quinta-feira, maio 25, 2017

Get out (2017), Jordan Peele


Logo no começo de Get out!, um homem negro perambula por uma rua escura num subúrbio de classe média americano, procurando uma casa num lugar que lhe parece perigoso. Ele percebe que um carro diminui a velocidade e se aproxima dele, então muda de direção e conclui: “sabe como eles tratam gente como eu né”. Eis que um homem o agarra abruptamente, lhe dá uma chave de braço e o leva para o carro. Desde a primeira cena, o filme apresenta o olhar do negro inserido num ambiente hostil e em que os brancos são como "monstros” que estimulam sobressaltos no espectador. Quando a narração entra “em fase” com o olhar de um homem negro num lugar repleto de brancos, não é o negro que é o Outro, e sim o branco é o Outro. E é uma ameaça.

Numa cena, o irmão da namorada de Chris, o jovem negro que vai passar o final de semana na casa da família da sua namorada branca (Rose), afirma que se Chris treinasse luta iria se tornar um “monstro” devido à sua “carga genética” e ao seu porte físico. A monstruosidade do corpo negro criada pelo olhar racista é colocada em questão neste filme de forma, eu diria, oposta ao que ocorre em filmes como O som ao redor e Aquarius. Nos filmes de Kleber Mendonça, o olhar convocado é o do espectador branco, de classe média, que se assusta com a aparição de figuras negras (os meninos que pulam o muro da casa em O som ao redor, a empregada negra que furtava joias em Aquarius e que aparece num pesadelo). O objetivo de Kleber Mendonça parece expor as feridas abertas dos conflitos raciais, no entanto, esses filmes acabam reforçando o caráter “monstruoso” do corpo negro. Ao contrário, em Get out!, é a consciência do negro a respeito do olhar racista do branco que está em jogo.

Assim que Chris chega à casa dos pais de Rose, ele repara que os empregados, Walter e Georgina, são negros. E sua chegada é vista à distância, num plano filmado do ponto de vista de Walter com uma música de suspense, o que, de saída, o aproxima dos misteriosos empregados (não sem medo). Por mais que os brancos sejam “simpáticos”, por mais que o sogro afirme que “votaria em Obama pela terceira vez se pudesse”, há na encenação um conflito proeminente que resiste à falsa conciliação, presente inclusive em trocas de olhares intimidantes. Exemplo disso, no momento em que a mãe de Rose hipnotiza Chris, o ruído estridente e repetitivo da colher mexendo na xícara toma conta da cena da hipnose, e a sua amabilidade dá lugar a um controle ameaçador. Durante um leilão em que estão presentes muitos familiares, Chris ouve comentários como “negro está na moda”, ou perguntas sobre se por acaso sua performance sexual é de fato melhor, enfim, o lugar que lhe é dedicado é o do exótico e do objeto. Em tempos de “make America great again”, Trump e muros, Get out! é um filme que faz uma crítica incisiva à sociedade que jamais superou as heranças da escravatura e da Guerra de Secessão. Quando o irmão da namorada dá uma chave de braço em Chris, ele conta: “um Mississippi, dois Mississippi, três Mississippis...”, em referência ao estado americano que até os dias de hoje tem escolas onde estudam apenas brancos ou apenas negros.

Jordan Peele realiza um filme de autor (possibilitado inclusive pelo acúmulo de funções: diretor, roteirista e co-produtor) que lança mão dos códigos do suspense e da ficção científica, e elabora imagens que adensam o passado e o presente na crítica histórica sob a forma de uma atmosfera fílmica que dá a ver o “retorno do recalcado”, ou da presença do “fantasma”, esse passado que permanece assombrando o presente, mesmo que seja constantemente impelido para o esquecimento. Chris descobre que é parte de um experimento: a sua namorada o teria atraído para a propriedade da família com a finalidade de que ele fosse hipnotizado por sua mãe, uma psiquiatra, e fosse submetido a uma cirurgia realizada pelo seu pai, um neurocirurgião. Através da cirurgia, Chris perderia metade do seu cérebro, e, assim, o galerista cego da família iria finalmente enxergar “através dos olhos” de Chris. Ele descobre também que os empregados da casa tiveram seus corpos usados para conceder imortalidade aos avós de Rose. O passado do racismo científico e da eugenia é convocado aqui: áreas da ciência se desenvolveram às custas da exploração do corpo negro, considerado abjeto, a exemplo da ginecologia, que tem James Marion Sims, que realizou cirurgias em mulheres escravizadas sem anestesia, como “pai da ginecologia moderna”. Não há limites para a exploração e subjugação dos corpos dos negros pelos brancos.

