domingo, abril 30, 2017

Paterson (2016), Jim Jarmusch


Paterson é o nome do protagonista do último filme de Jim Jarmusch, um introspectivo poeta e motorista de ônibus, e é também o nome da cidade onde ele vive, no estado de Nova Jersey. Paterson é a cidade e a cidade é Paterson, um lugar onde ele vive, e o lugar que vive nele. O filme acompanha a rotina de Paterson durante uma semana, e a montagem elabora uma narrativa banal e repetitiva, tal como o caminho que uma linha de ônibus faz todos os dias, tal como a vida.
De manhã cedo ele troca afagos com sua esposa, segue para o trabalho, ouve as reclamações de um colega no início do dia, dirige o ônibus, escreve poemas à beira de uma bela cachoeira por onde passa uma ponte, leva o cão para passear, bebe alguns corpos de cerveja no bar. No ônibus, as imagens se dividem entre o que ele observa atravessando a cidade e o que os passageiros conversam dentro do veículo (e ele os olha vez ou outra através de um espelho). Paterson parece estar sempre catando histórias por onde passa, e contempla as paisagens como belos quadros móveis criados pela janela do ônibus. A sua voz em off, relutante, pausada, letárgica, recita os versos e letras se inscrevem nas imagens de quedas d´água que brilham sob o sol.
Depois de ficar consternado após seu cão despedaçar o seu “caderno secreto”, Paterson ganha um caderno em branco de outro poeta que conhece de frente para a cachoeira. E ele volta a escrever. Os poemas não se perderam. A partir dessa comunicação entre o espaço do corpo do personagem e o espaço da cidade, o filme cria a sua própria poesia. Não é à toa que dizem que “o tempo passa”, como se houve uma passagem, um lugar que o tempo percorre. Essas passagens, Paterson transforma em palavras, e Jarmusch transforma em imagens.

Num dos poemas que ele escreve no seu “caderno secreto”, Paterson diz: “When you’re a child you learn there are three dimensions/ Height, width and depth/ Like a shoebox/ Then later you hear there’s a fourth dimension/ Time/ Then some say there can be five, six, seven…” (“quando você é criança, aprende que há três dimensões: altura, largura e profundidade/ como uma caixa de sapatos/ então depois você ouve dizer que há uma quarta dimensão/ Tempo/ Então dizem que pode haver cinco, seis, sete...”). Uma quarta dimensão, o tempo, desestabiliza as dimensões unicamente espaciais e traz à tona o cruzamento entre o tempo e o espaço. E é sobre essa matéria que o filme de Jarmusch trabalha, a partir de um espaço feito de memórias, perambulações e do encontro entre a cidade e o homem que nela vive. De um espaço feito de tempo, enfim. 

segunda-feira, abril 17, 2017

Dia dos mortos (1985), George Romero


A primeira cena de Dia dos mortos (1985), de George Romero, mostra a pesquisadora Sarah sentada observando um calendário que apresenta uma horta com alguns pés de abóbora. Ela se aproxima, toca a imagem com certo encantamento, até que mãos atravessam a parede e agarram o seu corpo. Essa cena mais parece uma síntese da temporalidade da narrativa fílmica e da relação a ser estabelecida com o espectador: em Dia dos mortos, não existe um tempo banal da vida que transcorre, mas somente o caos e o perigo da morte, e o olhar pertence a um corpo que está em constante ameaça de ser devorado.

A trama de Dia dos mortos se desenvolve num abrigo militar subterrâneo com uma crescente tensão entre militares e pesquisadores cercados por um apocalipse zumbi. Tal como em outros filmes da Trilogia dos mortos, como Noite dos mortos vivos (1968), em que grande parte da ação se dá numa casa no meio do nada, e Despertar dos mortos (1978), centrado no espaço de um shopping center, o terceiro filme da trilogia coloca seus personagens isolados numa espaço claustrofóbico em que parece não haver saída além da morte.

Em todas as cenas de ataques de zumbis, o ponto de vista da câmera está do lado de quem está prestes a ser atacado. E a montagem insere planos violentamente rápidos que tomam de assalto o espectador, como quando Sarah sonha que seu namorado, Miguel, havia se tornado um zumbi enquanto ela dormia. Os corpos são reduzidos à carne: vísceras, miolos, sangue, peles sendo arrancadas, tudo diante dos olhos atônitos dos personagens que assistem a si mesmos sendo devorados (tal como, em certa medida, o espectador).

Numa cena, o cientista Logan faz experimentos com um zumbi enquanto ele é observado pelos pesquisadores por trás de um vidro, que se sobressaltam quando pensam que ele iria atacar Logan. Dia dos mortos trabalha a partir das rupturas entre sujeito e objeto, de uma estética do espanto diante da possibilidade de não ser mais sujeito, de ser puramente objeto, um cadáver ambulante.
Como diz Logan, “zumbis são como nós”, e mostra o zumbi que havia sido militar, Bub, sabendo manusear uma arma, como um corpo que somente repete gestos e age instintivamente em busca de carne mesmo que não precise ser alimentado. Um filme feito no final da Guerra Fria e que mostra militares autoritários que acabam sendo devorados pelos mortos.

O espectador que Dia dos mortos convoca é justamente aquele que se encontra num pesadelo: com imagens fortes, com um corpo que é um fantasma, mas que sente e sofre na pele a pungência das imagens.