sábado, abril 29, 2006


E até quem me vê
lendo jornal na fila do pão
sabe que eu te encontrei...

Rodrigo Amarante

quinta-feira, abril 27, 2006


Longelongelonge...

Let it be, let it be

Sabe, para mim a vida é um punhado de lantejoulas e purpurina que o vento sopra. Daqui a pouco tudo vai ser passado mesmo - deixa o vento soprar, let it be, fique pelo menos com o gostinho de
ter brilhado um pouco.

Caio Fernando Abreu

quarta-feira, abril 26, 2006

Deus e o Diabo na terra do sol


Os grandes teóricos sociais, Marx, Weber, e Durkhéim, acreditavam na morte da religião com o desenvolvimento da modernidade. Segundo Durkhéim, havia algo de eterno na religião, ela seria um símbolo de preservação da unidade coletiva, mas isso poderia ser conseguido através de ideais políticos. Em plena alta modernidade, podemos perceber que a religião está ainda muito presente na vida das pessoas. E alguns dos acontecimentos mais drásticos da modernidade tardia têm relação intrínseca com a religião.

O iluminismo e a racionalidade burguesa edificada junto com o nascimento do capitalismo, numa negação ao mundo teocêntrico do medievo feudal, provavelmente provocaram as especulações sobre o fim da religião. Entretanto, vemos um homem que, semelhante àqueles da pré-história que cultuavam seus ancestrais, ainda vive encantado pelo sobrenatural.

Homens doam seu corpo ao sacrifício pela sua fé. Lançam-se contra estações de metrô, balneários, aviões, como os que dirimiram o World Trade Center, um dos ícones do capitalismo. É claro que eles não tinham intenções definidamente políticas, antes sonhavam com um suposto céu repleto de virgens, mas a sua fé tem um caráter de contestação por explorados. Eles, que vivem no mundo árido, de mulheres escondidas em burcas, e fome e desespero por toda a parte, querem destruir o Grande Satã.

Segundo Nietzche, a religião exalta o derramamento de sangue. Festas são feitas para imolar animais, cristãos têm nas suas casas o Cristo crucificado pendurado na parede. Deus pediu a Abraão que levasse seu filho Isaac para ser morto em sacrifício. Depois disse que Isaac não seria morto, tudo havia sido feito para testar a fé de Abraão.

A jihad precisaria do sangue de todos os infiéis, e quem não está a serviço do deus, está a serviço do mal. Esses guerreiros entendem o mundo pelo viés da religião, e vêem quem os explora como entidades terrenas malignas com áureas sobrenaturais. O ópio do povo é usado como arma de revolução, porque só do lado dos deuses seria possível destronar outros deuses, os dominadores.

A luta de classes motora da história é representada através dos ataques terroristas ao mundo ocidental. A religião, o ópio que acalmava os explorados, que os fazia crer num mundo póstumo de felicidade onde seria mais fácil um camelo passar por uma agulha do que um rico entrar no paraíso, agora é usada para espalhar o terror em impérios e cria diversas especulações sobre o futuro da humanidade. Qual será?

terça-feira, abril 25, 2006

A vida é feita de músicas


Consegui meu equilíbrio cortejando a insanidade
Tudo está perdido mas existem possibilidades

Tenho um sorriso bobo
Parecido com soluço
Enquanto o caos segue em frente
Com toda calma do mundo

Sou fera, sou bicho, sou anjo e sou mulher
Sou minha mãe e minha filha,
Minha irmã, minha menina
Mas sou minha, só minha e não de quem quiser

Sou meu próprio líder: ando em círculos
Me equilibro entre dias e noites
Minha vida toda espera algo de mim
Meio-sorriso, meia-lua, toda tarde

Vamos deixar as janelas abertas
E deixar o equilíbrio ir embora

Quero me encontrar, mas não sei onde estou
Vem comigo procurar algum lugar mais calmo
Longe dessa confusão e dessa gente que não se respeita
Tenho quase certeza que eu não sou daqui

Os sonhos vêm e os sonhos vão
O resto é imperfeito

É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã
Porque se você parar pra pensar
Na verdade não há

E o carinha do rádio não quer calar a boca
E quer o meu dinheiro e as minhas opiniões
Ora, se você quiser se divertir
Invente suas próprias canções

Quem me dera, ao menos uma vez,
Que o mais simples fosse visto como o mais importante
Mas nos deram espelhos
E vimos um mundo doente.

