lugares quentes como Aracaju. Gosto também de observá-la da varanda do meu apartamento, de me deitar na cama e contemplar as gotas d’água escorrendo sofregamente no vidro da janela, de ouvir a sua música sedativa. Entretanto, não gosto de me aventurar pelas ruas tomando banho de chuva, me entregando a uma doce brincadeira, pulando, chutando a água na rua. Não vejo tal encantamento. Fico ensopada, entro nos lugares parecendo uma louca, pego resfriado. Saio às ruas e recebo banhos de água suja graças aos imbecis distraídos ou sádicos que passam com seu carro bem em cima da poça nojenta. Melhor ficar em casa, ouvindo a música da chuva, e dormindo aconchegada no meu lençol quentinho.
Belo Belo
Belo belo belo, Tenho tudo quanto quero.
Tenho o fogo de constelações extintas há milênios.
E o risco brevíssimo — que foi? passou — de tantas estrelas cadentes.
A aurora apaga-se, E eu guardo as mais puras lágrimas da aurora.
O dia vem, e dia adentro Continuo a possuir o segredo grande da noite.
Belo belo belo, Tenho tudo quanto quero.
Não quero o êxtase nem os tormentos.
Não quero o que a terra só dá com trabalho.
As dádivas dos anjos são inaproveitáveis: Os anjos não compreendem os homens.
Não quero amar, Não quero ser amado.
Não quero combater, Não quero ser soldado.
— Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples.
Manuel Bandeira
é assim que me sinto.
Ladrões de bicicleta, de Vittorio de Sica
Ricci precisa de uma bicicleta para conseguir um emprego e melhorar as condições em que sua família vive. Mas esse trabalho só lhe será dado se ele tiver uma bicicleta, pois assim não precisará pegar os bondes lotados de Roma, e chegará cedo no serviço. Entretanto, a bicicleta de Ricci está quebrada, e sua mulher vende os lençóis das camas para que seu marido compre uma. Só que Ricci dá de cara com a má sorte e sua bicicleta é roubada. Daí por diante, ele segue com seu pequeno filho Bruno atrás dela.
Ele recorre à polícia e se depara com um sistema obsoleto e impune. O policial chega ao ponto de lhe mandar procurar sozinho a tal bicicleta por toda a Roma, e avisa que ela já deveria estar desmontada a essas horas. Ricci e Bruno se metem em várias enrascadas para recuperá-la, e, no final, o primeiro acaba roubando uma de alguém tão pobre quanto ele, é pego por um bando de homens que havia testemunhado a cena, mas é perdoado pelo pobre velho dono da bicicleta.
O ponto alto do filme é a busca incessante de Ricci por algo praticamente impossível. Ele não questiona em nenhum momento, na falta de uma consciência de classe, as injustiças a que foi submetido, como seu salário de fome, as péssimas condições do transporte público, e o sistema arcaico da polícia italiana. É interessante ver os trabalhadores se unirem em duas cenas do filme, quando Ricci diz ser Alfredo o ladrão, e os vizinhos dele tomam partido para defendê-lo da acusação, e na última cena, quando ele é capturado logo após roubar a bicicleta. A questão é: e se esses trabalhadores se unissem por uma causa maior, contra as injustiças a que são submetidos todos os dias, ao invés de fazer como Ricci, que procura sozinho por sua própria bicicleta? É emocionante ver no fim que personagem principal acabou por roubar um homem tão pobre quanto ele, o que leva o espectador a perguntar se não seria o ladrão alguém tão desesperado quanto o protagonista.
A esposa de Ricci tenta fazer algo por sua família, mas se sente impotente, e tenta ajudar dentro do que lhe é possível em sua condição de mulher. É ela quem dá a idéia de vender os lençóis da casa, e é graças a ela que a bicicleta é comprada. Mas quando recebe a notícia do roubo, sua única forma de lidar com a tragédia é orar e recorrer a uma charlatã para saber do destino de sua família. Ela fica perdida, apática, como muitas mulheres de seu tempo.
Ricci e seu filho estavam numa missa numa instituição de caridade atrás de um velho que eles supunham conhecer o ladrão. Não se sabe se era ele cúmplice, mas a grande ironia é que o velho estava ali, numa instituição de caridade, orando junto com um monte de miseráveis, esperando pela ajuda de um Deus, e, principalmente, pela refeição ao fim da missa. E também não se sabe se foi Alfredo quem roubou a bicicleta, mas vê-se a pobreza em que ele vive junto com sua mãe.
Uma cena que ilustra perfeitamente os antagonismos entre as classes sociais é quando Ricci vai a um restaurante com o pequeno Bruno fazer uma farta refeição e tomar vinho, e a criança come inocentemente como se estivesse em
casa. Ele mostra a mesa ao lado, onde estão pessoas abastadas, e ensina: “Veja, você tem que comer como eles”. É só o que os mais pobres fazem em sua condição de alienados, procurar suas próprias bicicletas, e querer comer como eles.
Obs: Escrevi sem a intenção de fazer uma crítica de cinema, até porque não tenho cacife pra isso. Escrevi como mera espectadora cinéfila.
