terça-feira, março 04, 2008

Quando o homem de bem resolve avacalhar

Algo que me atrai muito no cinema são aqueles protagonistas que avacalham, pois, como diria o bandido da luz vermelha em filme homônimo de Rogério Sganzerla, "quando a gente não pode fazer nada, a gente avacalha e se esculhamba!". Personagens como Capitão Nascimento, interpretado por Wagner Moura, em Tropa de Elite (2007), dirigido por José Padilha, Travis, incorporado por Robert de Niro em Taxi Driver (1976), de Martin Scorsese e Brad Pitt na pele de Tyler Durden em Clube da Luta (1999), de David Fincher, são bons exemplos de indivíduos doentes que vivem numa sociedade igualmente doente e se afogam na mais completa merda.

Capitão Nascimento é um homem cansado de subir em favela pra caçar traficantes e tem uma conduta profissional deplorável, que inclui torturar mulheres e adolescentes. Já Tyler Durden, o alter ego do narrador representado por Edward Norton, cria um clube onde marmanjos trocam porradas para sublimar as frustrações do cotidiano. Em Taxi Driver, Travis é um ex-soldado da Guerra do Vietnã que vira taxista e trabalha de madrugada, sendo que a única paixão da sua vida é ver filmes pornôs.

Todos eles representam o "cidadão de bem", aquele homem que paga seus impostos e cumpre seus deveres diante do Estado, mas que, em determinado momento, ficam esquizofrênicos, violentos e no limiar entre o "homem de bem" e o sociapata. O próprio Capitão Nascimento se revolta contra esse Estado e coloca a bandeira do BOPE em cima da bandeira do Brasil, que vestia o caixão do falecido policial Neto. O ato simbólico atenta para o fato de vivermos num caos em que o Estado parece não apresentar soluções, já que esse caos é a cristalização de diversas injustiças inerentes ao modelo de sociedade em que vivemos. Capitão Nascimento nos lembra que a única instituição do Estado que vai até a favela é a polícia. Nascimento irrita-se com a incubência de uma missão mirabolante, a Operação Papa, e se encarrega de fazer "uma limpeza" na favela para garantir o sono do papa. Ou seja, a elite utiliza a violência física da instituição da polícia para vigiar e punir os mais pobres, algo de que já falava Foucault, que ironicamente é citado no filme. Capitão Nascimento é o fruto de uma sociedade tomada pela barbárie, onde palavras como justiça adiquirem um outro sentido - sentido esse cada vez mais afastado dos ditames da sociedade civilizada, e cada vez mais próximo da justiça com as próprias mãos.

Em Taxi Driver, Travis, ao mesmo tempo em que quer trabalhar junto com o senador candidato a presidente, realiza um atentado contra ele logo após o seu discurso em praça pública. Travis é o cara frustrado, que se sente o rei da cocada preta depois de adiquirir um monte de armas, paladino da justiça ao ver um assalto e atirar no bandido - negro, e que toma um surra, ainda desmaiado, do dono da loja, um branco. Ele se rebela contra o Estado na figura de Palatine, o candidato à presidência, o mesmo Estado que o enviou para a Guerra do Vietnã. Também se sente o juiz do mundo ao atirar em cafetões para salvar uma menina de 12 anos que era explorada sexualmente. Travis, assim como Capitão Nascimento, desiste do Estado e resolve aplicar a justiça com seus próprios métodos, práticas essas que não são modelos de conduta típicos de um herói.

Só que esses anti-heróis muitas vezes são confundidos com verdadeiros heróis. O que significa, talvez, que vivemos num mundo repleto de sociopatas em potencial. Afinal, os "homens de bem" estão em toda parte bravejando que os direitos humanos foram feitos para bandidos - e muitas vezes defendendo uma regressão ao código de Hamurabi. Exemplo disso são comunidades no orkut como Capitão Nascimento para presidente, Verdades de Capitão Nascimento e Discípulos de Capitão Nascimento, todas com milhares de pessoas. O filme se tornou uma verdadeira febre e faz pensar sobre a responsabilidade de um diretor sobre o discurso presente numa obra cinematográfica - que, nesse caso, apresenta os fatos sob a perspectiva de um policial truculento. O fato lembra o celebrado Laranja Mecânica (1971), de Stanley Kubrick. O filme apresentava o protagonista Alex, que depois de cometer diversas atrocidades, é condenado e exposto a punições atrozes amparadas pelo aparelho estatal. O dilema de Alex e o de Capitão Nascimento ou Travis é o mesmo: o dilema entre a violência individual e a violência institucionalizada, só que Alex, ao contrário de Nascimento e Travis, não se considerava nem pretendia ser um herói. O próprio Kubrick chegou a impedir a exibição de Laranja Mecânica na época, após ficar estarrecido ao saber que grupos de jovens imitavam as atitudes do bando liderado por Alex no filme.