Quem me dera ao menos uma vez
Entender como um só Deus ao mesmo tempo é três
E esse mesmo Deus foi morto por vocês
E só maldade então, deixar um Deus tão triste

Ainda que eu falasse a língua dos homens.
E falasse a língua do anjos, sem amor eu nada seria.

Todos os dias quando acordo
Não tenho mais o tempo que passou
Mas tenho muito tempo
Temos todo o tempo do mundo!


Tudo passa, tudo passará...

domingo, abril 23, 2006

Casa no campo


Eu quero uma casa no campo
Onde eu possa compor muitos rocks rurais
E tenha somente a certeza
Dos amigos do peito e nada mais
Eu quero uma casa no campo
Onde eu possa ficar no tamanho da paz
E tenha somente a certeza
Dos limites do corpo e nada mais
Eu quero carneiros e cabras pastando solenes
No meu jardim
Eu quero o silêncio das línguas cansadas
Eu quero a esperança de óculos
E um filho de cuca legal
Eu quero plantar e colher com a mão
A pimenta e o sal
Eu quero uma casa no campo
Do tamanho ideal, pau-a-pique e sapé
Onde eu possa plantar meus amigos
Meus discos e livros
e nada mais


Composição: Zé Rodrix e Tavito
Cantada por Elis Regina, a cantora mais emocionada.

sábado, abril 22, 2006

O infinito

Deixe eu te abraçar pra ter certeza de que você existe.
De olhos fechados
Pra não saber que eu existo
Pra esquecer de mim
E você se esquecer de você

E a gente só ser
Os espaços
Vários espaços
Negros
Vácuos

Ser um pouco mais
Sendo você
Você ser um pouco mais
Sendo eu

E no fim de tudo
A gente vai só ser
Os espaços
Negros
E vácuos

sexta-feira, abril 21, 2006

Pobres poderes

Certa vez estava eu num ônibus de madrugada, e um menino de uns 14 anos entrou pela parte de trás do veículo. O cobrador mandou o rapaz descer, e ele simplesmente se sentou. O motorista parou o veículo sob ordem do cobrador, que se levantou de sua cadeira e foi até o menino gritando você não pagou a passagem, seu vagabundo, filho da puta, e o empurrou escada abaixo.

Eu me assustei com a cena, então olhei para trás e percebi que só havia eu de passageira. Ouvindo a música do silêncio do ônibus se movimentando na madrugada cheia de ventos vazios, comecei a pensar sobre o fato. O que levava um homem que recebe um salário de fome a lutar com unhas e dentes pela empresa para qual trabalha?

Pensei na ausência de consciência de classe. Ele não reconhecia que era explorado pela empresa e não via o menino como integrante de uma mesma classe dominada. Depois refleti melhor. O cobrador não lutava pela empresa, ele fazia um espetáculo para se sentir semelhante aos que o exploram.

Uma das formas que os dominados têm para uma quimérica insurreição é imitar o dominador. Essa é a maneira de eles se sentirem legítimos, e, assim, muitos negros querem ser brancos, muitos pobres se fingem de ricos. Eles não cogitam a possibilidade de lutar contra quem os explora, e a sua falsa sublevação ocorre através da imitação.

O que aquele cobrador queria era a sensação de poder. Naquele momento ele se sentia dono do ônibus, o meio no qual trabalha e não lhe pertence. E aquele era um dos raros momentos em que podia exercer sua autoridade e criar um dominado. Sim, ele poderia fazer uma inversão de papéis à custa de um menino negro e pobre.

É muito comum indivíduos da classe subordinada se travestirem de dominadores. Quando tomados por tal acesso histriônico eles só respeitam quem é da classe dominante, e se dirigem aos pares como subalternos. Assim acontece com alguns atendentes de lojas, por exemplo, que tratam as pessoas de acordo com a quantidade de dinheiro no cartão, mas são eles mesmos pobres.

Lembro-me da vez em que minha mãe levou Nide, uma amiga nossa de Boquim, ao hospital João Alves. A moça do atendimento tratava a todos na fila com imensa soberba, agindo como se fosse alguma autoridade do lugar, e disse para Nide e mamãe voltarem daqui a um mês. Minha mãe perguntou a ela:

-Você olhou a ficha?

