quinta-feira, novembro 17, 2005

Devolva o filho que é da terra

Eu me rendo ao chão que descreve na areia sofrida as dores vividas como um batalhão passando por sobre o meu peito. É verdade, eu não sabia que na estrada se podia encontrar com a própria alma, supunha eu tê-la deixado enterrada debaixo da areia, e agora a vejo aqui, diante de mim, assombrando-me na noite como um fantasma maldito. Vá embora, e não me assuste com sua cara feia, triste, descorada, vai que eu quero seguir caminhando, e nessa estrada não cabe meu corpo e a alma.

Pego os pedregulhos do chão, admiro os ossos da terra, e jogo para cima enquanto meus olhos reluzem. As pedras caem cantando junto com os grilos da noite, e onde estará o sapo nojento que está prestes a pular por sobre as minhas costas? Qual alívio sentir derramar na terra a água suja que o corpo expulsou. Os mosquitos se fartam com minhas pernas, e o mato gigante dá medo da cobra, que pode estar onde eu ouvi o barulho do mato se mexendo.

Mulher como eu não chora, tem ódio, isso sim. O corpo está cheio de marcas do ciúme e do fracasso do meu marido. Quantas manhãs eu me acordei cheia de manchas roxas sem saber de onde vinham? Era o costume desgraçado de apanhar, às vezes bêbada, às vezes dormindo, e os hematomas insistiam em me lembrar que eu tinha tomado uma surra do canalha a quem chamam meu homem.

Corro pelo mato, ou o mato foge de mim? O vento joga os meus cabelos na boca, e eu os como involuntariamente com suor. A minha saia dançando com o vento me faz sentir livre, até que a sandália velha sai do pé. Vou buscá-la e vejo pés de homem. Antes de ver o seu rosto, eu já sabia que era meu pai. Ergo-me lentamente como quem tem medo, e logo ao encarar o pai recebo uma bofetada. Era um ritual de humilhação. Ele segurou pelo meu braço com força, e caminhou à frente como se eu fosse sua posse, sem dizer palavras, com o três oitão bem à vista pendurado na cintura, ele disse que mataria uma filha desonrada.

- Pai, eu estou grávida.

Ele me fitou com ódio preciso.

- E queria fugir do seu marido com o filho dele na barriga, ein? Com meu neto?

Nunca tive uma conversa franca com meu pai, e não era agora que iria ter. Todos os seus diálogos se resumiam a olhares repreensivos, e sempre que tentei me pronunciar fui acusada de desrespeito, sofri surras que me doeram por semanas. Acaso não era agora que eu iria lhe falar do meu sofrimento, dos meus medos, das minhas angústias, ou dos maus tratos recebidos do meu marido. Ele mesmo, o pai, dava tapas na cara da minha mãe quando o patrão atrasava o salário, dizendo que estava com fome, trabalho o dia inteiro, você só faz ficar em casa, e eu fico aqui esperando a hora em que a sua preguiça vai deixar você fazer minha comida.

Voltando para casa, fito os meus pés cheios de calos que caminham sofridos sobre a terra seca, onde eu devia ter deixado a minha alma. As lágrimas ficam querendo sair, mas eu prendo com tanto gosto, que sinto uma dor no peito e a tristeza passando pela garganta. Não olho para a cara do meu marido, deixo-o lá, recebendo do meu pai a notícia de que eu terei um filho, ah, tomara seja homem, vamos tomar uma pinga pra comemorar. No quarto, acendo uma vela junto à estátua de Nossa Senhora, e rezo meu terço sem pensar nas orações, só pedindo pra minha santa não me deixar matar meu filho e eu, pra eu ser forte com as dores desse mundo de cruzes. Amém.

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