terça-feira, janeiro 31, 2006

A reestruturação dos limites entre o público e o privado e as saídas para o amplo debate nas democracias modernas

A atual conjuntura dos meios de comunicação de massa tem reconstituído os espaços público e privado nas sociedades modernas. Acontecimentos pertencentes à esfera privada podem vir a adquirir uma projeção pública nos mídias, assim como fatos de caráter público assumem uma midiação privatizada.

Os debates no discurso social e político atribuem dois significados aos conceitos de público e privado. Numa primeira instância, entende-se como domínio público o âmbito das empresas e organizações estatais. Na esfera privada estariam as empresas situadas numa economia de mercado e visando o lucro, como também o círculo das relações sociais. Em outro sentido, o público seria entendido como o que diz respeito a toda a sociedade, e o privado como concernente à atmosfera das relações pessoais.

Se antes os debates acerca das decisões que regiam a sociedade ficavam restritos aos governantes, desde a formação da esfera pública nos primórdios do capitalismo, os assuntos políticos transcenderam as dimensões do palácio e chegaram até a sociedade civil. A esfera pública é basicamente um ambiente privado de discussões públicas, e surgiu nas democracias modernas no ambiente dos cafés e das praças de Paris.

A esfera pública é essencial para a constituição das democracias modernas, envolvendo a sociedade civil nas decisões políticas. Alguns teóricos afirmam que os meios de comunicação de massa acabaram com a esfera pública, porque segundo essa vertente os mídias não realizam uma comunicação dialógica, sendo o fluxo de informação unidirecional, e os indivíduos estariam isolados no espaço recebendo as informações da mídia, ao contrário do que havia nos cafés, quando se encontravam num ambiente de debate de comunicação face a face. Entretanto, não é verdade que ocorreu o fim da esfera pública, pois os receptores promovem discussões acerca dos acontecimentos mediados pelos meios de comunicação de massa no âmbito das relações pessoais.

Há uma problemática na publicidade de fatos públicos nos meios de comunicação de massa. A exibição de assembléias, por exemplo, poderia impelir os políticos a um maior comprometimento com suas obrigações, já que estariam sendo submetidos à vigilância. Entretanto, um problema da midiação dos acontecimentos políticos é a espetacularização promovida pelos meios, e o mau uso que certos homens públicos fazem da publicidade midiática, usufruindo da visibilidade dos mídias em proveito próprio.

Os meios de comunicação de massa proporcionam uma grande visibilidade aos líderes políticos. A questão é que essa visibilidade pode tanto ajudar na ascensão de um líder, como no seu fracasso. O gerenciamento da projeção da imagem de um homem público pode fugir ao seu controle, e a publicidade dos mídias tem tido conseqüências incontroláveis para o exercício do poder político.

Outra questão é a midiação de fatos de caráter privado no ambiente público. É importante trazer à tona discussões antes restritas ao ambiente familiar, como a violência doméstica, para promover debates acerca dos direitos humanos. Entretanto, a exposição de acontecimentos privados no âmbito público pode servir como espetáculo que entrete as audiências usando o voyeurismo inerente às mesmas.

Para além das discussões acerca da reestruturação dos espaços público e privado, forma-se um debate sobre a constituição dos mídias, e se os meios de comunicação de massa devem ser estatais ou regidos por empresas privadas. A teoria liberal foi desenvolvida por teóricos como John Stuart Mill, James Mill, e Jeremy Bentham, e seus pressupostos se baseiam na defesa de uma imprensa livre das influências do estado para que haja múltiplos pontos de vista. Os meios de comunicação de massa seriam uma espécie de Quarto Poder capaz de vigiar as decisões dos líderes políticos e mediadores da relação entre o Estado e a sociedade civil. Para isso, os meios de comunicação de massa deveriam ser privados.

Thompson estabelece os limites da teoria liberal. Segundo o autor, há três problemas nessa teoria. Primeiro, ela não considera o perigo da comercialização e crescente concentração dos meios de comunicação de massa. Além disso, a teoria liberal foi pensada no contexto histórico do século XIX, e não abarca devidamente a conjuntura das novas tecnologias. Há também a problemática dos limites da liberdade de expressão nos meios.

As empresas de comunicação de massa se situam numa economia de mercado e são regidas pela busca do lucro. Essas empresas carregam os atributos de qualquer empresa situada dentro do modo de produção capitalista. A informação é oferecida como produto, e o receptor é consumidor desse produto. Tanto que o feedback dos receptores se restringe à esfera do mercado, na valorização da audiência enquanto consumidores potenciais. Os mídias perdem assim o compromisso com indivíduos enquanto cidadãos, e com a informação enquanto direito dos cidadãos situados nas democracias modernas.