-Não.

-Você sabe o que ela tem para mandar ela voltar daqui a um mês?

Os olhos da mulher saltaram ao auscultar a ficha.

-Ela tem câncer- disse mamãe, sancionando o assombro da moça.

É isso o que vejo tantas vezes. Indivíduos sem consciência de classe, e cada um no seu mundo tentando fazer outros de subordinados numa escala interminável. A busca de poder vai além da procura pelo bem comum. Um poder imaginário, sonhado através das miragens sedutoras da publicidade, ao teatro da dominação no dia a dia.

quinta-feira, abril 20, 2006

Malditos filmes edificantes!

Sou uma pessoa brega, sentimental, meu excesso de sensibilidade dá nojo, mas pra tudo tem limite. Eu detesto aqueles malditos filmes edificantes! Tá bem, gostei de alguns há anos atrás, mas hoje em dia eu pelo menos sei a diferença entre filme bom e filme que eu gosto. E quando revi Cidade dos Anjos me perguntei como diabos chorei vendo aquilo. Lamentável.

Enfim, a questão é que esses filmes edificantes são uma das desgraças do cinema. Acredito que os filmes ruins com certificado de ruindade assinado embaixo são mais sinceros do que eles, como Todo Mundo em Pânico (não sei como tanta gente ria na sala, pois eu não achava a menor graça), e Cruzeiro das loucas (vou ter de admitir que dei boas risadas).

As pessoas que assistem a essas películas sabem que estão ali para ver merda. Agora, quanto a filmes edificantes, não, eles se dão o estatuto de arte. Aí todo mundo fica achando que cinema de arte são filmes dramáticos, atores chorando, lições de moral. Mas não é, porra.

A arte não foi feita para ensinar as pessoas a viverem. E aqueles atores que ganham o Oscar, nossa, às vezes parece que o padrão ator de qualidade se refere à maior quantidade de lágrimas vertidas em cena. Ninguém se lembra do quanto é importante um ator fazer o papel de uma pessoa comum, e conseguir elaborar com maestria a singularidade do comum. De um ator não querer aparecer mais que o personagem e ser estrela.

É melhor ator quem chora mais, e são bons filmes os que conseguem arrancar mais lágrimas do espectador, e não os que ousam esteticamente e levam à reflexão. Esse é conceito de cinema de arte que existe na cabeça de muita gente graças aos filmes edificantes e ao Oscar.

segunda-feira, abril 17, 2006

Canção de Alguéns


Eu não sei quem sou
Talvez porque seja alma diferente
A cada vida minha
Toda essa gente
não sabe das fantasias

Eu sou alguéns sem nomes
Túmulos e partos
Saudades, boas vindas
Eu tenho puro tato
O silêncio dessa noite me lembra as rodovias

Não sei para onde vou
Eu vago pelo dia
Eu quero a madrugada
Não durmo por sonhar tanto
Eu quero demais, demais, demais
E ando flutuando

Meu peito vive aberto
Refém do que não quero
E de todos os quereres
Desejo ser a chuva
quando ela cai na terra
E dá de beber aos seres

Eu não sei quem sou
Eu sou a mentira
Todas as miragens
Quase tudo que eu quis
Esses rios no sangue
Que não têm margem
Levam até longe de mim

domingo, abril 16, 2006

Sexo dos Anjos

Um dia desses fiquei surpresa quando uma grande amiga minha me disse: Também, né, você não acredita em Deus! Depois de tantos anos de terços, procissões, missas sem fim, sacramentos, era normal me parecer estranho essa frase. Eu nunca disse que não acreditava em Deus, pelo contrário, entretanto, ninguém acredita na minha fé. E, realmente, ela não existe.

Mas o fato de eu não acreditar em Deus não me dá o título de ateísta. Claro, porque para ser ateísta é preciso ter fé na não existência de Deus. Fé, essa palavra mesmo, porque nem a Igreja nem a Ciência podem provar que Deus não existe.

Está certo, acreditar em Deus dá certa paz, certa segurança ontológica. Já tentei, mas não consigo, não mais. Não obstante, não tenho a fé dos ateus. Eu não acredito em Deus, mas também não acredito que ele não existe.

