sexta-feira, março 31, 2006

E de pensamentos idos


E lívida
Em organdi
Entre os escombros?
Indefinível como criatura.

Eternamente viva.
*

Sendo quem sou, em nada me pareço
Desloco-me no mundo ando a passos
E tenho gestos e olhos convenientes
Sendo quem sou
Não seria melhor ser diferente
E ter olhos a mais, visíveis, úmidos
Ser um pouco de anjo e de duende?
Cansam-me estas coisas que vos digo.
As paisagens em ti se multiplicam
E o sonho nasce e tece ardis tamanhos.
Cansa-me ser assim quem sou agora:
Planície, monte, treva, transparência.
Cansa-me o amor porque é centelha
E exige posse e pranto, sal e adeus.

Querer o verso ainda? Assim seja.
Mas viverás tua vida nesses breus.
*

Amáveis
Mas indomáveis
O poeta e seu cavalo.
Um arcabouço pensado
Para limitar-se ao pouso
E do vôo alimentar-se.
Sente os espaços, mas sabe
Até onde irá seu passo
Sente a beleza do salto
Mas conhece sua lhaneza:
A própria, inerte beleza
De saber-se aprisionado
E contentar-se de sonhos
Maravilhar-se de achados.

O poeta- e seu vocábulo.
O cavalo- e seu pedaço de terra
Mais nas alturas,
De brisa, de solidão e hortaliça.
Entrelaçadas aspiram
Respiram juntos

E vistos em direção
As cordilheiras do espanto
Quase sempre se confundem.
Sonhando reter no flanco
Exaltação e delírio,
Nas noites de grande lua
(entre cipestres e lírios)
O cavalo me acompanha
À profundezas guardadas
Onde flutuam palavras
E lá mergulho e anoiteço.
E encontro coisas do medo
Mandalas de cor, rosáceas
E malmequeres antigos
Sobre algum livro encantado
De pergaminho, de prata
E de pensamentos idos.
*

Eu caminhava alegre entre os pastores
E tatuada de infância repetia
Qie é melhor em verdade ter amores
E rima transitória para o verso.
Para cantar mais alto é Até preciso
Desdobrar-se em afetos e amar
Seja o que for, luares e desertos
E cantigas de roda e ditirambos.

Entre o amarelo e o rosa, a lua nova
Na vida também nova, ressurgia.

Hilda Hilst.

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