quinta-feira, abril 13, 2006

O desassossego


E assim sou, fútil e sensível, capaz de impulsos violentos e absorventes, maus e bons, nobres e vis, mas nunca de um sentimento que subsista, nunca de uma emoção que continue, e entre para a substância da alma. Tudo em mim é a tendência para seguir outra coisa; uma impaciência da alma consigo mesma, como uma criança inoportuna; um desassossego sempre crescente e sempre igual. Tudo me interessa e nada me prende. Atendo a tudo sonhando sempre; fixo os gestos faciais de com quem falo, recolho as entoações milimétricas dos seus dizeres expressos; mas ao ouvi-lo, não o escuto, estou pensando noutra coisa, e o que menos colhi da conversa foi a noção do que nela se disse, da minha parte ou de com quem eu falei. Assim, muitas vezes repito a alguém o que já lhe repeti, pergunto-lhe de novo aquilo a que já me respondeu; mas posso descrever, em quatro palavras fotográficas, o semblante muscular com que ele disse o que não lembra, ou a inclinação de ouvir com os olhos com que recebeu a narrativa que me não recordava ter-lhe feito. Sou dois, e ambos têm a distância- irmãos siameses que não estão pegados.

Livro do desassossego, Fernando Pessoa

coincidência?

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