terça-feira, fevereiro 28, 2006
Sexo
Corpos flutuantes num encontro perfeito exalando romantismo por todos os poros
É tudo bicho copulando num ataque epiléptico.
Chico tem amor pra todos os momentos
Qualquer canção de amor é uma canção de amor. Não faz brotar amor e amantes, porém se esta canção nos toca o coração, o amor nasce melhor e antes.
Quero ficar no teu corpo feito tatuagem
Eu sou sua menina, viu? Ele é o meu rapaz. Meu corpo é testemunha do bem que ele me faz.
Quando olhaste bem nos olhos meus e o teu olhar era de adeus... juro que não acreditei. Eu te estranhei... me debrucei sobre teu corpo e duvidei.
Devolva o Neruda que você me tomou, e nunca leu. Eu bato o portão sem fazer alarde. Eu levo a carteira de identidade, na saideira muita saudade, e a leve impressão de que já vou tarde.
Que a saudade é o revés de um parto. A saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu.
Olhos nos olhos, quero ver o que você faz ao sentir que sem você eu passo bem demais.
segunda-feira, fevereiro 27, 2006
Quando chorar
Há um tipo de choro bom e outro ruim. O ruim é aquele em que as lágrimas correm sem parar e, no entanto, não dão alívio. Só esgotam e exaurem. Uma amiga perguntou-me, então, se não seria esse choro como o de uma criança com a angústia da fome. Era. Quando se está perto desse tipo de choro, é melhor procurar conter-se: não vai adiantar. É melhor tentar fazer-se forte, e enfrentar. É difícil, mas ainda menos do que ir-se tornando exangue a ponto de empalidecer.
Mas nem sempre é necessário tornar-se forte. Temos que respeitar a nossa fraqueza. Então, são lágrimas suaves, de uma tristeza legítima à qual temos direito. Elas correm devagar e quando passam pelos lábios sente-se aquele gosto salgado, límpido, produto de nossa dor mais profunda.
Homem chorar comove. Ele, o lutador, reconhecer sua luta às vezes inútil. Respeito muito o homem que chora. Eu já vi homem chorar.
Clarice Lispector
Foto: Ana Karina em Viver a vida, do Godard.
sábado, fevereiro 25, 2006
Fausto e a felicidade
Doutor Fausto é um homem que depois de adquirir um vasto conhecimento entrega-se aos prazeres e à irracionalidade. Ele fica tão atormentado ao ponto de quase se envenenar. Deus permite a Mefistófeles tentar Fausto, contanto que não leve a sua alma. Fausto promete entregar sua alma a Mefistófeles caso ele lhe proporcione a felicidade. O que nunca acontece.
A felicidade não existe. É um mito. O que existe são variações de bons e maus momentos, nada mais. A euforia plena nunca é alcançada, e há um limite indeterminado de satisfação. Mas por que o homem nunca é feliz?
Schopenhauer falava que os animais irracionais são movidos unicamente por instintos, e sua memória é instantânea. As necessidades dos animais irracionais se restringem à sobrevivência. Um cão quer comida, ele tem comida, pronto, está satisfeito.
Já os homens são impelidos por desejos, e têm noção de passado, presente e futuro, assim como conhecem a morte. Isso os faz ter medo do futuro, saudade do passado, e se angustiar com o presente. Devido a tanta aflição, suas alegrias são efêmeras. Após a conquista, o tédio e o medo da perda. E o temor da morte é não querer vir a não-ser. Assim fantasiam com um tempo póstumo onde se terá tudo o que não se tem agora, como o descanso eterno depois do mundo do trabalho.
Mefistófeles é a própria serpente. Adão e Eva se encontravam no paraíso, e quando seduzidos pela serpente, acabam provando da Árvore do Conhecimento que os tira para sempre do Paraíso. Lá não havia felicidade, havia paz. Adão e Eva não sabiam, eles só viviam como animais irracionais.
A dialética entre razão e irracionalidade se forma. À medida que o homem conhece, assim como Doutor Fausto, ele tem necessidade de “um algo mais”. Ele inventa e se perde nos vícios, na irracionalidade. Veja as sociedades modernas, tão desenvolvidas cientificamente. A razão e o cientificismo sustentam essas sociedades, mas olhe para os produtos de consumo e observe as pessoas procurando saciar a ansiedade em vestidos, carros, álcool... A felicidade que Fausto nunca alcançou.
