sábado, agosto 28, 2010

Duas ou três coisas que eu sei dela (1967), Jean-Luc Godard


Em A invenção do cotidiano, Michel de Certeau compara a cidade à poesia. Sim, pois as figuras de linguagem, que tramam um rumo incerto na produção de significados, são comparáveis às figuras ambulatórias, ou aos habitantes da cidade que, ao percorrerem os lugares, promovem práticas de espaço que dão um sentido metafórico à urbe pensada a partir do sentido literal desenvolvido pelo planejamento urbano. Michel de Certeau pensa a cidade a partir da linguagem. E é este o processo desenvolvido por Godard em Duas ou três coisas que eu sei dela.

"Ela", que está no título do filme, como muitos sabem, não é Juliette Jeanson, a mulher que se divide entre os papéis de prostituta e dona-de-casa. "Ela" é Paris, bem como a cidade de pedra que se ergue, e seus habitantes que passam pelas ruas, e as problemáticas sociais no contexto do capitalismo, e até mesmo os sinais que nos remetem a Paris inserida no mundo, com claras referências à Guerra do Vietnã. Mas Juliette está lá para revelar algumas elocubrações de Godard, como quando está deitada na cama e fita a câmera dizendo sensivelmente que "a linguagem é o lugar que nós habitamos".

Em dado momento, a voz do narrador afirma entre sussurros que estuda a cidade como se fosse um biólogo diante da natureza, e a cidade é o seu objeto. Sabemos que se trata de uma ironia do Godard, que no seu fino trato com a ficção que dialoga com o documentário na construção de um argumentação a respeito do mundo histórico, de modo algum apresentaria um olhar reificante perante o mundo. Godard, um admirador do existencialismo, nega a dimensão do olhar cartesiano que coisifica o mundo a partir de uma relação intrínsica entre conhecimento e poder.

Godard nega não só Descartes, como também um crítico de Descartes, Wittgenstein. Na cena em que um primeiro plano submerge numa xícara de café, Godard cita a famosa frase do Tractactus Logico-Philosophicus, de Wittgenstein: "Os limites do meu mundo são os limites da minha linguagem". Ao que em seguida vemos Juliette andando por Paris e dizendo: "mas o mundo sou eu".

Uma das cenas finais do filme apresenta Juliette no centro de uma paisagem de altos edifícios. Ela diz: "uma paisagem é um rosto". Ou seja: uma paisagem urbana está circunscrita pelos afetos de seus habitantes. E a câmera realiza uma panorâmica de 360° perscrutando os edifícios da cidade enquanto Juliette afirma: "logo percebi que eu sou o mundo, e que o mundo sou eu".

Assim, o lugar de Godard é junto à fenomenologia de Merleau-Ponty expressa em O olho e o espírito: a sutil revelação de que "penso, logo, existo" é um inferência que coloca o mundo como objeto e aquele que o concluiu como sujeito, até nos darmos conta de que nosso corpo está no mundo e que não somos apenas aqueles que vêem, mas também a materialidade dos que são vistos.

3 comentários:

Pseudokane3 disse...

Quando eu vi este filme (e, obviamente, me deslumbrei tanto/quanto por ele), não dispunha do cabedal filosófico precioso de que fazes uso agora, mas lembro bem da cena "anti-wittgensteiniana": ri com ela (no melhor sentido do termo, o da identificação inocente). Genial, pura e simplesmente!

WPC>

e.m. disse...

Muito boa sua resenha. Devia lançar em algum site de filmes e literatura. Ou ciência mesmo. Não vi o filme, mas conheço bem essa discussão. Para Certeau, na esteria do pós-estruturalismo, a cidade está para além do texto... ou seja, da linguagem. Mas sendo por ela também constituída.

=*

tatiana hora disse...

unrun
Certeau gosta do segundo Wittgenstein, o de Investigações filosóficas... ele fala sobre a linguagem ordinária a partir dos jogos de linguagem.