A tendência atual das empresas é a oligopolização no contexto do capitalismo tardio. Se um dos pilares do modo de produção capitalista é a livre concorrência, ele vem sendo destronado, levando em conta a formação de holdings na economia global. Essa realidade não é diferente nos meios de comunicação de massa, que apresentam uma crescente concentração, adquirindo dimensões até globais.

Thompson entende que os meios de comunicação de massa devem se manter afastados do Estado para se constituírem enquanto vigias do exercício do poder. Entretanto, a comercialização dos mídias não permite que haja um compromisso com os receptores enquanto cidadãos, e, além disso, muitas empresas de comunicação de massa estão nas mãos de líderes políticos.

Outro problema da teoria liberal é que ela foi pensada no século XIX, e não abarca as novas tecnologias da comunicação, como a televisão e a internet. Além disso, ela não considera o problema da liberdade de expressão nas empresas de comunicação, levando-se em conta que boa parte dos meios são ligados a políticos. Os pensadores liberais acreditavam que as restrições aos meios deviam ocorrer só quando veiculassem informações de conteúdo danoso para os receptores. Entretanto, essa teoria não considera que muitas vezes informações de cunho político são censuradas em nome da defesa da moral e dos bons princípios.

O autor trata do serviço público de difusão, trazendo como foco principal o exemplo da BBC de Londres. Segundo Thompson, o problema da estatização dos meios de comunicação encontra-se na concentração dos mídias nas mãos de uma elite burocrática, na dificuldade em estabelecer cobranças quanto á administração dos governantes, e o obsoletismo que o serviço público de difusão pode adquirir em face das novas tecnologias da mídia.

No caso da BBC, a rádio era controlada por um pequeno grupo da elite do país. A programação era formada por programas ditos de alta qualidade, o que implica um certo paternalismo cultural. É oferecido à população o que a elite, o que o Estado considera como produtos culturais de alta qualidade. Além disso, o serviço de público de difusão implica certa cumplicidade dos meios perante o Estado.

O serviço público de difusão apresenta dificuldades de se manter no contexto da globalização. No caso da BBC, o governo não pôde impedir as transmissões de rádios piratas. Outro problema desse serviço, é que ele é voltado para todo o território nacional, ignorando muitas vezes questões locais em nome de questões nacionais.

A saída para a formação de um debate comprometido com os cidadãos e livre das interferências do Estado seria, segundo Thompson, o pluralismo regulado. Os meios de comunicação de massa devem pertencer ao domínio privado, entretanto, é preciso haver uma regulamentação que evite a grande concentração das empresas de comunicação. O que o autor defende não é a livre-concorrência, e sim a multiplicidade de idéias. Não é a oferta de diversos produtos ao consumidor, e sim de diferentes pontos de vista para o cidadão que tem direito de saber sobre as decisões do exercício político, na formação da esfera pública essencial na constituição das democracias nas sociedades modernas.

segunda-feira, janeiro 30, 2006

Eu não sou jornalista

No dia de hoje, a tristeza me invade
Não há lirismo nas páginas de um jornal
Eu que não sei ser objetiva, neutra, imparcial

Sei que na poesia não há verdade
A verdade do jornal

Na poesia há liberdade

domingo, janeiro 29, 2006

A dança do universo

Guardem os seus relógios
Que agora é hora de sonhar

Povos antigos em volta da fogueira
Não usavam relógio para o tempo contar
Olhavam a lua e o sol
Para ver o universo dançar

A areia do tempo
Cai no deserto
Das miragens do vento

Onde tudo volta
Para o mesmo lugar

Banharemos-nos no rio dos imortais
E a água que vem é a água que sai

sexta-feira, janeiro 27, 2006

A menina descendo as escadas

Ana corre pelas escadas e vai até o carro. Aquele homem gordo de cabelos brancos era seu pai. Ele a esperava com os braços cruzados e o semblante confuso e medroso. Quem era aquela mulher de vestido esvoaçante que lhe surgia das escadas? Por onde ela andava?

Um abraço meio sem jeito. Filhota, que saudades, seis anos, como você cresceu! Vamos ao shopping?

Tá vendo, Marcos? Essa aqui é minha filhona, não é bonita? Leve a gente ao shopping. Ana descobre a fuga na janela do carro, tudo menos os olhos do pai, por que ele me abraça, eu não o conheço, pare de fingir que esteve o tempo todo comigo, você estava longe. Um estranho, meu Deus, como é possível ter um laço tão forte com um estranho, e eu tenho o mesmo nariz, mas quem é ele?

