quinta-feira, junho 24, 2010

Nem diz da morte, que é sua sina


Apesar de considerar a tourada uma prática deplorável, eu gosto dos poemas de João Cabral de Melo Neto que falam de touradas e sou apaixonada por uma cena de Hable con ella (2002), de Almodóvar, em que a toureira Lydia enfrenta um touro logo após a perda de um grande amor. Naquele momento, Lydia era uma mulher magoada, repleta de feridas na alma. Almodóvar então constrói uma mise-en-scène maravilhosa, e representa a dor do touro ferido como consubstancial à dor de Lydia. Os próprios gestos e expressões de Lydia em alguns instantes se assemelham ao de um touro! Há uma simbiose entre o touro e Lydia que emociona, uma metáfora esplendorosa. Lembrei-me dessa cena belíssima enquanto lia este também belíssimo poema de João Cabral de Melo Neto, em sua obra Andando Sevilha:


A praça de touros de Sevilha

É a Praça de Touros barroca,
não do ferro comercial de outras.

Barroco alegre, de cal e ocre,
sem jogos fúnebres de morte.

Plena luz de um sol-de-cima,
nem diz da morte, que é sua sina.

É como um altar ao ar livre
barroco, sem seus jogos tristes.

Ou se o morrer, é o luminoso
de sua areia quente, de ouro,

que para lá fora trazida
de Utrera, de Guadaíra.

Tem tanta luz que até encandeia
o touro que salta na arena,

a prata e o ouro do toureiro
e o espectador que foi vê-los.

Quando o touro salta do corral
entra num sol tão natural

que se duvida se então entrou
sua morte ou a de seu matador.

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