Eu me sinto indiferente a Deus. Raros são os momentos em que lembro dele, como agora, por exemplo. No mais, eu sou das coisas mundanas. E fico com o Leminski, que disse: Os deuses? Eles que cuidem dos seus assuntos, e eu cuido dos meus.

E quem entende?

Fulana- Eu sou virgem ainda, mas já fiz umas coisinhas aí, tipo sexo oral...

Cicrana- Meu namorado quer que eu faça sexo oral nele, mas não faço de jeito nenhum. Não já basta coisar, não? Já disse, mesmo que eu passasse dez anos com um cara eu não ia chupar a pinta dele.

?

quinta-feira, abril 13, 2006

Teorema


Como pode fazer isso a um homem acostumado à ordem, ao amanhã, e, sobretudo, à posse?

Filme de Pier Paolo Pasolini

O desassossego


E assim sou, fútil e sensível, capaz de impulsos violentos e absorventes, maus e bons, nobres e vis, mas nunca de um sentimento que subsista, nunca de uma emoção que continue, e entre para a substância da alma. Tudo em mim é a tendência para seguir outra coisa; uma impaciência da alma consigo mesma, como uma criança inoportuna; um desassossego sempre crescente e sempre igual. Tudo me interessa e nada me prende. Atendo a tudo sonhando sempre; fixo os gestos faciais de com quem falo, recolho as entoações milimétricas dos seus dizeres expressos; mas ao ouvi-lo, não o escuto, estou pensando noutra coisa, e o que menos colhi da conversa foi a noção do que nela se disse, da minha parte ou de com quem eu falei. Assim, muitas vezes repito a alguém o que já lhe repeti, pergunto-lhe de novo aquilo a que já me respondeu; mas posso descrever, em quatro palavras fotográficas, o semblante muscular com que ele disse o que não lembra, ou a inclinação de ouvir com os olhos com que recebeu a narrativa que me não recordava ter-lhe feito. Sou dois, e ambos têm a distância- irmãos siameses que não estão pegados.

Livro do desassossego, Fernando Pessoa

coincidência?

quarta-feira, abril 12, 2006

E agora?

A metamorfose

Quando certa manhã Gregor Samsa despertou, depois de uma noite mal dormida, achou-se em sua cama transformado em monstruoso inseto. Estava deitado sobre a dura carapaça de suas costas, e ao levantar um pouco a cabeça viu a figura convexa de seu ventre escuro, sulcado por pronunciadas ondulações, em cuja proeminência a colcha mal podia agüentar, pois estava visivelmente a ponto de escorregar até o solo. Inúmeras patas, lamentavelmente esquálidas em comparação com a grossura comum de suas pernas, ofereciam aos seus olhos o espetáculo de uma agitação sem consistência.

Franz Kafka

segunda-feira, abril 10, 2006

De alma aberta e o coração cantando


A verdadeira arte de viajar

A gente sempre deve sair à rua como quem foge de casa,
Como se estivessem abertos diante de nós todos os caminhos do mundo.
Não importa que os compromissos, as obrigações, estejam ali...
Chegamos de muito longe, de alma aberta e o coração cantando!


A rua dos cataventos

Da vez primeira em que me assassinaram,
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha.
Depois, a cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha.

Hoje, dos meu cadáveres eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada.
Arde um toco de Vela amarelada,
Como único bem que me ficou.

Vinde! Corvos, chacais, ladrões de estrada!
Pois dessa mão avaramente adunca
Não haverão de arracar a luz sagrada!

Aves da noite! Asas do horror! Voejai!
Que a luz trêmula e triste como um ai,
A luz de um morto não se apaga nunca!

Das utopias

Se as coisas são inatingíveis... ora!
não é motivo para não quere-las...
Que tristes os caminhos, se não fora
a magica presença das estrelas!

Da inquieta esperança

Bem sabes Tu, Senhor, que o bem melhor é aquele
Que não passa, talvez, de um desejo ilusório.
Nunca me dê o Céu... quero é sonhar com ele
Na inquietação feliz do Purgatório.

Trova

Coração que bate-bate...
Antes deixes de bater!
Só num relógio é que as horas
Vão passando sem sofrer.