Ele caminha pelo shopping abraçado a ela, mostra para os conhecidos, vejam, essa é minha filha, não é bonita? Ele a mostrava como uma boneca, e ela se comportava como uma boneca nos braços dele. Deixava-se levar, com sua graça exposta em risos sem vida e olhares sublimes repletos de ausência.

Tantas recordações ele trazia. Às vezes você ficava insistindo pra que eu comprasse um brinquedo, você sempre foi muito teimosa. Ainda é assim, né? Eu dizia, filha, não tenho dinheiro não. Aí você perguntava, mas tem cheque? O riso suado na face gorda, a mão batendo na barriga. Ele sempre teve essa barriga enorme, às vezes eu subia nela quando era pequena e dizia que era uma montanha, como adorava fazer isso.

Ele só fala de coisas do passado, e com tanta intimidade, como se me conhecesse muito bem, mas você não sabe quem eu sou, você só conhece o meu passado, onde estava durante todos esses anos? Onde estava quando vomitei por toda a madrugada no balde de junto da cama, e minha mãe não dormiu cuidando de mim? E quando passei no vestibular? Você nem ligou para dar parabéns, e mamãe, ah, mamãe chorou de felicidade com aqueles olhos de eu lhe quero tanto bem. Não me conhece, não sabe quem é essa mulher que pega e abraça como se amasse, mas o amor não cabe num abraço. Eu sou só lembrança, uma criança que se esvaiu pai, ela não existe mais.

- Olhe só, essa é minha filha, não é bonita?

quinta-feira, janeiro 26, 2006

As profundezas

Você já mergulhou nas profundezas dos mares que habitam a alma, e depois subiu seguindo uma luz distante?

O sol penetra o vidro vermelho da janela, o sol vermelho das frestas envolve o corpo de Cristo pendurado na parede. Posso sentir a minha respiração ofegante cantar para o Cristo de prata.

As pratas da minha avó, guardadas todas em seus devidos lugares. E as panelas? Eu nunca sabia onde colocar as panelas, e odiava lavá-las, cheias de sujeiras difíceis de tirar.

A sujeira. Tudo em mim parecia sujo. O corpo prateado de Jesus. Minha neta, leia este livro sobre um santo, você vai ser uma santa, Deus lhe faça uma santa, sim.

As portas se fechavam na noite e eu delirante em meus pensamentos, as imagens espectrais da casa escura me enfeitiçando. Angústia. Não posso dormir sozinha, e essa escuridão, acenda a luz do corredor pra mim, por favor? O corredor iluminado, e a sala lá longe onde a visão falecia pela lâmpada apagada.

O vento canta em sussurros a ânsia. Uma janela e tantas estrelas.

O enterro de um homem, eu nunca vi esse homem na minha vida. Eu, Roberta, Tiago, todos choramos a morte do homem azul, todos os mortos são azuis.

De repente, o homem se acorda. Vocês vão para o inferno, aguardem Roberta, Tiago, e Maria. Queimarão no fogo do inferno para todo sempre, eu guardo as suas almas em potes de prata num depósito de almas fechado por vidros vermelhos.

Minha mãe aparece no enterro. Maria, o demo se apossou do corpo do Zé, filha, é o demo!

Não, eu não vou arder nas profundezas do inferno, não, não!

segunda-feira, janeiro 23, 2006

Palavras de um rosto anônimo dedicadas a um homem e seu cigarro

O que você vê quando se perde no horizonte
É você mesmo
E você está indo pra onde?

Caminhando a passos largos
Esses passos inseguros
Você não olha para os lados
Mas seu andar é tão confuso
A quem você quer enganar?

Respirando um cigarro
Porque o ar está te matando
Quando dá baforadas
Parece o dono do mundo
Deus tem medo do mundo?

Você tem medo de quê?
Por que mexe tanto as mãos?

Você dá risada de tudo
Mas parece nem ouvir
No que você está pensando
Que te faz rir assim?
Esse riso amargo

Tão angustiado
Quando fala sem parar de qualquer coisa
Por que somos tão banais e poesia é futilidade
Deus não existe e não há verdade
Você é o seu herói
E os anti-heróis são imortais

Quando vou passar por você nas ruas da cidade?
Andando a ignorar
Rostos desconhecidos e paisagens sem sentido
Só há você perdido num mundo vazio e ninguém mais
Ou há um mundo perdido com você vazio e tudo o mais?

domingo, janeiro 22, 2006

Poética


Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao Sr. Diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de excepção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc.

Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbados
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare-
Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

Manuel Bandeira

sábado, janeiro 21, 2006

Cartas de ninguém

Escrevo cartas pra ninguém
Mas quem sabe um dia alguém encontra
E lê as palavras que escrevi pra ninguém

E então alguém se encontrará
Nas palavras escritas pra ninguém
Serão cartas para alguém
Escritas por ninguém
A viver no faz de conta

A alma

O pensamento é o pensamento do pensamento. Claridade tranquila. A alma é de certa maneira tudo o que existe: a alma é a forma das formas. Tranquilidade, súbita, vasta, candente: forma das formas.

James Joyce

sexta-feira, janeiro 20, 2006

O copo de plástico cheio de vinho

O vinho cai no copo de plástico, o sangue. O copo de plástico frágil, o vinho inebriante. Eu sou um maldito copo de plástico cheio de vinho.

Eu não o vi cair das minhas mãos dançando e fazendo deslizar o vinho pelo ar até se machucar no chão. Só vi o copo vulnerável rolando, e o vinho das sensações bebendo lixo, e sendo pisado pelos pés displicentes.

É isso que a idiota faz com o maldito copo de plástico cheio de vinho.

A tua vida

Queria um abraço com gosto de maçã
Macio e doce

Queria assobiar canções com os pássaros
Deitar no mato de lã
Adormecer no teu peito de noite

Sentindo toda a tua vida
Cantando em silêncio com os olhos fechados

A sutileza da poesia
A beleza que versa amar e ser amado.

quinta-feira, janeiro 19, 2006

Persona


A consubstancialização de duas mulheres, Alma e Elizabeth
A transposição da culpa de Bergman para o filme
bergmanelizabethalma

O pai, o pai, o padre, e o altar

Ela fica bem melhor com a saia verde, essa saia rosa a deixa vulgar, detesto quando vou com ela à padaria e os homens a olham de cima a baixo. Quem é esse amigo dela? Um rapaz tão bonito, o Bruno, deixe eu me inclinar, essa blusa tem um belo decote, o sutiã favorece meus seios, ele me chamou de tia. Maldito.

Procurei tanto no shopping uma saia rosa daquele mesmo modelo, só que mais decente, porque sou uma mulher honrada. Esses espelhos de loja me deixam menos bonita, eu pareço mais gorda, não, não vou levar.

O meu rosto tem marcas de tristeza. Eu olho pro espelho e me lembro do mar, aquele que se desfaz no horizonte onde a alma da gente se perde. Povos antigos diziam pra não navegar adiante porque num determinado momento o barco iria cair num abismo infinito. É lá onde a alma da gente cai quando fita o mar.

Como sentir nojo de um beijo nas costas? O frio que sobe sem seduzir, parece medo, acaso não é o desencontro de almas ausentes em corpos enjaulados na cama, aquela cama que eu tinha de dividir, todos os espaços deviam ser divididos, o anel brilha no dedo, somos um.

Foda-me. Uma foda tão típica, já fez a barba? Foda-me. Bruno, sim, sim, me coma como uma vadia. Eu sou uma safada que devora prazeres e te arranha com garras, lhe preparo um boquete para quando acordar. Imagine só, Bruno, você acordando, sentindo o gelo do prazer trespassar a pele e cortar os seus olhos para abrir um novo dia, ah, minha cabeça lá, no meio de suas pernas, chupando sua pica.

Eu fito o pau duro de Eduardo coberto pelo moletom enquanto o sol está nascendo. As mãos brincam com o cordão, boca, língua, pênis. Desisto. Ele não quer, não sei, pra quê, será, melhor não. Deixe assim.

Meu bem, eu já vou trabalhar, viu? Vê se você se não se atrasa pro seu trabalho hoje, ein? Um beijo na testa é o contato mais casto, e aquele que dá o beijo na testa está no comando. Estranha a nossa relação, eu não sou submissa a ele como mulher, mas ele tem poder sobre mim como um pai. Todo o seu excesso de cuidado dissimula a sua dominação.

