sexta-feira, janeiro 27, 2006

A menina descendo as escadas

Ana corre pelas escadas e vai até o carro. Aquele homem gordo de cabelos brancos era seu pai. Ele a esperava com os braços cruzados e o semblante confuso e medroso. Quem era aquela mulher de vestido esvoaçante que lhe surgia das escadas? Por onde ela andava?

Um abraço meio sem jeito. Filhota, que saudades, seis anos, como você cresceu! Vamos ao shopping?

Tá vendo, Marcos? Essa aqui é minha filhona, não é bonita? Leve a gente ao shopping. Ana descobre a fuga na janela do carro, tudo menos os olhos do pai, por que ele me abraça, eu não o conheço, pare de fingir que esteve o tempo todo comigo, você estava longe. Um estranho, meu Deus, como é possível ter um laço tão forte com um estranho, e eu tenho o mesmo nariz, mas quem é ele?

Ele caminha pelo shopping abraçado a ela, mostra para os conhecidos, vejam, essa é minha filha, não é bonita? Ele a mostrava como uma boneca, e ela se comportava como uma boneca nos braços dele. Deixava-se levar, com sua graça exposta em risos sem vida e olhares sublimes repletos de ausência.

Tantas recordações ele trazia. Às vezes você ficava insistindo pra que eu comprasse um brinquedo, você sempre foi muito teimosa. Ainda é assim, né? Eu dizia, filha, não tenho dinheiro não. Aí você perguntava, mas tem cheque? O riso suado na face gorda, a mão batendo na barriga. Ele sempre teve essa barriga enorme, às vezes eu subia nela quando era pequena e dizia que era uma montanha, como adorava fazer isso.

Ele só fala de coisas do passado, e com tanta intimidade, como se me conhecesse muito bem, mas você não sabe quem eu sou, você só conhece o meu passado, onde estava durante todos esses anos? Onde estava quando vomitei por toda a madrugada no balde de junto da cama, e minha mãe não dormiu cuidando de mim? E quando passei no vestibular? Você nem ligou para dar parabéns, e mamãe, ah, mamãe chorou de felicidade com aqueles olhos de eu lhe quero tanto bem. Não me conhece, não sabe quem é essa mulher que pega e abraça como se amasse, mas o amor não cabe num abraço. Eu sou só lembrança, uma criança que se esvaiu pai, ela não existe mais.

- Olhe só, essa é minha filha, não é bonita?

Um comentário:

Anônimo disse...

Assim como vc, eu tb sou apenas uma lembrança do passado "dele". Um ícone, q naum age, não fala, não pensa... apenas um ícone, assim como "ele" tb foi para nós 4. Fomos nada mais q os 4 bonecos fabricados por ele e guardados numa "casa" e zelados pela mulher q nos criou. Ela, ela mesmo. A responsável pelo que somos. Sem alarmes nem surpresas. O ser humano pensa q ama, qndo na verdade a dor da perda eh bem mais intensa