Farinha mágica
Eu só negocio com cara que for bundão. Porque aí fica mais fácil né, com um bundão na maioria das vezes você não precisa cumprir ameaça. Tenho meu 38 com cano longo, eu estou sempre protegido, por mim e pelo meu 38. Não vou dizer que gosto de matar, mas também não vou dizer que não gosto. Sabe, na hora, às vezes nem é pra fazer cumprir minha palavra, mas é porque é massa ver o sangue derramar do filho da puta que não me pagou. Rola até um certa culpa depois, não tô dizendo que viro viadinho chorando pelos cantos, mas sei lá, me dá mais ódio da vida, de tudo, e me dá também uma puta vontade de cheirar. Sinto prazer quando falo” e aí companheiro, passa aí o seu equipamento de som, tu tá me devendo né, safado?” Ver a cara triste do imbecil, “quem é perdedor, quem é perdedor?”.
O dia em que eu me senti mais foda foi quando eu fui parar na delegacia e cheirei coca lá mesmo, no banheiro. Olhava pra cara do delegado e me acabava de rir por dentro, “eu to chapado, seu porra”. É pra tirar onda mesmo, se fosse por mim eu cheirava na frente do delegado, e ainda oferecia, “é farinha, poh, farinha mágica”.
Cadê minha filha? Minha ex-mulher é uma vagabunda, tem mais é que apanhar mesmo do pai, bate nela, bate nessa vaca sem vergonha, eu gritei no meio da surra que ela tava tomando. Tenho umas três negas e trato todas como vagabundas, e elas merecem, humilho, dou tapa na cara, digo que não quero mais pra ver ela se ajoelhar aos meus pés, e pedir depois pra chupar meu pau. Eu sou o Super homem, quem é Deus, quem é Deus?
Às vezes eu passo o dia inteiro trancado num quarto viajando. Aí eu gasto toda a grana que ganhei dos caras que gastaram toda a sua grana com a coca que eu vendi. A vida é assim, cheia de emoções, mas no fim das contas só a coca me satisfaz. Vida merda, que graça tem? E agora eu tô sem minha filha, cadê minha filha, meu Deus, cadê? Que criança linda, ein? Acho que ela é a única coisa que resta em mim de humano. Ou será que isso é ser humano?
Minha filha... foi por ela que eu parei de cheirar, foi por ela que eu senti febre, tive delírios, e já faz nove meses que não uso coca. De vez em quando bate aquela viagem de madrugada, quem não faz coisa boa de manhã fica sofrendo de noite, né? O sono bom é pra quem tá em paz, e pra mim é só angústia, essa noite que não tem fim, esse dia que não tem começo. São sonhos estranhos, são imagens inconscientes da minha perversão, tenho medo de encontrar comigo mesmo de noite. Eu não quero dormir, é uma entrega, sabe?É como quem não deve nada e vai morrer tranqüilo, o sono é uma morte, e cada dia é uma nova vida. E eu não estou preparado pra morte, nem pra vida. Só me resta cheirar.
Por que as mulheres não se masturbam?
Conheço mulheres de todas as cores, de várias idades, de muitos amores, e a grande maioria delas não se masturba. Não que sejam mulheres puritanas, virgens, simplesmente não acham graça em gozar sozinhas, ou não conseguem. Aí está o grande problema. Não é nada fácil uma mulher ter orgasmo numa relação sexual, imagine aquelas que nem se masturbam... talvez muitas não tenham provado do deleite mortal que é a sensação orgástica. E perdem, perdem muito.
Lembro-me de quando estava numa festa com algumas amigas fazendo uma brincadeira um tanto quanto comprometedora. Nós escrevíamos em pequenos pedaços de papel perguntas indiscretas, depois colocávamos numa caixinha, e finalmente ela ia passando de mão em mão, e a cada retirada de um papelzinho, havia um riso contido no rosto da infeliz que tinha de prestar contas de sua vida sexual ativa, inativa, ou simplesmente não-iniciada. Éramos tolas sexualmente, e as respostas no geral eram muito desinteressantes. Todas eram virgens, exceto uma, mais velha, e que namorava um rapaz há cinco anos. As respostas eram invariavelmente não, até que eu, personalidade abusadamente sincera, respondia à questão “você se masturba?” com um sim, oooohhhh!!!!! Qual grande admiração de todas elas. Ingrid, a mais velha, insistia para as outras admitirem suas aventuras manuais, mas não, houve uma que até disse sentir às vezes algo estranhamente gostoso quando se lavava, mas logo tirava a mão do altar do pecado, e terminava o banho pura, pura de espírito.
Desde cedo as mulheres são ensinadas a dedicar o seu corpo ao macho, ao casamento, e à procriação. Nos dias de hoje, muito pouco ao casamento, e o sexo de certa forma se libertou do vínculo desagradável com a reprodução, graças a conquistas como a pílula anticoncepcional e a camisinha. Entretanto, o corpo da mulher continua sendo dedicado única e exclusivamente ao macho. Os meninos desde cedo fazem campeonatos de quem bate mais punhetas, enquanto as meninas preferem guardar o seu prazer a uma sonhada perda da virgindade à luz de velas, ambiente com um toque de Malhação. Não conhecem seu corpo, e o coitado do companheiro pior ainda, tentando se virar no universo fantástico, enigmático, porém bastante sedutor que é o corpo de uma mulher.
Não falo que a mulher deva ser superior ao homem, também não sou Bush para defender a masturbação em prol da virgindade. Falo de a mulher se dar o direito de contemplar eroticamente o próprio corpo, e falo também em favor dos homens, que teriam a ajuda delas, seres com vontade, na hora do vamo-vê. Não é “ela goza com a mão, não precisa do seu pau”, como numa música de Arnaldo Antunes, mas ela também pode gozar com a mão, não precisa necessariamente de um pau.
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