sexta-feira, fevereiro 24, 2006
Hoje eu queria ser invisível
Eu não sei, eu não sei. Você já teve algum dia em que quis ser invisível? Hoje é um desses pra mim. Não compreendo ao certo essa minha vontade de ser invisível. Talvez seja vergonha, alguma espécie de vazio, quem sabe. Há dias em que quero estar só comigo, não trancada no meu quarto, mas flutuando pelo mundo no ar quente da tarde seca e pesada entre rostos confusos. Sem ninguém me ver, e sem eu me notar também, estar assim abandonada. Queria passar pelo mundo, mas sem deixá-lo me ver, porque alguma coisa em mim quer se esconder; algo que não se acha em palavras e foge dos olhares procurando uma casa.
quinta-feira, fevereiro 23, 2006
quarta-feira, fevereiro 22, 2006
Lula cola
A visibilidade nos meios de comunicação de massa é fundamental para a comunicação política, sendo assim, os líderes focam os mídias como a principal forma de conquistar eleitores. Os meios de comunicação de massa são essenciais para a formação da esfera pública nas sociedades modernas. Um equívoco da comunicação política é a espetacularização com o empobrecimento do debate em nome do marketing político.
Diante da propaganda eleitoral não há cidadãos, há eleitores. A política veste a roupagem de um produto qualquer, e a batalha pela conquista de votos é regida pela publicidade. Ganha quem é mais carismático, com as palavras mais sedutoras, a roupa mais fina. A apresentação de propostas para enriquecer a escolha dos cidadãos torna-se irrelevante.
Os programas eleitorais não informam o espectador. Eles às vezes podem se tornar verdadeiros circos, com batalhas entre os candidatos que costumam partir para a ofensa pessoal. Até os debates são permeados por acusações e injúrias as mais infundadas. É o vale tudo na busca do poder.
A grande maioria da população fica refém dos circos armados pelo horário eleitoral. Os eleitores brasileiros geralmente se guiam pelo programa eleitoral e pelos telejornais. Os jornais impressos, se comparados à televisão, ficam entregues às traças. Poucos são os meios que o eleitor brasileiro tem para se informar sobre a política, vasto é o poder da publicidade diante de “consumidores” tão ingênuos.
A emoção e o humor são os maiores apelos. O Lula sindicalista, barbado, de repente surge elegante com a barba feita entre mulheres grávidas. Tudo isso para conquistar o eleitorado feminino. São tantos os candidatos que reconhecem o espetáculo da política, e fazem dele a sua piada para angariar votos: “Rola”, “Xana”. E eles ganham muitos votos de eleitores descrentes que também acham eleição uma grande palhaçada.
A comunicação política se converge com o próprio marketing político. O candidato é um produto qualquer do modo de produção capitalista, reificado, fetichizado, e estandardizado. Reificado enquanto o valor do político é dado pela imagem vendável. Fetichizado quando as discussões não valorizam a cidadania, mas a sedução de eleitores. E a estandardização a gente vê caminhando pelas ruas repletas de panfletos, outdoors, com a sutil onipresença de certos candidatos.
Os líderes estão à venda. O voto é o preço. Um preço muito caro, que os cidadãos pagam durante anos e anos.
terça-feira, fevereiro 21, 2006
Blusa bonita de rosas e seda
Eu adoro chão de tacos, eles têm um brilho bonito demais, dá pra ver um pouco da cara da gente, e o cheiro de cera? Gosto. Mamãe inventou de tirar os tacos pra colocar lajotas brancas, disse que dava menos trabalho.
Carolina? Oi tia. Venha. Minha tia sempre teve esse rosto assim cheio de dureza. È daquelas amarguras que não são sofridas. São agressivas.
Essa blusa vai ficar curta, não é não? Não, tia, que é isso. As partituras de Raul Seixas, engraçado ela gostar tanto de Raul, o violão, faz quanto tempo que ela não toca? Eu já disse que não vou à missa mais, por que insiste em perguntar, as intrigas de sempre.
- Oi Carolina.
Eu não gosto do meu tio, sabe. Ele sempre me toca demais, odeio pessoas que ficam bulindo no meu corpo pra falar. Presto muita atenção nos caminhos das mãos, eu desconfio dele, ele tem um tato lascivo. Tudo na brincadeira, parece meu tio ingênuo e eu a menininha, mas ele é homem sem vergonha, e eu mulher com curvas. Eu não tenho culpa de ter seios, não mereço o olhar severo da tia. Ela se embrutece, mas finge que não vê, talvez ela nem saiba do ódio que sua pupilas chispam.
Tia Eduarda saiu pra fechar as janelas e a porta. Experimente, Carolina. Eu assim de peitos, ela ficava fitando as partituras com pudor. As rosas vermelhas, adoro, que blusa bonita de seda e rosas.
- Opa.
Não me caibo em vergonha, nem na blusa, fecha a blusa, fecha a janela.
- Eu não avisei a você que ela ia trocar de roupa?
Carolina? Oi tia. Venha. Minha tia sempre teve esse rosto assim cheio de dureza. È daquelas amarguras que não são sofridas. São agressivas.
Essa blusa vai ficar curta, não é não? Não, tia, que é isso. As partituras de Raul Seixas, engraçado ela gostar tanto de Raul, o violão, faz quanto tempo que ela não toca? Eu já disse que não vou à missa mais, por que insiste em perguntar, as intrigas de sempre.
- Oi Carolina.
Eu não gosto do meu tio, sabe. Ele sempre me toca demais, odeio pessoas que ficam bulindo no meu corpo pra falar. Presto muita atenção nos caminhos das mãos, eu desconfio dele, ele tem um tato lascivo. Tudo na brincadeira, parece meu tio ingênuo e eu a menininha, mas ele é homem sem vergonha, e eu mulher com curvas. Eu não tenho culpa de ter seios, não mereço o olhar severo da tia. Ela se embrutece, mas finge que não vê, talvez ela nem saiba do ódio que sua pupilas chispam.
Tia Eduarda saiu pra fechar as janelas e a porta. Experimente, Carolina. Eu assim de peitos, ela ficava fitando as partituras com pudor. As rosas vermelhas, adoro, que blusa bonita de seda e rosas.
- Opa.
Não me caibo em vergonha, nem na blusa, fecha a blusa, fecha a janela.
- Eu não avisei a você que ela ia trocar de roupa?
segunda-feira, fevereiro 20, 2006
Essa paixão eu fiz com palavras
Toda essa vontade imensa de palavrear
Ah que eu preciso versar minha paixão todos os dias
E as palavras escritas são mais apaixonadas
Eu fico todo instante a me apaixonar
Pela canção, pelo olhar
Pelo brilhante do negro café que tomo toda manhãzinha
Ah que eu preciso muito poetar
Eu sou amante dessa vida
Ah que eu preciso versar minha paixão todos os dias
E as palavras escritas são mais apaixonadas
Eu fico todo instante a me apaixonar
Pela canção, pelo olhar
Pelo brilhante do negro café que tomo toda manhãzinha
Ah que eu preciso muito poetar
Eu sou amante dessa vida
domingo, fevereiro 19, 2006
A torre
Veja só as estrelas. Vamos construir uma torre, meu amor, pra gente chegar até o céu? De lá vai dar pra ver o mundo, e a gente vai poder ficar olhando o mundo que nem Deus. Mas eu não quero ser Deus. E de que adianta só contemplar as coisas, quero sentir tudo, e os deuses não sentem, só julgam.
Vamos construir uma torre pra chegar ao céu. Lá seremos grandes, e saberemos de tudo. Eu não quero saber, às vezes eu queria ser um cachorro, sabia? Deixe-me lamber o seu pé. O seu pé é tão bonito, ele é tão bonito porque faz parte de você, porque senão seria comum, mas esse pé, esse pé eu reconheceria mesmo sem te ver. Eu te amo. Você consegue ver um relógio desenhado nas nuvens?
Não, eu não consigo. Eu te amo. Mas veja, há um relógio desenhado nas nuvens. Não, sabe o que eu vejo? Hum. Uma árvore. Uma árvore? Sim, ah que saudade da infância, quando eu subia na árvore pra voar, e voava, sabia? Não, na verdade é um relógio marcando o tempo da nossa vida, são horas de acordar, de ir pro trabalho.
Quando chegássemos ao céu, seríamos donos dos relógios. O quê? Pois eu quebraria todos os relógios. Então não haveria mais tempo? Não, então haveria o tempo dos sonhos. Não, mas, para haver tempo é preciso haver relógio. Quem disse? O tempo dos sonhos é livre.
Vamos construir a nossa torre? Como você vai mexer nos relógios sem chegar até a torre? Mas você quer ser dono dos relógios, e eu quero quebrá-los. Já te disse que te amo e adoro beijar teus pés? Vamos construir a nossa torre?
Let down
Transport, motorways and tramlines,
starting and then stopping,
taking off and landing,
the emptiest of feelings,
disappointed people, clinging on to bottles,
and when it comes it's so, so, disappointing.
Let down and hanging around,
crushed like a bug in the ground.
Let down and hanging around.
Shell smashed, juices flowing
wings twitch, legs are going,
don't get sentimental, it always ends up drivel.
One day, I'm gonna grow wings,
a chemical reaction,
hysterical and useless
hysterical and
let down and hanging around,
crushed like a bug in the ground.
Let down and hanging around.
Let down,
Let down,
Let down.