Minha filha vestida com sua camisola transparente, onde suas curvas se desenham como sombras lascivas, recebe dele um beijo na testa. O mesmo beijo que eu recebi.

quarta-feira, janeiro 18, 2006

Até que o hoje me mate

O ar está me afogando
Borbulhas tépidas de caos
A janela do ônibus
O dia sem fim nas imagens sem sentido

Um dia fodido
Cheios de rostos marcados de cansaço
Pensamentos vazios
Posso sentir a ausência
Nos corpos abandonados ao dia
O dia que vai levando

As horas que vão passando
Como uma eternidade de instantes infinitos
Instantes esses tão iguais
Como se a eternidade não passasse de um mesmo instante

Avante
Você dormiu, mas nem sabe
Onde estava?
Vamos, levante
Um mesmo dia para recomeçar

domingo, janeiro 15, 2006


Quem gosta de miséria é intelectual.
Pobre gosta é de luxo.

Joãozinho Trinta.

sábias palavras...

quinta-feira, janeiro 12, 2006

Poema ilógico


Estou recorrendo à insanidade para desfazer o mundo
O real é um enfado
Mosaico de devaneios
Está tudo ao acaso

Inimiga do tempo
Sucessão de angústias involuntárias
O tempo
Esse tempo que não passa

Existe uma lógica irracional
No meio de tanta vontade
Porque render-se ao desejo
Nunca foi por razão
Nem nobre qualidade

Se entregue às delícias do ópio abstrato
Escória!
A punição

Verás que tu não passas de um fardo
Senhora
Vivendo nos vãos das sombras das horas

Há de saber
que para viver
É preciso ter razão

quarta-feira, janeiro 11, 2006

O encanto das palavrasmundos

Estava recordando os primeiros capítulos da minha grande paixão, a literatura. De como de alguma forma eu me tornei literatura, meu mundo virou um livro construído com a sutileza das palavras que versam as idéias da embriaguez de viver.

Tudo pra mim é literatura. A forma como narro uma história para os amigos é cheia do que vi nos olhares, nos detalhes, o dito pelo não dito. Às vezes sonho que estou lendo um livro, engraçado como as palavras fluem da minha mente, e eu leio como se não fossem minhas. Sabe-se lá o que eu estava lendo. E tudo que escrevo está repleto de subjetividade, sou um projeto frustrado de jornalista, sempre brincando com as palavras, a minha arte de mentir para aniquilar essa falsa verdade repleta de superficialidade.

Lembro que meu primeiro livro lido foi “O jabuti”. Ouvia tanto a professora falar que a gente ia ler um romance, e como eu queria ler um livro, estava tão ansiosa para descobrir aquelas páginas. Já faz tanto tempo, e nem me lembro de que tratava “O jabuti”. Tenho algumas vagas lembranças do momento em que o recebi em minhas mãos, ele era coberto por um plástico transparente com bolinhas verdes e sua capa era branca. E na capa, como não poderia deixar de ser, um jabuti.

O primeiro livro que me marcou muito foi “Barulhinhos no silêncio”. A experiência de lê-lo foi um alívio para as minhas noites intermináveis. A obra tratava de um menino que não conseguia dormir com medo dos sons que ouvia à noite. Uma simples torneira gotejando formava a cadência da música do horror que o deixava de vigília. No decorrer do livro o autor, ou autora, não lembro , vai mostrando através da personagem da mãe que os ruídos dos enredos assustadores fabricados na mente do menino eram apenas o guarda noturno apitando, entre outros pueris barulhos da noite. O menino, assim, vence o medo, e passa a dormir tranquilamente. Lembro-me como hoje de que eu também fantasiava muito com ruídos noturnos, e através desse livro eu encontrei um pouco de paz.

A menina que construía castelinhos na areia, o menino que vai para uma ilha perdida, as histórias de fantasmas contadas por jovens presos num casebre, as aventuras de Orlando, as descobertas de Hans no sanatório de Berghof, a busca de Leopold Bloom... Assim fui descobrindo meu prazer de ler. Hoje tantos personagens que encontrei nas páginas das fantasias de alguém fazem parte de mim, e laboro personagens feitos com partes de mim também. A consubstancialidade de palavras e coisas em idéias num sonho poético.

Euchuva


Olhei pela janela

e vi chovendo eu.

terça-feira, janeiro 10, 2006

O mundo invisível

Queria furtar as cores do mundo
Para fazer um quadro belíssimo

O mundo ficaria invisível
E as cores escondidas por mim

Na contemplação desse quadro magnífico
Estaria plena na fuga

No mundo invisível

Onde não há cores
Nem dores
Nem O Possível.

segunda-feira, janeiro 09, 2006

Poema dedicado à insônia


Quem não faz bem ao dia
A noite faz questão de vingar
Com milícias de devaneios
Ou sonhos para atordoar

Já dizia Nietzche
Para não confiar nos homens
Que na noite não sabem descansar
São fracos
Que não se desafiam sob a luz do sol
E se angustiam sob a palidez da lua

Vejo as ruas vazias de janelas fechadas
Essas almas estarão tranqüilas como suas ruas
Ou escondidas nas angústias das suas casas?

