sábado, janeiro 01, 2011

Proteu

Continuando a saga de reler Ulisses, de James Joyce, hoje li o terceiro capítulo, denominado Proteu. Bernardina Pinheiro conta que Joyce afirmou que este capítulo leva ao limite as categorias aristotélicas de tempo e espaço, como também coloca em crise os sentidos da audição e da visão. Trata-se de um capítulo bastante difícil de digerir e bem menos narrativo (no sentido convencional) do que os dois primeiros.

Na praia de Sandymount, Stephen Dedalus tem uma experiência um tanto quanto lisérgica diante das paisagens, e inclusive rememora os dias que passou na França na companhia de Kevin Egan, quando apreciou fumo e absinto. E Dedalus experimenta de modo poético essa reviravolta dos sentidos na praia. Inelutável modalidade do visível: ao menos isso se não mais, pensei através dos meus olhos. Assinatura de todas as coisas que estou aqui para ler, ovas-do-mar e destroços do mar, a maré se aproximando, a bota enferrujada. (...) Como quer que seja, você está andando através disso. Eu estou, um passo largo de cada vez. Um muito curto espaço de tempo através de muito curtos tempos de espaço. (...) Exatamente: e isso é a modalidade inelutável do audível. Abra seus olhos.

Através da sinestesia, Joyce testa os limites entre as categorias de tempo e espaço, como também entre os sentidos da visão e da audição, apresentando uma percepção difusa do mundo. Ou seja, a escrita de James Joyce, que dialoga com a teoria psicanalítica e com a vanguarda do surrealismo, propõe uma revolução da linguagem através da revolução da própria percepção. E Joyce diz, através do seu personagem Stephen Dedalus: Você acha as minhas palavras obscuras. A escuridão está em nossas almas, você não acha? Mais aflautado. Nossas almas, feridas pela vergonha de nossos pecados se aferram ainda mais a nós, uma mulher se apega ao seu amante, mais e mais. Esse novo modo de olhar a realidade e a libertação do incosciente passariam também pelo erotismo - não sem certa culpa, já que sabemos que James Joyce teve uma rígida educação católica.

Essa valorização da irracionalidade termina ocorrendo também através da monstruosidade dos animais em Ulisses. Sabemos que os personagens monstros são caracterizados pela liberdade que é temida por nós. Um ponto, um cão vivo, surgiu à vista ao longo da praia. Meu Deus, será que ele vai me atacar? Respeite a liberdade dele. Você não será o patrão dos outros ou o escravo deles.

Na praia de Sandymount, há um momento em que Stephen Dedalus tem delírios (acredito que sejam) vendo a Sra. Florence MacCabe, uma viúva, caminhando atrás de uma parteira que leva uma sacola plástica contendo um feto. Penso que a visão do feto abortado remete ainda à conflituosa relação entre Dedalus e sua mãe, e a culpa que ele carrega por ter se negado a atender o seu último pedido antes da morte.

Sabemos que James Joyce é afeito à criação de neologismos e também ao uso de onomatopéias, e neste capítulo ele brinca com os barulhos do mar, como também relaciona a cor do mar à cor da meleca que Stephen Dedalus retira do nariz e coloca sobre uma rocha, chamando o mar de verdemeleca.

Cá pra nós, as passagens com as quais eu me identifiquei foram estas:

O sofrimento está longe.
E basta de virar para o lado e meditar.

Sou como sou. Como sou. Ou tudo ou nada.

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