quarta-feira, julho 02, 2008

Certos modos e feições da minha vida quotidiana — representados no meu ser constante
por desejos, repugnâncias, preocupações — sumiam-se de mim como embuscados da ronda, apagavam-se nas sombras até se não perceber o que eram, e eu atingia um estado
de distância íntima em que se me tornava difícil lembrar-me de ontem, ou conhecer como meu o ser que em mim está vivo todos os dias. As minhas emoções de constantemente, os meus hábitos regularmente irregulares, as minhas falas com outros, as minhas adaptações à constituição social do mundo — tudo isto me parecia coisas lidas algures, páginas inertes de uma biografia impressa, pormenores de um romance qualquer, naqueles capítulos intervalares que lemos
pensando em outra coisa, e o fio da narrativa se esbambeia até cobriar pelo chão.

Fernando Pessoa em Livro do desasossego.

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