Quem sabe
Quem saberá?

domingo, janeiro 08, 2006

O corpo de Paola Cristo

Tomai todos e comei
Este é o meu corpo que será entregue por vós

Tomai todos e bebei
Este é o cálice do meu sangue
O sangue da nova e eterna aliança
Que será derramado por vós e por todos para a remissão dos pecados
Fazei isso em memória de mim

Corpo e sangue. O cordeiro pregado na cruz para admiração dos devotos, qual sensação de paz provocada pelo Deus-mártir em seu semblante sofrido. Mártires todos nós, de Deus, e Deus é nosso mártir, o cordeiro sacrificado, e nós nos sacrificamos. Mais fácil é um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus.

Todos de joelhos rendidos a adorar o Deus filho de Deus concebido por Deus com Maria, e todos esses Deuses são só Um, e na verdade são os fiéis reconhecidos na cruz do altar em seu pesar de cada dia.

A procissão entoando cânticos para comer Cristo, e lá se vai Maria Cristo, José Cristo, João Cristo, Ana Cristo... A consubstancialização.

Diante do padre, Paola Cristo e seu belo par de fartos seios onde repousava castamente um pingente de Nossa Senhora, Mãe de Jesus, aguardava a hóstia que Padre Antônio relutava em entregar devido aos trajes indecentes da moça, um desrespeito à casa de Deus, dele.

- O que é isso?- perguntou erguendo a hóstia acima dos confusos olhos castanhos de Paola, e evitando outra paisagem.

- O corpo de Cristo.

O corpo de Cristo. Os seios de Cristo. O corpo de Cristo. O corpo de Paola.

- Então você deve respeitar o corpo.

Entregou a hóstia sagrada, os seios sagrados, o corpo sagrado de Paola, queria ser o pingente. Embora houvesse nele o olhar de santidade, e os santos não têm lascívia.

sábado, janeiro 07, 2006

Terra de Acnun

Estava eu andando com Débora pela avenida próxima ao shopping Jardins que vai dar na entrada das Lojas Americanas. Hoje é dia de birita, botar as fofocas em dia, matar as saudades do povo...

- Opa, opa, opa. Pra passar por aqui vai ter que pagar pedágio.

Eram duas crianças, uma menina gordinha, que devia ter seus 14 anos, e um menino magrinho, seu irmão, talvez, provavelmente uns dois anos mais novo, e seu rosto não me era estranho. Os dois fecharam o nosso caminho erguendo cada um seu pedaço de pau. Aquela era a propriedade deles, onde mandavam impetuosos com suas armas, cercando como guardas temerários o caminho que ia dar na ponte mágica que passava por cima do rio, o rio que era o canal onde rolavam as bostas da classe média.

Vocês só passam se pagarem o pedágio, uns 25 centavos no mínimo. Olha, todo mundo pagou, não venham vocês enrolarem a gente. Enquanto Débora discutia com a menina, que ia tomar providência, eles eram menores de idade, e não podiam ficar ameaçando as pessoas, eu reparava no sorriso ingenuamente cínico do menino dedicado a mim, no tom ameaçador da menina segurando a espada como se fosse pra cima de Débora, uma criança usando de um ataque histriônico para se defender do próprio medo.

Nós estamos aqui em nome da juíza, isso é uma propriedade privada, minha filha, dizia a menina erguendo o peito de acordo com a autoridade que merecia o vocábulo “juíza”. Propriedade privada, propriedade privada, isso é uma propriedade privada. Vocês acham que nós somos qualquer um? Estamos aqui em nome da juíza. Qualquer um, qualquer um, em nome da juíza, juíza. A lei. De quem é a lei? Eu os vi fazer uma espécie de lei erguendo aqueles pedaços de pau na avenida, brincando de ser adultos, assim como o menino fazendo guerra com os bonecos, e a menina fingindo que está cozinhando. Eles sabem que a lei não é deles, não é de “qualquer um”, quem eles acham que são e fingiram não ser.

Ali eles defendiam sua propriedade privada com unhas e dentes, sempre falando em nome dela, não já ouviram falar disso em algum lugar? Construíram com sonhos infantis o seu espaço numa sociedade em que essa tal propriedade privada os exclui, cuspindo-os das portas dos shoppings pelos guardas obedecendo às ordens, isso aqui é uma propriedade privada, ternos, fones. Agora eles falam nos mesmos termos, aquela tão típica atitude do dominado de imitar o dominador para ter a sua quimérica insurreição.

