quarta-feira, dezembro 29, 2010

Introibo ad altare dei...


Nessa época de nada pra fazer, decidi reler Ulisses, de James Joyce. Sim, é um clássico da literatura, sim, muitos dizem que é o melhor livro da literatura moderna (mas quem sou eu pra falar em literatura moderna, haja livro pra conhecê-la), sim, é um livro muito mais comentado do que lido, sim, dizem que é ininteligível. É aí onde eu entro pra discordar. Está certo que estou lendo a tradução de Bernadina, que dizem que é a mais fácil, mas concordo com ela na hora de achar que o livro é inteligível sim e bem gostoso. É difícil, mas, já dizia minha mãe, as coisas difíceis são as melhores (ou não).

Acho que era muito nova quando li pela primeira vez e estou relendo porque gostei muito (perhaps meu livro favorito). E acredito que ainda vou reler outras vezes no decorrer da vida. Lembro de ter chorado horrores numa determinada parte do livro, mas faz tanto tempo que eu o li que simplesmente não recordo que parte foi.

É muito prazeroso ler Ulisses. E não, eu não li a Odisséia, nem Shakespeare. E inclusive discordo de quem acha que ler Ulisses é basicamente sair catando as referências que James Joyce faz nessa obra magistral. É sentir e compreender a obra pelo que ela é e pelo modo como ela se relaciona com a minha vida e as minhas leituras. Mas quem sabe um dia poderei reler Ulisses ainda outra vez já tendo lido a obra de Shakespeare e também a Odisséia e isso seja bem mais interessante.

Por isso, vou narrar aqui no blog a experiência de reler Ulisses. Quero manter acesa na minha memória através do blog o que é esse livro para mim. Aviso: eu sei que isso NÃO É crítica literária. Introibo ad altare dei...
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Hoje li o primeiro e o segundo capítulo, Telêmaco e Nestor, respectivamente. Uma das primeiras frases de Ulisses é Introibo ad altare dei, que em latim quer dizer algo como Entrarei no altar do senhor (não sei latim, mas procurei saber sobre isso). Essa frase ficou marcada na minha memória, e foi dita por Buck Mulligan no alto da Torre do Martelo, enquanto segurava um espelho e uma navalha.

Buck Mulligan é estudante de Medicina, colega do professor e poeta Stephen Dedalus, nosso protagonista e famoso alter-ego de James Joyce. Dedalus, assim como Joyce, é um literato, irlandês e também teve uma educação católica repressora na infância - ambos servem a dois senhores, o Estado inglês e a Igreja Católica Apostólica Romana. Já a relação de Dedalus com o personagem de Mulligan é marcada pela mágoa que Stephen Dedalus guarda de Buck Mulligan pelo fato de ele ter se referido a Stephen como "aquele cuja mãe morreu como um animal".

Diante do pedido da mãe para que ele se ajoelhesse junto ao seu leito e orasse por ela, Stephen Dedalus se recusa a obedecê-la. E Mulligan insiste em zombar da atitude de Dedalus. No entanto, Stephen Dedalus não convive bem com a atitude que tomou no passado.

O mais marcante no capítulo Telêmaco é o sentimento de culpa que Stephen carrega consigo. Ele é atormentado pelo fantasma da sua mãe - não no sentido de ver assombrações, mas ele constantemente se depara com a lembrança do seu "odor de cinzas molhadas", entre outras lembranças do momento da morte dela, bem como da infância.

Stephen Dedalus dorme num quarto junto com Haines, que à noite, enquanto dormia, proferiu gritos de espanto e esbravejou que mataria a balas uma onça. Dedalus, apesar de ter medo de Haines, também está atormentado, só que pela imagem da mãe.

Buck Mulligan conta a Haines que Stephen Dedalus diz ser capaz de provar por álgebra que Hamlet era o avô de Shakespeare e que ele é atormentado pelo fantasma de seu próprio pai. Trata-se de uma intrigante pista deixada por James Joyce para seus leitores. Assim como Shakespeare é o criador de Hamlet, personagem atormentado pelo personagem do pai, Joyce é o criador de Stephen Dedalus, que sofre do mesmo mal.

Ao saber da tese de Dedalus, Haines lembra da Santíssima Trindade: Pai, Filho e Espírito Santo. A consubstancialidade entre pai e filho. Há em Ulisses não só a consubstancialidade entre Stephen Dedalus e seu pai, como também entre o próprio James Joyce e Stephen Dedalus, personagem que surge no livro Retrato de um artista quando jovem.

