quinta-feira, julho 29, 2010

Serras da desordem (2006), Andrea Tonacci


O início de Serras da desordem, com suas imagens idílicas de uma família indígena brincando na floresta, pode nos remeter ao clássico documentário Nanook, o esquimó (1922), de Robert Flaherty, e também a tantos outros que se dedicaram, assim como a primeira antropologia, à alteridade. Nesses filmes, o outro parece ingênuo - mas são eles mesmos elaborados a partir de modos ingênuos de filmar.

No entanto, é claro que Serras da desordem passa muito longe disso. E vemos no instante em que a criança indígena aponta para o céu em direção a um avião o prenúncio das relações dialéticas entre natureza e progresso que são desenvolvidas no decorrer do filme.

Trata-se de um documentário que se propõe a narrar a história de um índio, Carapiru, separado de sua aldeia em luta com capangas. Mais tarde ele é recebido por trabalhadores nas redondezas, até que finalmente é levado por um funcionário da Funai com o objetivo de devolvê-lo à sua aldeia.

Contando assim parece tudo muito simples, mas não é. A cena em que um trem da Companhia Vale do Rio Doce surge no meio da mata avançando em direção à câmera que constrói um enquadramento vertoviano, para depois de um corte, um travelling mostrar o índio ao lado de uma placa dizendo algo como proibido, área indígena, é simplesmente magistral. Em dado momento, uma montagem com princípios eisensteinianos (excessos de planos, choque, metáfora na justaposição das imagens) discursa sobre o processo violento e dialético de modernização do país, com imagens da repressão da ditadura militar e inclusive uma citação de outro documentário que se aventurou pela Amazônia, Iracema - uma transa amazônica (1974), de Jorge Bodansky, numa crítica às promessas desenvolvimentistas do projeto da Rodovia Transamazônica, construída durante o governo Médici.

Imagens como essas mescladas com encenações que mostram a trajetória do índio elaboram um documentário que deixa o espectador embasbacado com a verdadeira bagunça que Tonacci faz com os limites entre documentário e ficção. O sujeito-da-câmera encenado pode ceder lugar ao sujeito-da-câmera participativo, por exemplo, quando vemos entrevistas com pessoas que conviveram com o índio Carapiru. Mas a entrevista mais marcante de todas certamente é aquela em que Carapiru está diante da câmera falando em sua própria língua. Tonacci revela esse limite que está entre tantos outros limites da linguagem - inclusive da cinematográfica - que impossibilitam um encontro com a verdade totalizante.

E quando Tonacci utiliza as imagens de arquivo jornalísticas é para evidenciar que, apesar de o Jornalismo geralmente ser vendido ao consumidor como verdade, são as narrativas jornalísticas repletas das maiores mentiras. Como aquela reportagem que apresenta Carapiru feliz finalmente retornando à sua aldeia. Enquanto a câmera jornalística mostra Carapiru tirando as roupas, a repórter afirma que agora ele estaria junto a pessoas como ele, que falavam a mesma língua e gostavam das mesmas coisas.

Essa visão apresentada pela repórter, que é a mesma de órgãos como a Funai, traz as marcas do que Stuart Hall denomina diáspora. A mitologia da diáspora parte de uma narrativa teleológica a respeito de povos afastados de sua terra de origem. Esses povos, assim como os judeus escravizados no Egito, sonham com o retumbante retorno à sua terra prometida. Mas, como aponta Stuart Hall, a identidade cultural é demasiadamente complexa, instável, para ser descrita em termos de um eu e de um outro unívocos.

É por isso que o índio Carapiru e outros índios não estão livres das influências das outras culturas. E Tonacci elabora uma genial brincadeira no final do filme quando, após mostrar Carapiru se desfazendo de suas roupas e indo em direção às grandes matas verdes virgens, apresenta uma equipe de filmagem aguardando por ele e o diretor dando ordens de que ele deveria acender uma fogueira. É nessa riqueza de documentário reflexivo que Tonacci não deixa nem o próprio cinema escapar de sua crítica. Afinal, o cinema, arte e tecnologia (e indústria cultural também) estava ali o tempo inteiro modificando o ambiente onde acontece a tomada.

E é por isso que Serras da desordem é, sem dúvida, um dos melhores filmes brasileiros que eu já vi.

3 comentários:

. disse...

Assim como você é apaixonada por cinema eu sou por música. Mas também tenho um certo tesão pelo cinema e acho digno uma sessão de cinema lá em casa.
(tô devendo a Wesley PC)

:*

Tiago de Oliveira disse...

vamos todos!

Débora Brenga disse...

Foi a partir de Carapiru AwaGuaja que consegui verticalizar a minha pesquisa dramatúrgica e, sen do contemplada pelo PROAC/2014 - bolsa-incentivo à dramturgia chegar no lugar de ninguém, lugar árido, lugaroso, lugar interno de percepção clara que se há estrangeiro aqui, esswe estreangeiro sou eu - jurua.

Quem quiser conhecer um pouco desse percurso pode acessar linguadeninguem.wordpress.com - blog que alimenta esse processo dramatúrgico em vias de ser finalizado, embora, depois de Carapiru, eu penso que não a fim nem começo, só meio.