Olho para trás e eles continuam erguendo seus pedaços de pau como guardiões do mundo fantástico da faixa de rua que cruza o canal. E algumas pessoas assustadas tentando se desviar. Pra passar por aqui vai ter que pagar pedágio.

terça-feira, janeiro 03, 2006

As paixões de Almodóvar


O universo almodovariano é permeado pelas cores de tons rubros, que no inconsciente coletivo estão relacionadas à paixão e à sensualidade. E a paixão é a lei que rege a vida de seus personagens, entregues à catarse de amores por divindades seculares, seres humanos a quem se atribuem a magia dos deuses.

Almodóvar não fala de amor, fala de paixão. Ele não traz aos nossos olhos personagens envolvidos na sutileza do amor maduro, e sim na obsessão da idolatria amorosa. Em A lei do desejo, o personagem Pablo fala: “O que mais adoro e o que mais odeio no amor são uma e a mesma coisa; o fato de tomar todo o meu tempo e todas as minhas forças”.

O amor de Almodóvar é vassalo, quando Benigno ama e cuida de uma mulher em coma em Fale com ela; é possessivo, quando Ricky amarra Marina na cama em Ata-me; é vingativo quando Antônio mata Juan, a verdadeira paixão de Pablo, em A lei do desejo. Esse amor dá e não precisa receber, ou às vezes exige o outro por inteiro, mas sempre ultrapassando os limites da adoração e se tornando de alguma forma destrutivo, fazendo aquele que ama perder partes de si num mundo onde o centro é o amante-deus.

Há momentos em que me pergunto se não seria essa a forma de o próprio Almodóvar lidar com o amor. Sim, já que seus filmes têm um tom autobiográfico, principalmente Má educação e A lei do desejo. Em ambas as películas o personagem principal é um diretor de cinema, e Almodóvar brinca com as coincidências, usando até a metalinguagem, como no filme dentro do filme, com limites por vezes imprecisos entre um e outro, em Má educação. Almodóvar lança-se descaradamente na tela, e ele mesmo chegou a dizer, até como estratégia de marketing, que conviveu com mais de quarenta meninos em um internato e foi abusado sexualmente por um padre assim como o protagonista de Má educação.

Em Almodóvar, o amor pode não ser maduro, mas também não é hollywoodiano. É bizarro na sua própria medida. Nos amores de Hollywood, há o encantamento do encontro, o êxtase dos desencontros, e a paixão eternizada nos créditos finais que interrompem o nascimento do tédio. Almodóvar nos brinda com seu mundo de bichas, mulheres neuróticas, héteros reduzidos a mínimas dimensões, perdidos dentro da vagina, ou da mente da mulher, como na clássica cena do filme preto e branco inserido em Fale com ela.

Almodóvar recorre ao exagero para mostrar a maturidade de suas reflexões. Ele dá uma bofetada nas nossas convicções ao mostrar uma mulher renascer de um coma logo após ser estuprada pelo perdidamente enamorado Benigno em Fale com ela. Diante de personagens e enredos tão esdrúxulos, encontramos algo de familiar na dimensão semântica do filme. Gentes que num primeiro momento podem parecer tão extraordinárias, mas na verdade são universais. Os amores de Almodóvar surgem como uma faceta para falar de nós.

Ilustração: Eusebio Poncela e Antonio Banderas em A lei da desejo.


segunda-feira, janeiro 02, 2006

O estojo

Veja só a enorme montanha. Papai, sua barriga é uma montanha. É mesmo, filha?

O senhor é meu pastor, nada me faltará. Pobre de Jesus, sofreu tanto, há cruz na sala, no quarto de vovó, no quarto onde a gente vai dormir no chão. Minha filha, eu não sei o que fazer, a gente vai ter que morar na casa de sua avó, estou me divorciando do seu pai, não tenho dinheiro, você vai estudar numa escola pública, ai meu Deus. Meu irmão caçula nos fita nu e água deslizando pelo seu rosto ingenuamente atônito. O desespero somos nós, dividindo lágrimas, no abraço a gente não se cabe.

A gotícula de suor se mistura com o sorriso e com o sol batendo no rosto da porteira negra e gorda do colégio. Bom dia, menina, bom dia, senhora. Bom dia, professora. Tênis velhos, blusas furadas, rostos negros tão raros na antiga escola.

