segunda-feira, janeiro 02, 2006

O estojo

Veja só a enorme montanha. Papai, sua barriga é uma montanha. É mesmo, filha?

O senhor é meu pastor, nada me faltará. Pobre de Jesus, sofreu tanto, há cruz na sala, no quarto de vovó, no quarto onde a gente vai dormir no chão. Minha filha, eu não sei o que fazer, a gente vai ter que morar na casa de sua avó, estou me divorciando do seu pai, não tenho dinheiro, você vai estudar numa escola pública, ai meu Deus. Meu irmão caçula nos fita nu e água deslizando pelo seu rosto ingenuamente atônito. O desespero somos nós, dividindo lágrimas, no abraço a gente não se cabe.

A gotícula de suor se mistura com o sorriso e com o sol batendo no rosto da porteira negra e gorda do colégio. Bom dia, menina, bom dia, senhora. Bom dia, professora. Tênis velhos, blusas furadas, rostos negros tão raros na antiga escola.

Posso saber o motivo do atraso? Eu estava ajudando o meu pai no serviço de pedreiro. Eu tava carregando baldes, faltou água lá em casa hoje. Fazendo o almoço, professora. Nádia com um olhar de condescendência triste e acostumada fazia sinal com a cabeça de que sim, entendia, não ia colocar falta, mas, por favor, evitassem que isso se repetisse, estavam dando pouco valor aos estudos.

Abro a mochila ansiosa para pegar o lindo estojo amarelo que minha mãe havia comprado. Ah, ele era tão divertido, tinha uns espaços onde eu podia deixar as canetas arrumadinhas em pé, tinha várias gavetinhas, tão bonito meu estojo. Percebi mil olhos me rondando.

- Maria Joaquina!

- O quê?

- Isso mesmo, você é Maria Joaquina!

Escondi o estojo acanhada.

A sirene toca para fazer correr as crianças, amontoadas numa fila imensa olhando pro caldeirão de onde sai o vapor que dança no ar brincando com os olhos das fomes. Qual é o lanche de hoje? Arroz, feijão, e almôndegas. Um menino come com avidez, aquela seria a única refeição do dia, e o motivo que o trazia ao colégio. Eu desaprovo o lanche e saio da fila para felicidade do colega que estava atrás de mim.

A capital do Amazonas é... Manaus. O vidro da janela quebrado. Uma seringa no chão. O muro. Vanessa disse que alguns ladrões pulam o muro, roubam dinheiro de alunos, fumam maconha no pátio. Matheus fica interpretando pra mim os dizeres escritos com spray nas paredes do colégio como um sábio. Uma vez quebraram os vidros do carro da professora Nádia, sabe como é, ela é a que mais puxa daqui do Leite Neto, aí dá nisso. Eu gosto tanto dela, ela é a única que dá aula mesmo e se importa com a gente. Tá certo que eu sou vagabundo, ela vive reclamando, Matheus isso, Matheus aquilo, mas eu gosto dela.

Vidros quebrados. O muro. As árvores onde a gente se pendura pra ficar mais perto do céu, o vento levando a alma junto com as folhas, o corpo saltando pro chão e se misturando com a areia e com o mato, doce sujeira, imagine um planeta feito de chocolate? Raíssa e eu megulhamos no planeta de chocolate.

Seja bem-vindo. Era um tapete simpático. Poucas coisas, lá estava logo na entrada Jesus de novo crucificado, um sofá velho rasgado, a geladeira enferrujada, o sorriso sem graça da mãe de Raíssa ao abrir a geladeira para me dar água. Não havia nada além de uma tigela de arroz e jarras de água. Deu para ouvir entre os sussurros por que você trouxe esse menina pra cá na hora do almoço, a gente não tem nada pra comer, que vergonha.

Embarque neste carrossel, onde o mundo faz de conta que ele é carrossel...

- Olhe só, Carrosel, vamos assistir!
- Bora!
- Quer biscoito cream craker?
- Não, obrigada.

Os olhos de Raíssa ficaram magoados. Acabamos assistindo Carrossel e dividindo o pacote de mentiras cream craker, para ela enganar a fome e eu fingir que era normal alguém comer biscoitos no almoço, estava tudo bem, veja só, mais um pego pelo Guerra, o japonês levado! Ah, a Laurinha disse que acha tão sexy homens que fumam, eu também acho, você não acha?

Embarque neste carrossel, onde o mundo faz de conta que ele é carrossel...

Nenhum comentário: