sexta-feira, março 31, 2006
Palavras, palavras, palavras
No fluxo das horas chego atrasada para quase todos os momentos diários. Sobre passos, tudo volta e segue para a mesma rota, aonde eu vou parar. Trezentos e sessenta. Escrever coisas que não fazem muito sentido, porque para haver sentido é preciso haver um certo regimento das idéias, palavras acabam soltas, avulsas, e o dilema de não saber de nada além de que nada sabe. Perder-se nos rumos das palavras. As palavras e as coisas. Coisas e signos arbitrários, as palavras abstratas, nunca expressando tudo o que há. Não chamaria de imperfeição. Se as coisas fossem feitas para expressar palavras elas também não dariam conta de todo o sentido. De início havia o Verbo. Primeiro eram as palavras, como se tivessem um poder criador, eles acreditavam. Mas de início eram as coisas e o homem fez o verbo. Pensamentos seguindo um fluxo desnorteado, vai bater num poste, vai, vai. Postes e luzes. As moscas em volta da luz, insetos adoram luz. E eu odeio ruas com postes sem luz. Mas não sou um inseto. Isso não faz sentido, é o fluxo do pensamento desvairado. A lógica circular é a falta de lógica.
E de pensamentos idos
E lívida
Em organdi
Entre os escombros?
Indefinível como criatura.
Eternamente viva.
*
Sendo quem sou, em nada me pareço
Desloco-me no mundo ando a passos
E tenho gestos e olhos convenientes
Sendo quem sou
Não seria melhor ser diferente
E ter olhos a mais, visíveis, úmidos
Ser um pouco de anjo e de duende?
Cansam-me estas coisas que vos digo.
As paisagens em ti se multiplicam
E o sonho nasce e tece ardis tamanhos.
Cansa-me ser assim quem sou agora:
Planície, monte, treva, transparência.
Cansa-me o amor porque é centelha
E exige posse e pranto, sal e adeus.
Querer o verso ainda? Assim seja.
Mas viverás tua vida nesses breus.
*
Amáveis
Mas indomáveis
O poeta e seu cavalo.
Um arcabouço pensado
Para limitar-se ao pouso
E do vôo alimentar-se.
Sente os espaços, mas sabe
Até onde irá seu passo
Sente a beleza do salto
Mas conhece sua lhaneza:
A própria, inerte beleza
De saber-se aprisionado
E contentar-se de sonhos
Maravilhar-se de achados.
O poeta- e seu vocábulo.
O cavalo- e seu pedaço de terra
Mais nas alturas,
De brisa, de solidão e hortaliça.
Entrelaçadas aspiram
Respiram juntos
E vistos em direção
As cordilheiras do espanto
Quase sempre se confundem.
Sonhando reter no flanco
Exaltação e delírio,
Nas noites de grande lua
(entre cipestres e lírios)
O cavalo me acompanha
À profundezas guardadas
Onde flutuam palavras
E lá mergulho e anoiteço.
E encontro coisas do medo
Mandalas de cor, rosáceas
E malmequeres antigos
Sobre algum livro encantado
De pergaminho, de prata
E de pensamentos idos.
*
Eu caminhava alegre entre os pastores
E tatuada de infância repetia
Qie é melhor em verdade ter amores
E rima transitória para o verso.
Para cantar mais alto é Até preciso
Desdobrar-se em afetos e amar
Seja o que for, luares e desertos
E cantigas de roda e ditirambos.
Entre o amarelo e o rosa, a lua nova
Na vida também nova, ressurgia.
Hilda Hilst.
quinta-feira, março 30, 2006
Deixe Cibele com os livros
Quando abri a porta do quarto dos fundos, Cibele fez um estranho movimento de susto, e ao fitar suas mãos desajeitadas descobri um dos livros da estante. Cibele fica sem graça quando acha que está fazendo coisas que não lhe pertencem ou se acha mal educada. Ela tem vergonha de só saber comer usando uma colher de sopa, e se recusa a almoçar ao meu lado, sempre aguardando a hora em que vou me retirar da mesa. Quando eu chego à mesa e ela já está comendo, Cibele fica fazendo círculos com a colher enquanto fita a comida, e às vezes olha para mim de soslaio. Peguei minhas roupas para ir tomar banho, e saí de fininho como se não tivesse visto nada.
quarta-feira, março 29, 2006
A televisão
Rosa Maria Mateo, uma das figuras mais populares da televisão espanhola, me contou esta história.
