domingo, dezembro 25, 2005

A bicicleta vermelha

Um velho andando numa bicicleta vermelha. A pequena bicicleta vermelha que eu usava no sítio de vovô, rondando por horas e horas a pequena área da frente da propriedade.

Nem ovo de codorna, catuaba ou tiborna
Não tem jeito não, não tem jeito não

Dando voltas ao redor da enorme amendoeira, o pneu passando por cima das folhas secas, o sagüi danado de lá do galho alto olhando pra mim, e as raízes rasgando a terra. A pequena elevação de areia onde se encontrava uma planta cheia de flores roxas, subindo na montanha, olha só, tô subindo na montanha, as flores batendo no rosto, ah é gostoso demais, descendo, descendo, rápido, rápido, lá vou eu.

Certo mesmo é o ditado do povo
Pra cavalo velho, o remédio é capim novo

Menina, já faz duas horas que você está nessa bicicleta, eita serviço. A flor do pé de laranja, flor feia, sem graça. Vovó na cozinha fazendo o almoço de junto do fogão à lenha. Fogão de roça é bonito demais, queria saber fazer fogo com pedra, que nem os homens das cavernas. Mainha e vovó falando mal da dona do sítio vizinho que não dá banho nos filhos, você precisa ver, filha, o menino se arrastando no chão sujo, o outro com a frauda mijada, sei não, uma porca.

Vovó uma vez me contou de uma história de uma dona que deixou o bebê na rede na porta de casa. Não se pode fazer isso quando se criam porcos. Não é que um porco bem grande devorou o menininho, pobre criança, imagine o quanto não sofreu, e seus berros, buaaaa, buaaa.

Sertão é cheio de bicho, pra tudo que é lado. As rãs gélidas pulando em cima da gente na hora do banho, que a gente toma com água do poço. Buscar a água do poço é tão bom, imagine só eu descendo nessa balde até as profundezas, como será que é lá no fundo, ein? Daqui dá pra ver eu em meio à luz da noite na água negra. Tem alguém aí? Responde: tem alguém aí? A balde voltando, balança, força!

O que se esconde nas telhas à noite e foge de dia? Quem sabe. Há alguns pequenos buracos nas telhas, tomara que não chova, e que barulho é esse na cozinha? Mãe, você tá acordada? Eu é que não vou lá ver.

Foi tão bom passear de bicicleta, a jaca estava gostosa como o quê, será que vovó vai perceber que eu quebrei o abajur de gato dela? Como será que é nadar no poço? Homem bêbo enjoado aquele na cancela pedindo dinheiro pra comprar pinga. Ele tava batendo na mulher, eu ouvi os gritos, aquela que minha mãe disse que era porca, mandando o homem bêbo da cancela parar. Alguns filhos dele vivem carregando baldes bem grandes na cabeça, e ele trabalha numa fazenda até não sei que horas da noite.

Verde da cor do mato, uma cobra verde! Mamãe uma cobra verde no telhado, mamãaae! Acorda, José, uma cobra no telhado. Não acredito, uma cobra? Mata, mata! A gente vai pendurar ela na cerca, ein, ein? Agora deu pra dar cobra nesse sítio, ta beleza, meu Deus! Não posso nem ter sossego. Todo mundo pra lá e pra cá, um aperreio. Tio Augusto matou a cobra com um pedaço de pau e se empertigou todo fazendo cara de que não era grande coisa. Vou levar essa cobra pro laboratório de ciências lá da escola.

Um homem negro e forte sem camisa andando numa bicicleta vermelha, bêbado de álcool e infelicidade, cantando alguma canção em álcoolês, cuidado com o poste. Vermelho e azul, vermelho e azul, caras de desprezo cheias de autoridade em olhares altivos nas janelas do carro, fardas, cacetete, armas. O que foi que eu fiz, doutor, eu sou pai de família. Cê é malandro que eu tô ligado.

Um comentário:

Anônimo disse...

Seu blog é de uma elegância literária impressionante!
Parabéns!
Olha, se quiser me adicionar no MSN pra conversarmos, será um prazer!
(sol_leandrothiago@hotmail.com)
Bjs