O também violento Tyler Durden trocava porrada com outros marmanjos no Clube da Luta, um lugar onde eles deixavam sua civilidade de lado e brigavam, numa espécie de ritual catártico longe dos ditames da sociedade - ritual tão catártico quanto aquele apresentado em De Olhos Bem Fechados (1999), dirigido por Stanley Kubrick, só que o primeiro é dedicado ao instinto de morte, à agressividade, e o segundo ao instinto de Eros, ou à exacerbação da libido reprimida pelo moralismo. O personagem de Edward Norton faz, igualmente, o tipo "cidadão de bem", que vive para trabalhar e consumir, até entrar em pânico ao ter todas as coisas perdidas num incêndio em seu apartamento. Tyler Durden, seu alter-ego e líder do Clube da Luta, a representação em carne e osso da esquizofrenia de um "homem de bem", faz um verdadeiro manifesto contra a sociedade de consumo: "As coisas que você possui acabam te possuindo.Você só é realmente livre após perder tudo. Pois aí nao terá o que perder, e, enfim, estará livre". Assim como ocorreu com Laranja Mecânica, um psicopata também encontrou a expressão de sua mente doentia em Clube da Luta - ao ponto de entrar numa sala de projeção desferindo tiros contra a platéia, que achou que os tiros vinham da tela e não do mundo real. O criminoso era, assim como nossos protagonistas, um homem de bem: um médico.

Durden, Nascimento, Travis, todos eles eram homens que se encaixavam plenamente no que seria um homem respeitável na sociedade, todos eram conservadores, "homens de bem", até que começam a avacalhar. E os espectadores ficam que nem aqueles que estavam na sessão de Clube da Luta onde soaram os tiros - no limiar entre realidade e ficção, na esquizofrenia da sociedade do espetáculo. Os adoradores de Capitão Nascimento nos mostram que há muitos Travis entre nós.

3 comentários:

Anônimo disse...

primeiro quero dizer que estou totalmente arrepiada com o que vc escreveu. quero dizer aqui, para todos os seus leitores que QUERO SER TATI QUANDO CRESCER.

spinoza meio que me abriu a mente para muitas coisas que eu acreditava e só precisava mesmo era entender como se dão as coisas com a sociedade e o poder que ela exerce através da coerção de regras e hábitos impostos "para o bem comum". enquanto isso, formam-se cidadãos frustradaos, que muitas vezes adquirem dupla personalidade. e é esta dupla personalidade que o satisfaz. um é o ser bom, que cumpre suas obrigações. o outro, é aquele que consegue "avacalhar" - como vc mesmo fala - para se sentir vivo (isso sou eu que tô dizendo agora e não spinoza.. dps vem um leitor doente dele e quer citar frases dos livros e vai dar merda ¬¬)

ah velho, sexta e sábado vai ter um encontro de blogueiros. eu vou. quer ir?

:*

A que está escrita. disse...

Acho que estamos cercadas de fato de sociopatas em potencial. É fato que os alemães mais cruéis durante a segunda guerra, os responsáveis por massacres em massa sobretudo, não eram militares. Era padeiros, sapateiros, artesãos - homens comuns, "voluntários" de Hitler.Gostei muito do seu texto!

tatiana hora disse...

brigada, miguxa Débora!
quero ir pra esse encontro sim!
sobre Spinoza, posso nem comentar, não conheço a obra do filósofo.

e valeu também, Paloma :)
bem lembrado, acho que Hitler sabia lidar muito bem com esse "espírito avacalhador", ou desesperado mesmo da população, para conquistar seguidores.