Uma mulher tinha escrito uma carta para ela, de algum lugarzinho perdido, pedindo que por favor contasse a verdade:
-Quando eu olho para a senhora, a senhora está olhando para mim?
Rosa Maria disse que não sabia o que responder.
Eduardo Galeano.
terça-feira, março 28, 2006
As cores dos sonhos
Vou inventar uma nova cor dessas que aparecem nos sonhos.
Dizem que sonhamos em preto e branco, mas não creio.
Quem irá tirar fotografias para mostrar que sonho em branco e preto?
Lembro de perguntas que me fazia na infância
Como alguém que nunca viu sonha?
Onde é o fim do arco-íris?
O vermelho que eu vejo é o mesmo para minha mãe ou ela está vendo verde?
Será que existe um mundo onde todas as cores são diferentes dessas que vejo?
Até hoje só descobri que o arco-íris não tem fim nem começo.
Mas tive um sonho em que eu chegava ao fim do arco-íris.
sábado, março 25, 2006
- E sabe, é como naquela velha piada do tipo que vai ao psiquiatra. Ele diz, doutor, meu irmão é louco, ele acha que é uma galinha. E o médico pergunta, então por que você não o interna? Eu até o internaria, mas é que preciso dos ovos. É o que sinto sobre as relações humanas, são totalmente loucas, absurdas, e irracionais, mas nós vamos aguentando, porque precisamos dos ovos.
Alvy Singer em Noivo Neurótico, Noiva Nervosa, de Woody Allen, interpretado pelo próprio diretor.
Estar no olhar
Percebi que sou fascinada pelo olhar.
Sempre busco no olhar o que faltou nas palavras,
fico tentando descobrir o outro.
Porque gosto de sentir as pessoas,
e me aproximo um pouco mais no fluxo da alma vertendo-se nas pupilas.
Elucidar os signos que os seus olhos espalham de forma simplória.
Não é para saber de algum segredo.
Muito mais do que saber o que alguém sente,
é estar onde o outro está.
quinta-feira, março 23, 2006
Lucas
Ele se matou logo depois de saber que minha mãe o havia traído. A gente era uma família perfeita. Meu pai era louco pela minha mãe, nunca faltou dinheiro, a gente viajava muito, sempre fui bom aluno e trabalhador. Aí minha mãe arranja esse caso.
Não sei o que se passava pela cabeça dela. Mas ela era assim. Se estava tudo arrumadinho nos seus devidos lugares, ela vinha e deixava a bolsa em cima da mesa logo que chegava do trabalho. Tomava todas as noites alguns cálices de vinho e ficava rindo como uma qualquer. Ela cuidava de mim como se brincasse, estava mais preocupada em me divertir do que em me dar alguma lição. E meu pai, sempre meu pai, o homem metido no meio dos papéis aperreado com as contas. Minha mãe vinha e beijava seu pescoço.
Por que você me traiu? Não sei. Pra tudo tem resposta. Pra certas coisas não. Por quê? Acho que não conseguia aceitar que a nossa vida era perfeita.
Minha mãe não tinha coragem de ir até o quarto deitar na cama que eles dividiram por tanto tempo, e ficar ao lado do corpo dele cheio de mágoa a noite inteira. Ela ficou na sala vendo televisão, estática, e com os olhos pairando nas imagens em pensamentos distantes.
Silêncio à mesa. Ela dizia meias palavras, mas meu ódio, ah meu ódio era tanto que ela sabia que era melhor se calar e tomar o café. Passou o tempo, e nada do meu pai sair do quarto. A porta, a vasta poça de sangue, os pulsos cortados, o meu pai estava morto. Morto, sim.
Lucas? Júnior? Às vezes você fica perdido pensando na morte da bezerra. É, desculpe. Tão gostoso ficar na rede aqui na varanda, Lucas.
Estava pensando no trabalho, tem gente querendo me passar a perna. Deixe de ser assim, preocupado, menino. Que pescoço gostoso, meu Deus, me deixe morder, vá. Você deixou as meias em cima da cama, eita você bagunçada, meu amor. Sempre que dorme aqui, deixa alguma coisa, faz uma baguncinha. Tá bom, depois eu vou lá pegar. Pescoço gostoso!
Às vezes os amantes ficam assim, em silêncio, e às vezes esse é o momento mais bonito, o do aconchego.
De repente, Lucas agarrou o pescoço de Laís, e depois a jogou no chão. Ele dizia coisas ininteligíveis, e com uma voz que não parecia ser a sua. Eu vou matar aquela puta, cadê ela? E foi correndo pela casa atrás de Carlota.
Carlota gritou, se debateu, segurou a faca de cozinha com as mãos trêmulas, mas Lucas lhe deu um tapa, e lá se foi a faca e seu corpo no chão. Puxou-a pelos cabelos, depois agarrou os seus braços e a conduziu até a varanda.
O que você tá fazendo, Lucas? Vai matar sua mãe? Você tá louco? Meu Deus, pare com isso! E seguiu-se uma luta de Laís puxando Lucas com todas as suas forças, e ele tentando empurrar a mãe pela janela. Até ele desmaiar no chão.
Lucas era muito religioso, e foi ao centro espírita junto com Laís perguntar ao médium alguma explicação para o que havia se passado. O médium colocou a mão sobre a cabeça de Laís e disse: Você é médium, pode sentir a presença de pessoas do outro mundo, saiba usar esse dom.
O médium explicou que o pai de Lucas era uma alma perturbada. Lucas não conseguia descansar em paz porque ainda estava preso ao seu passado, e queria a todo custo se vingar usando o corpo do filho para matar Carlota. Era preciso orar pela alma de Lucas.
Lucas foi morar sozinho, e aos poucos foi se afastando de Laís. Não suportava a presença da mãe. E orava todos os dias pela alma do pai.
Não sei o que se passava pela cabeça dela. Mas ela era assim. Se estava tudo arrumadinho nos seus devidos lugares, ela vinha e deixava a bolsa em cima da mesa logo que chegava do trabalho. Tomava todas as noites alguns cálices de vinho e ficava rindo como uma qualquer. Ela cuidava de mim como se brincasse, estava mais preocupada em me divertir do que em me dar alguma lição. E meu pai, sempre meu pai, o homem metido no meio dos papéis aperreado com as contas. Minha mãe vinha e beijava seu pescoço.
Por que você me traiu? Não sei. Pra tudo tem resposta. Pra certas coisas não. Por quê? Acho que não conseguia aceitar que a nossa vida era perfeita.
Minha mãe não tinha coragem de ir até o quarto deitar na cama que eles dividiram por tanto tempo, e ficar ao lado do corpo dele cheio de mágoa a noite inteira. Ela ficou na sala vendo televisão, estática, e com os olhos pairando nas imagens em pensamentos distantes.
Silêncio à mesa. Ela dizia meias palavras, mas meu ódio, ah meu ódio era tanto que ela sabia que era melhor se calar e tomar o café. Passou o tempo, e nada do meu pai sair do quarto. A porta, a vasta poça de sangue, os pulsos cortados, o meu pai estava morto. Morto, sim.
Lucas? Júnior? Às vezes você fica perdido pensando na morte da bezerra. É, desculpe. Tão gostoso ficar na rede aqui na varanda, Lucas.
Estava pensando no trabalho, tem gente querendo me passar a perna. Deixe de ser assim, preocupado, menino. Que pescoço gostoso, meu Deus, me deixe morder, vá. Você deixou as meias em cima da cama, eita você bagunçada, meu amor. Sempre que dorme aqui, deixa alguma coisa, faz uma baguncinha. Tá bom, depois eu vou lá pegar. Pescoço gostoso!
Às vezes os amantes ficam assim, em silêncio, e às vezes esse é o momento mais bonito, o do aconchego.
De repente, Lucas agarrou o pescoço de Laís, e depois a jogou no chão. Ele dizia coisas ininteligíveis, e com uma voz que não parecia ser a sua. Eu vou matar aquela puta, cadê ela? E foi correndo pela casa atrás de Carlota.
Carlota gritou, se debateu, segurou a faca de cozinha com as mãos trêmulas, mas Lucas lhe deu um tapa, e lá se foi a faca e seu corpo no chão. Puxou-a pelos cabelos, depois agarrou os seus braços e a conduziu até a varanda.
O que você tá fazendo, Lucas? Vai matar sua mãe? Você tá louco? Meu Deus, pare com isso! E seguiu-se uma luta de Laís puxando Lucas com todas as suas forças, e ele tentando empurrar a mãe pela janela. Até ele desmaiar no chão.
Lucas era muito religioso, e foi ao centro espírita junto com Laís perguntar ao médium alguma explicação para o que havia se passado. O médium colocou a mão sobre a cabeça de Laís e disse: Você é médium, pode sentir a presença de pessoas do outro mundo, saiba usar esse dom.
O médium explicou que o pai de Lucas era uma alma perturbada. Lucas não conseguia descansar em paz porque ainda estava preso ao seu passado, e queria a todo custo se vingar usando o corpo do filho para matar Carlota. Era preciso orar pela alma de Lucas.
Lucas foi morar sozinho, e aos poucos foi se afastando de Laís. Não suportava a presença da mãe. E orava todos os dias pela alma do pai.
segunda-feira, março 20, 2006
Caçador de mim
Por tanto amor
Por tanta emoção
A vida me fez assim
Doce ou atroz
Manso ou feroz
Eu caçador de mim
Preso a canções
Entregue a paixões
Que nunca tiveram fim
Vou me encontrar
Longe do meu lugar
Eu, caçador de mim
Nada a temer senão o correr da luta
Nada a fazer senão esquecer o medo
Abrir o peito a força, numa procura
Fugir as armadilhas da mata escura
Longe se vai
Sonhando demais
Mas onde se chega assim
Vou descobrir
o que me faz sentir
Eu, caçador de mim
Milton Nascimento
Por tanta emoção
A vida me fez assim
Doce ou atroz
Manso ou feroz
Eu caçador de mim
Preso a canções
Entregue a paixões
Que nunca tiveram fim
Vou me encontrar
Longe do meu lugar
Eu, caçador de mim
Nada a temer senão o correr da luta
Nada a fazer senão esquecer o medo
Abrir o peito a força, numa procura
Fugir as armadilhas da mata escura
Longe se vai
Sonhando demais
Mas onde se chega assim
Vou descobrir
o que me faz sentir
Eu, caçador de mim
Milton Nascimento
domingo, março 19, 2006
Na estrada
Então essa é a estrada. As árvores dançam a música, sem lenço sem documento, nada no bolso ou nas mãos, eu quero seguir vivendo. Não podia ficar olhando a estrada, depois de um tempo começava a ter vertigens, às vezes descia do carro esperando o vômito, mas nada. Tudo sempre ficou nas sensações. Rasgava com as pequenas roídas unhas o limão, e cheirava porque a avó dizia que o odor do limão fazia parar as náuseas. Não olhe a estrada, menina, pare de olhar e você vai ver que melhora. Ela ficava ouvindo as árvores dançarem e sempre com o limão de junto do nariz.
Saltava quando via o morro onde estava antiga igreja dos jesuítas. Lembrava das aulas de História, e ficava imaginando como seriam aquelas terras naquela época, sem a estrada, mato pra tudo que era lado, os padres ensinando aos índios que era pecado ficar nu. Aquela igrejinha lá em cima, esquecida no tempo, como pode ela não cair? Sentia uma vontade danada de subir no morro, entrar lá pra imaginar os índios e os jesuítas, e ficar mais perto do passado.
O terço se balançando no espelho do carro. Sob a cabeça os aviões, sob os meus pés os caminhões, aponta contra os chapadões meu nariz. Adriana! Adriana? O quê, vó? Adoro ouvir as fitas da mamãe. Diga, eu tô ouvindo. Ah, minha neta, os índio andavam nus, mas eles eram inocentes, não sabiam que era pecado. Eles são igual bicho.
Quando era pequena, ela andava pela casa vestindo nada mais que calcinhas bordadas. Um dia desses quando se arrumava pra ir à missa, a tia mandou mudar a blusa, essa blusa mostra a barriga, menina, vá botar outra, você vai pra casa de Deus. Ela trocou a roupa com os olhos atônitos. Olhava para o padre como se prestasse muita atenção às suas palavras. Por que essa é a casa de Deus? Adão e Eva andavam nus e Deus os expulsou do paraíso quando sentiram vergonha. E não era para eles sentirem não?
Todas essas histórias de pecado, inferno davam um nó na sua cabeça. Está certo que havia pecados que levariam direto para o inferno. Mas a partir de quantos pecados menores uma pessoa ia para o inferno? Como devem ser os castigos? Deve ser muito ruim ficar sofrendo pra sempre. Mas o céu, sei lá, tudo perfeito. Pensou que talvez ficasse enjoada do céu. E não conseguia imaginar como seria o purgatório, mas falam pouco dele, ele nunca apareceu na televisão, só falam de céu e inferno.
Ela não entendia nada. Mas quando olhava pra estrada, percebia que adorava a vida e todas as suas alegrias, dores, emoções, enfim. Contemplava as pessoas, queria descobrir as coisas do mundo, mas tudo isso ela só sentia, não entendia nada. Amava a estrada e o vento.
Saltava quando via o morro onde estava antiga igreja dos jesuítas. Lembrava das aulas de História, e ficava imaginando como seriam aquelas terras naquela época, sem a estrada, mato pra tudo que era lado, os padres ensinando aos índios que era pecado ficar nu. Aquela igrejinha lá em cima, esquecida no tempo, como pode ela não cair? Sentia uma vontade danada de subir no morro, entrar lá pra imaginar os índios e os jesuítas, e ficar mais perto do passado.
O terço se balançando no espelho do carro. Sob a cabeça os aviões, sob os meus pés os caminhões, aponta contra os chapadões meu nariz. Adriana! Adriana? O quê, vó? Adoro ouvir as fitas da mamãe. Diga, eu tô ouvindo. Ah, minha neta, os índio andavam nus, mas eles eram inocentes, não sabiam que era pecado. Eles são igual bicho.
Quando era pequena, ela andava pela casa vestindo nada mais que calcinhas bordadas. Um dia desses quando se arrumava pra ir à missa, a tia mandou mudar a blusa, essa blusa mostra a barriga, menina, vá botar outra, você vai pra casa de Deus. Ela trocou a roupa com os olhos atônitos. Olhava para o padre como se prestasse muita atenção às suas palavras. Por que essa é a casa de Deus? Adão e Eva andavam nus e Deus os expulsou do paraíso quando sentiram vergonha. E não era para eles sentirem não?
Todas essas histórias de pecado, inferno davam um nó na sua cabeça. Está certo que havia pecados que levariam direto para o inferno. Mas a partir de quantos pecados menores uma pessoa ia para o inferno? Como devem ser os castigos? Deve ser muito ruim ficar sofrendo pra sempre. Mas o céu, sei lá, tudo perfeito. Pensou que talvez ficasse enjoada do céu. E não conseguia imaginar como seria o purgatório, mas falam pouco dele, ele nunca apareceu na televisão, só falam de céu e inferno.
Ela não entendia nada. Mas quando olhava pra estrada, percebia que adorava a vida e todas as suas alegrias, dores, emoções, enfim. Contemplava as pessoas, queria descobrir as coisas do mundo, mas tudo isso ela só sentia, não entendia nada. Amava a estrada e o vento.
sexta-feira, março 17, 2006
Poetar com Leminski
Estava um dia desses precisando do aconchego de um poeminha. Grande poeta pra me emocionar e ser um pouco mais, Paulo Leminski.
Objeto
Do meu mais desesperado desejo
Não seja aquilo
Por quem ardo e não vejo
Seja a estrela que me beija
Oriente que me reja
Azul amor beleza
Faça qualquer coisa
Mas pelo amor de deus
Ou de nós dois
Seja.
*
Minha amiga
Indecisa
Lida com coisas
Semifusas
Quando confusas
Mesmo as exatas
Medusas
Se transmudam
Em musas
*
Entre a dívida externa
E a dúvida interna
Meu coração
Comercial
Alterna
*
Não possa tanta distância
Deixar entre nós
Este sol
Que se põe
Entre uma onda
E outra onda
No oceano dos lençóis
*
O novo
Não me choca mais
Nada de novo
Sob o sol
*
Minhas sete quedas
Minha primeira queda
Não abriu o pára-quedas
Daí passei feito uma pedra
Pra minha segunda queda
Da segunda à terceira queda
Foi um pulo que é um seda
Nisso uma quinta queda
Pega a quarta e arremeda
Na sexta continuei caindo
Agora com licença
Mais um abismo vem vindo
*
Aqui
Nesta pedra
Alguém sentou
Olhando o mar
O mar não parou
Pra ser olhado
Foi mar
Pra tudo quanto é lado
*
Dois loucos no bairro
Um passa os dias
Chutando postes para ver se acendem
O outro as noites
Apagando palavras
Contra um papel em branco
Todo bairro tem um louco
Que o bairro trata bem
Só falta mais um pouco
Pra eu ser tratado também
*
Dia
Dai-me
A sabedoria de Caetano
Nunca ler jornais
A loucura de Glauber
Tem sempre uma cabeça cortada a mais
A fúria de décio
Nunca fazer versinhos normais
*
Apagar-me
Diluir-me
Desmanchar-me
Até que depois
De mim
De nós
De tudo
Não reste mais
Que o charme
*
Coração
PRA CIMA
Escrito embaixo
FRÁGIL
*
A noite
Me pinga uma estrela no olho
E passa
*
Em la lucha de classes
Todas las armas son buenas
Piedras
Noches
Poemas
*
Não discuto
com o destino
o que pintar
eu assino
*
acordei bemol
tudo estava sustenido
sol fazia
só não fazia sentido
*
você me amava
disse a margarida
a margarida
é doce
amarga a vida
*
pra quê cara feia?
Na vida
Ninguém paga meia
*
O amor, esse sufoco
Agora a pouco era muito,
Agora, apenas um sopro
Ah, troço de louco
Corações trocando rosas,
E socos
*
Podem ficar com a realidade
Esse baixo astral
Em que tudo entra pelo cano
Eu quero viver de verdade
Eu fico com o cinema americano
*
Eu ontem tive a impressão
Que deus queria falar comigo
Não lhe dei ouvidos
Quem sou eu para falar com deuses?
Ele que cuide dos seus assuntos
Eu cuido dos meus
*
Incenso fosse música
Isso de querer
Ser exatamente aquilo
Que a gente é
Ainda vai
Nos levar além
*
Enfim,
Nu,
Como vim
*
Viu-me
E passou
Como um filme
*
Temporal
Fazia tempo
Que eu não me sentia
Tão sentimental
*
Você está tão longe
Que às vezes penso
Que nem existo
Nem fale de amor
Que amor é isto
*
Saber é pouco
Como é que a água do mar
Entra dentro do coco?
*
Vazio agudo
Ando meio
Cheio de tudo
*
Amor é um elo
Entre o azul
E o amarelo
*
Esta vida é uma viagem
Pena eu estar
Só de passagem
*
A noite- enorme
Tudo dorme
Menos teu nome
*
terça-feira, março 14, 2006
Respirar sutilmente
Sempre achei sedutor o ato de fumar. O ar altivo, as baforadas, o olhar flutuando no horizonte. Volúpia.
Lembro-me ainda de Laurinha, a romântica gordinha de Carrosel, dizendo que achava sexy os homens que fumam. Estranho, não, uma menina de uns nove anos dizendo isso na Tv. Quando era criança, eu usava um palito de pirulito para simular um cigarro. E inventava baforadas com gosto na frente do espelho.
O cigarro é muito sedutor, não só porque dá um ar de beleza ao ato de tragá-lo, como alivia a ansiedade, o grande mal de que todos queremos nos livrar, seja lendo, ouvindo música, seja passando horas na internet. E assim os fumantes transpiram com ânsia um pouco de calma. De quê adianta?
Será que eles encontram algum sossego naquela fumaça? Pois o que vejo nos cafés é o desassossego de cigarros deixados na metade em cima do cinzeiro porque a ânsia quer o próximo cigarro. E de cigarro em cigarro nunca se chega à paz.
Fumar? Evito. Às vezes incomodo estranhos quando estou embriagada pedindo “um cigarrinho, por favor”, mas nem ao menos sei usar o isqueiro.Tenho uma vontade de ser que não se saciaria em duas carteiras por dia.
Mário Quintana até dizia, “fumar é respirar sutilmente”. Aparentemente sim, posso dizer até que é uma forma elegante de respirar. Pena que fatal. E os cinzeiros cheios das cinzas da angústia fazem a calma?
segunda-feira, março 13, 2006
Amar!
Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: aqui... além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente...
Amar! Amar! E não amar ninguém!
Recordar? Esquecer? Indiferente!...
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!
Há uma primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!
E se um dia hei-de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder... pra me encontrar...
Florbela Espanca
domingo, março 12, 2006
O belo amor
Sempre busquei o amor
nos pequenos gestos
A alquimia do outro
palavras, movimentos
Agora eu só encontro o amor nos versos
o amor virou pura poesia
e se perdeu na rima
não tem toque nem querer
Meu amor tem o sentimento do mundo
Desconhece a adoração de um
Aprecia as canções, as poesias de amor
como quem reza
mas não acredita em Deus.
sábado, março 11, 2006
A minha casa
sexta-feira, março 10, 2006
quinta-feira, março 09, 2006
Cortinas vermelhas
O sorriso esvoaçante, cabelos, vestido ao vento. Meus pais são tão lindos! Eles se amam tanto, sabe. Acredita que até hoje meu pai sente ciúme da minha mãe, e ela às vezes pergunta se ele o ama? Depois de tantos anos...
Ainda me lembro daquela noite. Viemos de mãos dadas rezando no carro, e ele correndo o carro, porque era tanto ódio que o carro precisava voar. Ela chorava com a boca, com as rugas, menos com os olhos. Não quero que eles se assustem, não, não, nada de choro.
Logo ao descer do carro, minha mãe recebe um tapa bem de junto do portão verde. Seus cabelos brancos esconderam a vergonha. Ela nunca pintou os cabelos, ele não queria que ela parecesse mais jovem. Os cacos de vidro misturados com whisky e a porta do banheiro quebrada. De nada adiantou se esconder no banheiro.
Ah, eles são lindos. É tão romântico. Minha irmã e seus dentes e bochechas sorridentes. Não acredito que ela está dizendo isso para essas pessoas. Não é, Aline? Sim, sim, respondo.
Minha irmã, a mulher forte, joga baldes de água no meu pai. Seu alcoólatra. E provocava com o cigarro no canto da boca aos 13 anos. Você não fuma? Então posso fumar também. Meu pai é todo beijos e lágrimas de junto da cama, envolto pelo cortinado e pela luz lânguida do quarto.
Ela diz que quer tomar banho de chuva, porque ama a chuva, a natureza, e gira no meio do mundo. Seus gestos são expansivos, sua voz quer falar para o público.
A chuva cai para ela como no cinema.
terça-feira, março 07, 2006
O Filho de Deus
Toc, toc, toc. Hoje é noite de natal. Passou uma estrela cadente. Eu sou o menino Jesus, filho de José com a virgem Maria, concebido pelo Espírito Santo. Eu voltei. Jesus está morto, menino, morreu numa cruz. Deus não está morto, senhora, eu prometi que ia voltar, aqui estou. Tenho fome e sede, a senhora vai negar pão e água ao Filho de Deus? Pare de me fazer rir, menino, você está delirando. Eu me lembro de você, vive pedindo na porta da igreja, pois andou vendo missas demais. Vá pra casa, vá. Boa noite. A porta.
O reino de Deus não é desta terra. Pai, perdoai-os, pois não sabem o que fazem. O Filho de Deus não nasce em berço de ouro. Eu que estou sempre com as mãos estendidas para receber as moedinhas na porta da igreja sou o Filho de Deus.
Você não é filho de José, Jesus. Ela botou gaia no seu pai com o seu tio Horácio. Todo mundo sabe, até o trouxa do seu pai. Nesse dia eu rumei uma pedra na cabeça de Vinícius. Foi pra abrir mesmo a testa do desgraçado que manchou o nome da minha santa mãe. Olho por olho, dente por dente.
De manhã cedo, quando com a fome do outro dia, tenho vontade de fazer os pães multiplicar. Ainda não é chegada hora. E às vezes sinto que estou caminhando sobre as águas do mar, mas ainda não é chegada a hora.
Qual o meu calvário e meu Judas? Pai faça-se a sua vontade. Um dia acharão as minhas vestes no túmulo, e eu haverei ressuscitado. Então separarei o joio do trigo, e finalmente sentarei à direita do Pai no reino dos céus.
O reino de Deus não é desta terra. Pai, perdoai-os, pois não sabem o que fazem. O Filho de Deus não nasce em berço de ouro. Eu que estou sempre com as mãos estendidas para receber as moedinhas na porta da igreja sou o Filho de Deus.
Você não é filho de José, Jesus. Ela botou gaia no seu pai com o seu tio Horácio. Todo mundo sabe, até o trouxa do seu pai. Nesse dia eu rumei uma pedra na cabeça de Vinícius. Foi pra abrir mesmo a testa do desgraçado que manchou o nome da minha santa mãe. Olho por olho, dente por dente.
De manhã cedo, quando com a fome do outro dia, tenho vontade de fazer os pães multiplicar. Ainda não é chegada hora. E às vezes sinto que estou caminhando sobre as águas do mar, mas ainda não é chegada a hora.
Qual o meu calvário e meu Judas? Pai faça-se a sua vontade. Um dia acharão as minhas vestes no túmulo, e eu haverei ressuscitado. Então separarei o joio do trigo, e finalmente sentarei à direita do Pai no reino dos céus.
segunda-feira, março 06, 2006
Os bichinhos
Seguro Bruninha com medo de ela quebrar. As mãos pequeninas, essa criatura não é uma miniatura minha, mas tem um modo de ser tão seu abandonada aos meus braços e boiando os olhos nos brinquedos do berço. Ela com a boca no meu peito se alimentando de mim, ela que surgiu dentro de mim e veio a mundo atravessando o meu corpo, para encontrar o mundo e chorar de espanto, enfim nos meus braços se acalmar.
Bruninha pega toda a luz da lâmpada da sala com os olhos. Nada entende do que vê. Lâmpada, luz, o que será para ela? Algo que não se encontra numa linguagem. Quem sou eu com meu peito que ela suga com tanta vontade. Ma-mãe, ma-mãe, eu digo acariciando nariz com nariz. Bruninha responde quando a deixo em outros braços e seus olhinhos pedem para ela voltar aos meus.
Fita os desenhos coloridos do lençol e os captura com a mãozinha. Ela acredita que aqueles desenhos têm vida? Não, nada de lençóis brancos. Deixe-me colocar esse lençol cheio de bichinhos.
Eu vi meu reflexo no seu olhar, mas seu olhar não se encontra no meu. Ele se perde ao infinito e se torna um brilho singelo.
Uma música para Bruninha ouvir. Eu que guardo as palavras e as levo para tantas coisas que vivi. Bruninha ouve a música, ela sente a cadência do mundo para dar um sorriso bobo. Bobo como meu olhar diante dela, sem entender o que se faz da luz da lâmpada.
domingo, março 05, 2006
Ser desejo
Gosto de sentir o sabor da carne.
Sal, salgada,
o toque que cristaliza as sensações no arrepio da pele em pêlos elétricos.
Lamber a sua carne
e comer os seus gestos puros e vastos
para não ser mais do que estar no seu corpo e acender a vontade.
Quero, quero muito mais do que tudo ou nada
e saber das ilusões guardadas nos seus sonhos sonhados no olhar flutuando em mim agora.
Quero, quero sempre mais um pedaço de mim contido no seu corpo e nos seus olhos para chegar ao meu fim.
Que não tem fim.
Sal, salgada,
o toque que cristaliza as sensações no arrepio da pele em pêlos elétricos.
Lamber a sua carne
e comer os seus gestos puros e vastos
para não ser mais do que estar no seu corpo e acender a vontade.
Quero, quero muito mais do que tudo ou nada
e saber das ilusões guardadas nos seus sonhos sonhados no olhar flutuando em mim agora.
Quero, quero sempre mais um pedaço de mim contido no seu corpo e nos seus olhos para chegar ao meu fim.
Que não tem fim.
quarta-feira, março 01, 2006
Nada como começar o dia ouvindo Beatles
“Good day sunshine
Good day sunshine
Good day sunshine
I need to laugh, and when the sun is out
I've got something I can laugh about…”
“Life is very short and there’s no time for fussing and fighting my friend…”
“Love, love, love
Love, love, love
Love, love, love
There's nothing you can do that can't be done
Nothing you can sing that can't be sung
Nothing you can say but you can learn how the play the game
It's easy
There's nothing you can make that can't me made
No on you can save that can't be saved
Nothing you can do but you can learn how to be you in time
It's easy
All you need is love
All you need is love
All you need is love, love
Love is all you need…”
Apenas tomar o sorvete
Eu preciso arrumar um jeito de sentir as coisas pelo que elas são
e largar essa lente gigante em algum lugar.
Porque com a minha tristeza eu tenho que afundar,
e com a minha alegria ser mais do que posso?
Eu preciso saber viver, deixar levar.
Entender que o tédio quando bem vivido
É melhor do que sempre voar e ser anjo caído
Ver que nas coisas simples eu posso realizada estar.
O mundo inteiro está repleto de fealdade e beleza,
talvez eu deva ignorar.
Não para ficar contida em mim mesma,
porque aí vou me perder na tristeza de ser só eu e nada mais.
Hoje estava olhando a moça tomando o sorvete.
Imagine que delícia aquele macio nevando na língua o gosto.
E havia tantas pessoas na sorveteria, tantas pessoas tomando aquele sorvete delicioso. Naquele momento eu vi beleza no mundo. Mas não era para ser.
Era só para eu ficar tomando meu sorvete.
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