Já no segundo capítulo, intitulado Nestor, nós acompanhamos a rotina de Stephen Dedalus enquanto professor e sua relação com o diretor da escola, o sr.Deasy. Os comentadores da obra de Joyce afirmam que Deasy seria um oráculo, presente na Odisséia, às avessas: uma crítica à "antiga sabedoria".

O Sr.Deasy cita uma frase de Iago, personagem de Otelo, de Shakespeare: O dinheiro é para ser guardado na carteira. Acredita na redenção através do trabalho e do dinheiro economizado para o futuro, detesta os judeus, e defende um modo repressor de educar as crianças.

Durante a aula de Stephen Dedalus, acomoanhamos ao modo da técnica do fluxo de consciência as reflexões de Dedalus. Uma passagem que me marcou muito e que tão logo reconheci ao ler: O pensamento é o pensamento do pensamento. Claridade tranquila. A alma é de certa forma tudo o que existe: a alma é a forma das formas. Tranquilidade, súbita, vasta, candente: forma das formas. Acredito que nessa passagem James Joyce vai além das vertentes materialista e idealista, e propõe um encontro entre a alma e o mundo, a imagem e a matéria. Será ao modo bergsoniano, como conclui Matéria e memória?

Após a aula, em que Stephen Dedalus estava entre o tédio das lições e suas reflexões, os alunos correm para brincar no recreio, como uma espécie de libertação. É quando ocorre o encontro entre o Sr. Deasy e Stephen Dedalus.

O Sr.Deasy lhe paga o seu parco salário e pede para que Dedalus providencie a publicação em algum jornal de um texto seu sobre a febre aftosa. Dedalus e Deasy iniciam uma discussão sobre o que é a história, uma das passagens mais belas do livro.

É quando o Sr.Deasy afirma que a história da humanidade caminha em direção à manifestação da vontade divina. Ao que Stephen Dedalus responde: "isto é Deus, um grito na rua", apontando para os meninos que brincavam no recreio. Gostei muito dessa passagem, pelo modo como Joyce propõe uma visão da história não guiada por uma essência de uma grande personalidade, mas sim pelos diversos sujeitos envolvidos no processo histórico.

O Sr.Deasy entende isso como um insulto e afirma que Stephen Dedalus não duraria muito naquela escola. Antes de sair da sala, o Sr.Deasy pergunta a Dedalus, um irlandês, o porquê de a Irlanda ser conhecida por nunca ter perseguido os judeus. E responde: "porque a Irlanda nunca os deixou entrar". Para o Sr.Deasy, os judeus cometeram um grande pecado e por isso pagam vagando pelo mundo sem um lar...

Interessante que Ulisses foi publicado no contexto pós-Primeira Guerra Mundial, em 1922, e mais tarde, na Segunda Guerra Mundial haveria o Holocausto realizado pelo governo nazista alemão sob a égide de Adolf Hitler. Esse capítulo termina com uma metáfora genial, quando Deasy segue andando e é descrito assim por Joyce:

Sobre seus ombros sábios o sol lançou lantejoulas e moedas dançantes através da marchetaria das folhas.

Descrevendo-o como tendo "ombros sábios" e poetizando a luz relacionando-a a "moedas dançantes", Joyce enfatiza o conservadorismo de seu personagem.

De um modo geral, me lembro muito bem que os capítulos Telêmaco e Nestor são os mais simples de Ulisses, que se torna mais difícil de digerir a cada capítulo. Então vamos lá...

4 comentários:

Pseudokane3 disse...

Ah, eu nunca li este livro todo.
Comecei, mas algo de demasiado irlandês naquele trecho intermitente com um velho me incomodou. Mas vou seguir teu conselho e, mais importante, tua apreciação, e seguir em frente nele durante as férias. tenho certeza de que gostarei muito também. Tem masturbação, tem circunlóquios, tem paixão, desejo e referências artísticas a dar de rodo? Me basta!

WPC>

Unknown disse...

Qual é a tradução para português de introibo Ad altare dai

Mais Arte disse...

A tradução de Introibo ad altare Dei é Ir para o altar do Senhor

Mais Arte disse...

É preciso lembrar que o personagem central Leopold Bloom é judeu. Não é por acaso que Joyce escolhe essa identidade para o confronto com a Irlanda católica.