Canção da garoa

Em cima do telhado
Pirulin lulin lulin,
Um anjo, todo molhado,
Soluça no seu flautim.


O relógio vai bater:
As molas rangem sem fim.
O retrato na parede
Fica olhando para mim.


E chove sem saber porquê
E tudo foi sempre assim!
Parece que vou sofrer:
Pirulin lulin lulin...


Da Felicidade

Quantas vezes a gente, em busca da ventura,
Procede tal e qual o avozinho infeliz:
Em vão, por toda parte, os óculos procura,
Tendo-os bem na ponta do nariz!

Das Idéias

Qualquer idéia que te agrade,
Por isso mesmo... é tua.
O autor nada mais fez que vestir a verdade
Que dentro de ti se achava nua...

Da eterna procura

Só o desejo inquieto, que não passa,
Faz o encanto da coisa desejada...
E terminamos desdenhando a caça
Pela doida aventura da caçada.

Da observação

Não te irrites, por mais que te fizerem...
Estuda, a frio, o coração alheio.
Farás, assim, do mal que eles te querem,
Teu mais amável e sutil recreio...

Da discrição

Não te abras com teu amigo
Que ele outro amigo tem.
E o amigo do teu amigo
Possui amigos também...

Mário Quintana

domingo, abril 09, 2006

Kika

Sempre tive medo de bichos. Quando era criança, sonhei inúmeras vezes com leões, cães me devorando. Ficava assombrada quando via algum cachorro na rua e me recusava a entrar em casas que tinham cachorros. Engraçado porque era um misto de admiração e medo. Ainda lembro da vez em que fiquei encantada pela pantera negra com suas formas se confundindo com as trevas e seus olhos chispando luz.

Tive uma gata, Pandora, mas morria de medo dela e minha mãe achou melhor levá-la embora. A pobre gata era ignorada por todos daqui de casa, e eu me afastava assim que ela se aproximava de mim. Mas vi na Discovery que gatos têm medo de pessoas que os adoram. Eles gostam daqueles que os temem, pois algo no olhar dos que lhe fazem carinhos é semelhante aos sinais de ataque entre os gatos. Descobri porque Pandora estava sempre me rondando.

Então, minha mãe resolveu um dia desses trazer uma cachorrinha. Ela me perguntou primeiro, com medo de que a cachorra também fosse deixada de lado. Kika veio pra nossa casa, e minha mãe a chamou assim após ter visto e adorado um filme homônimo de Almodóvar. Eu chamava-a Mademoiselle Kika, Lady Kika, e fazia mimo naquela bolinha de pêlo. Às vezes saía de casa e sentia saudades dela.

Pouco tempo depois os dentes de Kika começaram a crescer. Ela ficava o tempo todo me mordendo, e eu achava estranho, ah meu Deus, ela vai ficar grande e continuar me mordendo, poxa, cachorros não mordem os donos, mas é porque é filhote, tomara né. Eu me irritava com Kika, e passei um tempo sem lhe fazer carinhos.

Ela pula, rosna, e isso me dava medo antes. Aí percebi o quanto ela é bobona, então fazia cafuné, e fazia carícias na sua barriga, coisa que ela adora demais. E eu tinha tanta raiva quando ela me acordava de manhãzinha cedo com suas lambidas no meu rosto. Depois passei a gostar, porque ela era meu despertador.

Kika morre de medo da rua, e se agarra ao chão com os olhinhos angustiados quando a levo pra passear. Ela é azoada, faz tudo errado, caga no meio do corredor, destrói coisas, tão carente, e dá mordidinhas e arranha quem chega aqui em casa. Eu brinco “cuidado, ela morde... e dói!”. Sempre detestei aqueles benditos que dizem “ah, tenha medo não, ele não morde”, e o bicho pulando em cima de mim. Divirto-me um pouco com a cara de medo das pessoas, é fato.

