quarta-feira, janeiro 12, 2011

O desejo

Ousei desfrutar do teu desejo com a dissimulação de quem tem um straight flush e finge ter um par. Nesse jogo, não poderíamos ser um par. A delicadeza do blefe, os olhares que se cruzam numa linha imaginária sobre uma mesa repleta de fichas. Eu queria que tu me amasses. E para isso precisei fingir estar à sua revelia. Vivi de pequenos gestos, de não aumentar as minhas apostas e sempre ceder, submissa, às suas. Conduzi-o à mais pura vaidade, e, confiante, as tuas apostas cresceram sucessivamente. Tu confiavas em mim - eu não costumava mentir no jogo. Seria incapaz de agir como se tivesse o que não tinha. E à medida que tua confiança crescia e tuas apostas aumentavam, eu ludibriava-o com os meus olhos baixos, as mãos trêmulas segurando as cartas como se nem as soubesse de cor. Eu te amava sim: amava-te porque não sei mentir e, justo por isso, acredito piamente nas minhas mentiras. Amava-te entranhado em mim, lá, devorando as minhas vísceras, mas essa que te amava já estava morta e tu não passavas de um abutre. Amava-te pela inebriante possibilidade de ser amada. Eu queria ser amada e não desistiria disso até apostares tudo o que tinha. E assim foi. E eu ganhei o jogo. E sussurrei no teu ouvido que o desejo só existe na ausência do objeto que desejamos. E que, entre ser desejada e ser amada, eu cá preferia ser desejada. Mesmo que soasse obsessivo, mesmo que não preenchesse o vazio. Meu vazio seria ainda maior com o tédio da tua companhia durante todo nascer do dia. Eu queria ser uma imagem, e uma imagem adorada. Um sacrilégio! E assim eu saúdo Johannes ao ler suas palavras...

*

Minha Cordélia,

O que é o desejo? A língua e os poetas rimam desejo e prisão. Que absurdo! Como se aquele que está na prisão pudesse queimar em desejo! Se eu fosse livre, como arderia! E, por outro lado, sou livre como um pássaro e, acredita-me, queimo em desejo - sinto-o ao ir para a tua casa e quando te deixo, e ainda, quando estou sentado queimo em desejo por ti. Mas poder-se-á então desejar aquilo que se possui? Sim, quando pensamos que, no instante seguinte, já não o possuímos. O meu desejo é uma impaciência infinita. Se eu tivesse vivido todas as eternidades e ganho a certeza de que me pertencerias em todos os seus instantes, só então estaria junto de ti e viveria comigo todas as eternidades - certamente não teria paciência bastante para estar um só momento separado de ti sem arder em desejo, mas possuiria a confiança suficiente para me manter calmo a teu lado.

Teu Johannes.

Diário de um sedutor, de Sören Kierkegaard.

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