domingo, novembro 06, 2005

O canto das sereias

O som da campainha ecoa na noite avisando que estou chegando de um longo e penoso dia de trabalho. Contemplo a cerca elétrica da minha casa e ela estranhamente me proporciona uma sensação de medo. A cerca me lembrava o ladrão que poderia chegar, e eu me sentia vulnerável contemplando o imenso muro da mansão. Fito os olhos do meu enorme cão de guarda por entre as frestas do portão, e de repente minha esposa aparece vestida numa camisola rosa de seda frágil para me receber com um olhar de sono, de cansaço, um olhar que se desviava com indiferença do meu. Ouço o som da TV que distraía as crianças na sala, e eles me dão um oi como se não notassem a minha presença. Tiro a gravata que me sufoca. Boa noite.

Sigo correndo pelos corredores escuros e macabros da casa, era um labirinto sem fim nem começo. Finalmente chego à piscina e avisto a minha mulher com os seios desnudos entoando um canto que mais parecia um grito, e com os dois braços amarrados por correntes fixadas nas margens. Percebo assombrado que ela tinha uma cauda de peixe no lugar das pernas. Ouvir o seu canto é uma tortura, sinto como se facas atravessassem meus ouvidos, e grito pare, pare pelo amor de Deus, eu não agüento mais. Caio no chão do jardim como quem se rende, e começo a comer o mato de forma sedenta e insaciável, até me dar conta de que toda a grama já havia sido devorada pela minha fome. Restava só a terra, e eu me esfrego na terra, banho-me de terra, com a terra eu me misturo.

Vejo então um osso enterrado na areia, e começo a mordê-lo. Não posso acreditar no que vejo quando percebo que minhas mãos se tornaram patas e eu só conseguia andar de quatro. Tento gritar palavras de desespero, mas o que consigo é só latir e latir, até acordar o meu dono, um homem com o meu corpo, e, para meu espanto, com a cabeça do meu cão de guarda. Ele fala com a minha voz, chuta-me com desprezo e me manda calar a boca. Choro, choro, mas as lágrimas não saem, ficam todas presas na minha garganta, e minha garganta dói, dói de desespero. Olho para o vidro da porta da sala de jantar e percebo que meu rosto permanecia o mesmo, agora um rosto de homem preso a um corpo de cão.

Entro na casa e vejo meus três meninos nus amarrados nas cadeiras da sala de jantar, eles choram e pedem pai, por favor, ajude a gente, o homem de preto com luvas nos amarrou aqui e levou as jóias da mamãe, seu dinheiro, nossos relógios... O homem de preto aparece com a sua sombra, dá-me uns chutes, coloca uma coleira no meu pescoço e me prende ao pé da gigante mesa de madeira. Meus filhos não param de chorar e ficam exigindo com seus pequenos olhos aguados cor de fogo que eu faça alguma coisa. Eu me mexo como uma fera, corro, salto, sabendo ser inúteis os meus esforços, mas precisava expressar minha angústia.

O meu dono me solta enquanto fito a sua sombra. Corro para o jardim e fico cheirando o chão, até começar a cavar e encontrar um osso de ouro. Eu mordo, lambuzo com gosto o osso de ouro, que tem um sabor bom e me hipnotiza com seu brilho faustoso. De repente vejo minhas patas se transformarem em mãos brancas pálidas e mexo os dedos como se nunca antes os tivera. Fico ereto e contemplo meus pés que agora andam sem jeito, desnorteados, tortos. Estava sem equilíbrio, mas consegui me manter de pé. Visto a gravata com arrogância, um olhar altivo no espelho, e coloco o relógio que estava em cima da cômoda do quarto. Já são horas de ir para o trabalho.

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