Fui me acostumando com ela, e até comecei a gostar de suas mordidinhas. Era uma chateação ela me seguindo pra lá e pra cá. Hoje em dia se ela passa muito tempo sem andar logo atrás de mim, eu sinto falta, e grito, Kiiikaaaa, cadê Kika?

sexta-feira, abril 07, 2006

ondas

eu sempre soube que você ia chegar posso ter a certeza de que talvez não seja certeza ou qualquer coisa a se pensar sobre os pássaros mas estava falando sobre você e que sempre soube que você ia chegar porque você estava perdido no mundo ou não eu estava perdida no mundo mas quem não está alguns se acham em qualquer lugar mas não ter lar não é estar perdido é pertencer a qualquer lugar e você pertence a todos os lugares por onde passei e por onde irei passar porque a terra beija seus pés e as nuvens fazem o paraíso na minha vista quando te vejo eu adoro essa sua meia muito bonita mesmo e adoro também esse pequeno sinal que você tem no rosto não sei como será que você foi feito não acredito eu gosto mais dos detalhes entenda de onde você veio mas eu sempre soube que você ia chegar ah mas eu sei também que você vai partir não sei porque tudo é tão efêmero talvez eu só viva mesmo o que há no futuro porque agora meus sentidos estão vacilantes entre o agora como se já lembrasse do agora como se o guardasse como recordação agora o agora e será rememorado com vivência mais plena do que agora quando já o vivo como recordação e mais tarde será tudo mais real porque então não terei medo de perder o agora e ele será muito mais do que uma recordação eu te amo e não devia temer nada não é você me ama também não há porque duvidar se você me olha do mesmo jeito que olha para o mar e minha imagem refletida sob uma estrela nas suas pupilas

quinta-feira, abril 06, 2006

Os sentimentos sinceros

Gosto daqueles que têm os sentimentos sinceros. Que quando estão felizes sentem toda a plenitude da felicidade, e distribuem risos, abraços, e beijos. Que não têm vergonha de parecerem ridículos, e viram crianças às vezes. Que quando estão tristes estão tristes e pronto. Nada de fingir uma alegria daquelas de sorrisos forçados e gestos artificiais, ou de ficarem indiferentes à dor que corrói por dentro. Então choram, e reconhecem a perda, mas são lágrimas justas, que logo depois são enxugadas porque eles são fortes e gostam de viver. Caem da bicicleta, passam metiolate, e tentam de novo até aprender. Têm seus sentimentos tratados com desdém, mas nem por isso se tornam amargos. Não aprendem a desconfiar. Aprendem a acreditar nas pessoas certas.

E quem vive a vida como se tivesse o tempo inteiro seguindo um livro de auto-ajuda? Parecem querer a todo custo serem perfeitos porque são obcecados por agradar a todo mundo. Para tudo é “ah, como é lindo o pôr do sol”, “ah, estava hoje regando as minhas plantinhas”. Gosto de quem rega as plantinhas, acha bonito o pôr do sol, e fica em paz.

Gosto de quem expressa as emoções, que não tem um pingo de vergonha de dizer “eu te amo”. Mas não aqueles “eu te amo” banais, ditos ao vento para parecer uma pessoa adorável e carinhosa. Sabe aqueles “eu te amo” ditos quando você olha pra o outro e vê o quanto ele é especial por tantas coisas simples e bobas? Sim, é desse “eu te amo” que eu gosto.

Temo aqueles que sem conhecer já são todo amores. Gosto de quem chega devagarzinho, pergunta meu nome, fala de qualquer bobagem, e aos poucos vai me conquistando e sendo conquistado.

Gosto de quem ri só quando acha engraçado, quem fala quando quer falar, e quando quer ficar no canto se deleita no gozo de si mesmo, e não tem a necessidade de estar sempre rodeado de gente.

Gosto das pessoas simples. E gosto de quem sente tudo o que é merecido sentir.

terça-feira, abril 04, 2006

Lirismos nos dias

Penso sobre a poesia do mundo. Sabe, às vezes a rotina cartesiana despoetiza a vida. Mas a existência não foi feita para ser poetizada. Não há lirismo nos escritórios, nos semáforos. Minto. Há lirismo em todas as partes, mas saltando no ar ignorado pelas nossas almas inertes e quadradas. Vivemos o tempo dos relógios, e toda a nossa vida é regida pelos ponteiros das obrigações. Às vezes fico assim, sem poesia dentro de mim, e dá um vazio. Quando era criança, eu me perguntava. Ué, mas por que será que os adultos não ouvem música nem se beijam? E concluía: tomara que eu escute música e beije pra sempre.