sexta-feira, maio 26, 2006

Cinema e sonho


Freud trata o sonho como um lugar do desejo, da identificação, e da projeção. O cinema também é. No sonho, a projeção se dá no fato de todos os personagens terem relação intrínseca com o indivíduo que sonha, pois é ele quem elabora as ações deles por processos psíquicos inconscientes. Na situação fílmica, o espectador se projeta nos personagens do filme, e às vezes torce por eles. Se no cinema o espectador se projeta e se identifica com personagens representados na tela, no sonho o indivíduo se projeta e se identifica com personagens criados por ele mesmo.

A situação fílmica tem um caráter de narcisismo e de voyeurismo. O espectador se coloca enquanto personagem principal e sujeito daquelas imagens, como se o olhar na tela fosse o seu olhar, e não o da câmera. Ele é voyeur, pois contempla o filme como se espiasse uma realidade com sua lente onipresente. Binóculos a postos, o espectador se mete em todas as situações e sabe o que o assassino está tramando, mesmo que os personagens do filme não façam a mínima idéia.

A sucessão das imagens na tela se assemelha à forma como as representações do pensamento fluem. Um olhar no interior sobre fantasias, lembranças, idéias, se desenvolve como um filme elaborado pela psique. Um filme que nós inventamos com nossa memória, recriando os acontecimentos de acordo com nossa subjetividade, ou quando realizamos desejos que não estão ao nosso alcance na realidade imediata. A diferença entre o olhar do sonho e o do cinema é que na situação fílmica o indivíduo entra em contato com um material perceptivo real, enquanto no sonho ele desenvolve representações mentais. No cinema ele olha para a tela, no sonho ele vê de olhos fechados as figuras do seu inconsciente.

Tanto no sonho quanto na situação fílmica, os indivíduos podem vir a confundir realidade e fantasia. Parafraseando Guy Debord, o espetáculo é real, e o real é espetáculo. Alguns fecham os olhos por não suportar ver o sangue, outros gritam de medo, há aqueles que choram na sala do cinema. Saber que está vendo uma película não impede que o espectador confunda o real com o imaginário no momento em que ele se encontra envolvido com o filme. Seria como quando um indivíduo de repente descobre que está sonhando, mas se deixa levar pelos seus desejos, fenômeno chamado por Freud de sonho dentro do sonho.

Por mais que um filme apresente imagens absurdas, ele sempre terá mais lógica do que um sonho. Em Um cão andaluz, de Luis Buñuel e Salvador Dali, as seqüências que pareciam ter alguma lógica eram refeitas para que as imagens tivessem um caráter onírico. Buñuel e Dali eram surrealistas e, portanto, tinham intenções claras de promover a libertação do homem reprimido pelos ditames da civilização, e buscavam a contestação da racionalidade e exaltação da irracionalidade. Mas essa busca pela falta de lógica não seria uma outra forma de lógica ao invés da ausência dela?

Ver um filme é algo semelhante a sonhar acordado. Sonhos são espécies de filmes produzidos pela nossa inconsciência, e filmes são como sonhos exteriores a nós. Então acaba o filme, as luzes se acendem, demoramos um tempo para nos recuperarmos da hipnose das imagens, e saímos da sala como se estivéssemos acordando.

Imagem: Um cão andaluz, 1929.

2 comentários:

Tudo disse...

eu me amarro neste tema.
leio sempre (sempre lendo e relendo) O HOMEM E SEUS SIMBOLOS - jung e colaboradores
as vezes sonhos parecem filmes e filmes, sonhos.
o inconsciente produz muitos deles.

Anônimo disse...

Borges dizia que a grande vantagem do sonho é que é o único lugar onde se é diretor, roterista, protagonista e espectador ao mesmo tempo. Uma especie de woody allen..rrsrsrsrsrsrsr.