Posso saber o motivo do atraso? Eu estava ajudando o meu pai no serviço de pedreiro. Eu tava carregando baldes, faltou água lá em casa hoje. Fazendo o almoço, professora. Nádia com um olhar de condescendência triste e acostumada fazia sinal com a cabeça de que sim, entendia, não ia colocar falta, mas, por favor, evitassem que isso se repetisse, estavam dando pouco valor aos estudos.

Abro a mochila ansiosa para pegar o lindo estojo amarelo que minha mãe havia comprado. Ah, ele era tão divertido, tinha uns espaços onde eu podia deixar as canetas arrumadinhas em pé, tinha várias gavetinhas, tão bonito meu estojo. Percebi mil olhos me rondando.

- Maria Joaquina!

- O quê?

- Isso mesmo, você é Maria Joaquina!

Escondi o estojo acanhada.

A sirene toca para fazer correr as crianças, amontoadas numa fila imensa olhando pro caldeirão de onde sai o vapor que dança no ar brincando com os olhos das fomes. Qual é o lanche de hoje? Arroz, feijão, e almôndegas. Um menino come com avidez, aquela seria a única refeição do dia, e o motivo que o trazia ao colégio. Eu desaprovo o lanche e saio da fila para felicidade do colega que estava atrás de mim.

A capital do Amazonas é... Manaus. O vidro da janela quebrado. Uma seringa no chão. O muro. Vanessa disse que alguns ladrões pulam o muro, roubam dinheiro de alunos, fumam maconha no pátio. Matheus fica interpretando pra mim os dizeres escritos com spray nas paredes do colégio como um sábio. Uma vez quebraram os vidros do carro da professora Nádia, sabe como é, ela é a que mais puxa daqui do Leite Neto, aí dá nisso. Eu gosto tanto dela, ela é a única que dá aula mesmo e se importa com a gente. Tá certo que eu sou vagabundo, ela vive reclamando, Matheus isso, Matheus aquilo, mas eu gosto dela.

Vidros quebrados. O muro. As árvores onde a gente se pendura pra ficar mais perto do céu, o vento levando a alma junto com as folhas, o corpo saltando pro chão e se misturando com a areia e com o mato, doce sujeira, imagine um planeta feito de chocolate? Raíssa e eu megulhamos no planeta de chocolate.

Seja bem-vindo. Era um tapete simpático. Poucas coisas, lá estava logo na entrada Jesus de novo crucificado, um sofá velho rasgado, a geladeira enferrujada, o sorriso sem graça da mãe de Raíssa ao abrir a geladeira para me dar água. Não havia nada além de uma tigela de arroz e jarras de água. Deu para ouvir entre os sussurros por que você trouxe esse menina pra cá na hora do almoço, a gente não tem nada pra comer, que vergonha.

Embarque neste carrossel, onde o mundo faz de conta que ele é carrossel...

- Olhe só, Carrosel, vamos assistir!
- Bora!
- Quer biscoito cream craker?
- Não, obrigada.

Os olhos de Raíssa ficaram magoados. Acabamos assistindo Carrossel e dividindo o pacote de mentiras cream craker, para ela enganar a fome e eu fingir que era normal alguém comer biscoitos no almoço, estava tudo bem, veja só, mais um pego pelo Guerra, o japonês levado! Ah, a Laurinha disse que acha tão sexy homens que fumam, eu também acho, você não acha?

Embarque neste carrossel, onde o mundo faz de conta que ele é carrossel...

domingo, janeiro 01, 2006

De novo

Beijos, champanhes,
Estrelas espumantes
Promessas atiradas ao céu
Para as estrelas de pólvora

Ressaca
Fim de tarde
Tédio
Os passarinhos cantam com ressaca

Ano novo
Mas o que faz do dia de hoje um ano novo?
Nada de novo
De novo
De novo

Feliz ano novo.

Before sunrise


Daydream, delusion, limousine, eyelash
Oh baby with your pretty face
Drop a tear in my wineglass
Look at those big eyes
See what you mean to me
Sweet-cakes and milkshakes
I'm delusion angel
I'm fantasy parade
I want you to know what I think
Don't want you to guess anymore
You have no idea where I came from
We have no idea where we're going
Latched in life
Like branches in a river
Flowing downstream
Caught in the current
I'll carry you
You'll carry me
That's how it could be
Don't you know me?
Don't you know me by now?

Poema recitado por uma vagabundo nas ruas de Viena para Jesse(Ethan Hawke) e Celine(July Delpy).