Antes de ser levado para a cirurgia, Chris é amarrado numa cadeira que faz uma clara alusão à cadeira elétrica (a grande maioria dos condenados à pena de morte nos Estados Unidos é constituída por negros), e ele é colocado de frente para uma televisão em sessões de hipnose, e um cervo empalhado (numa referência ao cervo é morto após irromper abruptamente na frente do carro quando ele e a namorada estavam indo à propriedade da família). Ao final, Chris é salvo pelo seu amigo policial, mas antes temos medo do que irá acontecer a um negro encontrado vivo junto a diversas pessoas mortas, e nos perguntamos o que será de Chris após tudo isso. O grande número de negros que continuaram sendo mortos por policiais durante o governo de um homem negro (ou sobre os limites da representatividade), “black lives matter”, estão presentes aqui.

Um cinema monstruoso. A figura do monstro perde humanidade, o monstro é a diferença exposta em carne viva. O monstro traz à cena um “excesso de presença”, e em todo o filme Chris expõe a profunda consciência do seu “excesso de presença” perante brancos que lhe parecem, eles sim, monstros. Monstrum, do latim mostrar, advertir, tem a ver com presságio, com um perigo que está porvir (o perigo da distopia de uma sociedade que precisa de muros e novos apartheids?). O monstro é também algo fora da ordem do real: Get out! recorre à transgressão do real para falar alegoricamente sobre problemas muito reais. 

terça-feira, maio 23, 2017

Um método perigoso (2011), David Cronenberg


Quando eu digo que o cinema é uma arte misógina não é por acaso (e feita em grande parte por homens). Na maioria das vezes, ver filmes me proporciona a percepção mais aguçada do quanto mulheres são odiadas. É o caso de Um método perigoso (2011), do David Cronenberg. A paciente de Jung encontra a cura para a histeria através de transas masoquistas com ele. Sabina, que era espancada pelo pai desde os quatro anos de idade nua num quartinho, se regozija tendo sexo violento com Jung. Ela, que estuda Medicina, chega até a escrever uma dissertação em que defende que morte e sexo são duas faces de uma mesma moeda, e que o exercício da sexualidade é intrínseco à destruição do ego, mas paradoxalmente também fonte de potência e criação. Numa cena, ela está de quatro sendo espancada por Jung, e a câmera mostra a cena num plano diante do espelho. Sabina olha com prazer para a própria submissão, ela goza com o ritual da repetição da cena do trauma. Nas cenas em que Sabina narra suas experiências, seus gestos são excessivos e descontrolados, e a câmera se mantém distanciada, fixa, com Jung ao fundo do quadro observando-a de forma calma e altiva (o olhar de Cronenberg diante da mulher?). Ela sempre faz questão de ressaltar que ele foi a sua cura. É isso, mulheres que sofreram violências precisam de uns tabefes para se libertarem. É com prazer que Cronenberg filma o sofrimento de Sabina. Ela sorri ao ver a veste manchada de sangue após perder a virgindade com Jung: A imagem que sintetiza a morte e o sexo. A mulher deseja ou deseja aniquilar-se? Sabina deseja ou deseja ver-se como objeto no espelho?

Pequenas epifanias

"Mas no quarto, quinto dia, um trecho obsessivo do conto de Clarice Lispector — “Tentação” — na
cabeça estonteada de encanto: “Mas ambos estavam comprometidos. Ele, com sua natureza
aprisionada. Ela, com sua infância impossível.” Cito de memória, não sei se correto. Fala no
encontro de uma menina ruiva, sentada num degrau às três da tarde, com um cão basset também
ruivo, que passa acorrentado. Ele para. Os dois se olham. Cintilam, prometidos. A dona o
puxa. Ele se vai. E nada acontece.

De mais a mais, eu não queria. Seria preciso forjar climas, insinuar convites, servir vinhos,
acender velas, fazer caras. Para talvez ouvir não. A não ser que soprasse tanto vento que
velejasse por si. Não velejou. Além disso, sem perceber, eu estava dentro da aprendizagem
solitária do não pedir. Só compreendi dias depois, quando um amigo me falou — descuidado,
também — em pequenas epifanias. Miudinhas, quase pífias revelações de Deus feito joias
encravadas no dia a dia".

Pequenas epifanias, Caio Fernando Abreu.