terça-feira, novembro 01, 2005

O sangue

Resvalos de luz penetram sofregamente o quarto, e eu sinto que acordar dói como um parto todos os dias. Lucas me fita com seus olhos de encantamento aflito, ele os fecha para depois abri-los como uma flor desabrochando, acaricia o meu braço abandonado e meu rosto que agora repousa sobre seu peito ofegante. Sei que velou por mim a noite inteira, tentando descobrir quais seriam os meus sonhos, e sonhando acordado com meus cabelos, meus seios, meu ventre, principalmente meu ventre, que agora beija com lascívia ébria em sinal de adoração.

Então segue até o armário para cumprir o ritual de todas as manhãs. Retira as cordas e me amarra como se fosse prova do seu desejo, fazendo nós mordendo a corda com a boca entreaberta de luxúria. Amarra com força segurando com as mãos cheias de veias, e me observa amarrada como se eu fosse um objeto perfeito, expressando uma devoção dolorosa. Beija-me a testa como um pai, a boca como um amante, e se despede como um filho.

- Já vou trabalhar, meu amor, trago doces quando voltar. Nunca se esqueça que eu amo você.

Dizia que me amava como se tivesse sempre dúvida de que era recíproco, e esperando um “eu te amo também”. Para mim essas palavras já haviam perdido o significado, e eu as pronunciava como quem responde “tudo bem” a um “tudo bem?”. Na verdade, toda a minha vida perdera o significado, e agora só me restava a cama, o armário, a janela coberta de cortinas, a paixão de Lucas, e as paredes do quarto.

Durante boa parte do dia eu dormia sedada pelos medicamentos tarja preta que ele me dava, e ficava conversando com meu reflexo no espelho no teto do quarto. Lucas o havia colocado lá justamente para isso, dizia que era bom falar olhando para o espelho, porque é possível observar a si mesmo por outro ângulo. Ver-se chorando, rindo, porque estamos sentindo e as nossas reações corporais são percebidas. Ele também não queria que eu esquecesse de mim, eu devia saber da minha existência.

Quando chegava a noite eu estava morta de fome, toda encharcada de urina, e às vezes não conseguia me segurar e defecava ali mesmo na cama. Ele me advertia com um ar de condescendência afetada, desamarrava-me e levava os lençóis sujos até a máquina de lavar com a calma de um protetor. Então fazia questão de me dar banho sem nenhum erotismo, deslizando a esponja sobre o meu corpo lânguido como se eu fosse a sua cria.

Nós jantávamos na mesa da sala onde uma vela solitária iluminava o ambiente. Lucas fazia questão de dar a minha comida na boca, uma sopa rala que ele mexia fazendo barulho com a colher se arrastando em círculos pelo prato, uma música torturante como as tardes na frente do espelho. Eu tentava timidamente tomar a colher da sua mão, mas ele não me deixava comer sozinha em hipótese alguma.

Certo dia um fenômeno estranho aconteceu. Eu senti algo escorrendo entre as minhas pernas, devia ser minha menstruação, supus. Depois de uma hora vi uma pequena mancha de sangue no lençol que vestia a cama. Adormeci, e quando me acordei vi pelo espelho uma enorme mancha rubra no lençol, o sangue jorrando do meu corpo e deslizando pela cama. Detive-me contemplando essa imagem refletida no espelho, como se a quisesse deixar lá, como um quadro. Não sentia dor e não sabia se estava morrendo, porque a morte deveria ter alguma dor, ou seria só a vida?

Os passos de Lucas foram se tornando cada vez mais intensos aos meus ouvidos, até que o vi agachado ao lado da cama desatando os nós. Ele me deu o mesmo banho, o mesmo jantar, ignorando o sangue que continuava jorrando da minha vagina e pingando no chão enquanto eu andava de um lado para o outro da casa. Até que foi dormir comigo, e aguardava o meu sono com uma das mãos sustentando a cabeça e a outra bem em cima de uma poça de sangue. Era ele que não notava ou não havia nenhuma hemorragia? Preferi não perguntar.

Amanheceu e Lucas havia ido embora sem se despedir e sem me amarrar na cama. Eu ainda estava sangrando, e tive tanto nojo de mim que passei o dia inteiro me lavando. O sangue descia pelo ralo em círculos, e era como se a água doesse limpando o meu corpo. Onde estaria ele, já eram seis horas.... E se de agora em diante for só eu e o espelho?

Lucas jogou as chaves na mesa, e eu me joguei aos seus pés de tanto chorar. Prometa nunca mais ir embora sem se despedir de mim, prometa nunca mais se esquecer de me amarrar, eu fiquei desesperada, você não sabe o quanto sofri hoje, por que fez isso comigo, pobre de mim que te amo. Você não me ama mais, você não quer cuidar de mim? Trouxe-me doces, qual gosto suave, você se lembrou, ainda bem, de trazer esses chocolates com gosto de vida.

- Já vou trabalhar, meu amor, trago doces quando voltar. Nunca se esqueça que eu amo você.

- Eu te amo também.

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