You know, you know where you are with,
you know where you are with,
floor collapsing, falling, bouncing back
and one day, I'm gonna grow wings,
a chemical reaction, [You know where you are,]
hysterical and useless [you know where you are,]
hysterical and [you know where you are,]
essa música me emociona tanto! às vezes olho pro mundo e me sinto assim. mas sabe, não escuto essas músicas pra exaltar tristeza, como muitos fazem. escuto pra ficar em paz.
sexta-feira, fevereiro 17, 2006
Solaris
Hoje vi Solaris, de Tarkovsky, pela terceira vez. E essa foi a vez mais bonita. É daqueles filmes que nos surpreendem sempre, porque não se trata de imagens que contam uma narrativa em prosa, mas de uma poesia espectral que figura um pensamento, e com ela criamos, sempre mais e mais.
A estação espacial Solaris foi enviada ao planeta Oceano. E um cientista volta à terra contando sobre coisas impressionantes que viu. Uma neblina cobriu toda a estação, até surgir um jardim, e das nuvens sair um menino.
O mar no inconsciente coletivo está relacionado às profundezas do pensamento. E nessa obra, é na estação Solaris, no planeta Oceano, que os personagens vão mergulhar em si mesmos, trazendo à tona lembranças e fantasias. Eles partem da Terra, o planeta dominado pela civilização, para no Oceano, quando procuravam o progresso da humanidade, descobrirem a si mesmos.
Ao chegar a Solaris, o psicólogo Kris Kelvin encontra dois cientistas transtornados, e um deles já havia cometido suicídio. Sua ex-esposa Hary, que tinha se suicidado por envenenamento, lhe surge na estação. Hary pergunta quem é a mulher do retrato guardado na mala de Kelvin, e ao se contemplar diante do espelho descobre que é ela mesma.
Kelvin percorre os escombros da sua alma, onde havia deixado algo que o padecia tanto, a morte de sua ex-esposa. Hary fala aos integrantes da estação que as visitas que recebiam eram produtos de suas próprias mentes. Mas Hary não aparece só a Kelvin, ela surge aos outros cientistas, palpável, ela não era uma mera alucinação, a dicotomia entre realidade e fantasia é quebrada por Tarkovsky na sua crítica à racionalidade.
Quando Kelvin pisa no planeta Oceano, ele encontra dentro de uma bucólica casa o seu pai. Na última cena do filme, Kelvin o abraça num grande encontro, assim como o de Odisseu e Telêmaco. Kelvin, Telêmaco, havia partido da sua terra natal, e não o Odisseu, o pai de Kelvin. Kelvin por fim volta à sua Ítaca, que em Solaris é distante da terra natal, para reencontrar o pai. E os sonhos.
quinta-feira, fevereiro 16, 2006
A nave fantasma
Como termina um amor?- O quê? Termina? Em suma ninguém-exceto os outros- nunca sabe disso; uma espécie de inocência mascara o fim dessa coisa concebida, afirmada, vivida como se fosse eterna. O que quer que se torne objeto amado, quer ele desapareça ou passe à região da Amizade, de qualquer maneira, eu não o vejo nem mesmo se dissipar: o amor que termina se afasta para um outro mundo como uma nave espacial que deixa de piscar: o ser amado ressoava como um clamor, de repente ei-lo sem brilho (o outro nunca desaparece quando e como se esperava). Esse fenômeno resulta de uma imposição do discurso amoroso: eu mesmo (sujeito enamorado) não posso construir até o fim minha história de amor: sou poeta (o recitante) apenas do começo; o final dessa história, assim como a minha própria morte, pertence aos outros, eles que escrevam o romance, narrativa exterior, mítica.
Fragmentos de um discurso amoroso, Roland Barthes
terça-feira, fevereiro 14, 2006
Queria uma poesia
Estou só e precisando de um poeta
Procuro pedaços da minha alma em alguma poesia, mas não encontro
Queria uma poesia que me dissesse tudo que preciso saber sobre mim agora
Versos que achassem no vão das palavras o sentido de tudo a me invadir
Queria uma poesia agora, uma poesia que falasse de mim...
Dessas que falam das coisas do mundo,
porque eu me entreguei ao mundo e me esqueci.
Procuro pedaços da minha alma em alguma poesia, mas não encontro
Queria uma poesia que me dissesse tudo que preciso saber sobre mim agora
Versos que achassem no vão das palavras o sentido de tudo a me invadir
Queria uma poesia agora, uma poesia que falasse de mim...
Dessas que falam das coisas do mundo,
porque eu me entreguei ao mundo e me esqueci.
segunda-feira, fevereiro 13, 2006
É preciso não esquecer nada
É preciso não esquecer nada:
nem a torneira aberta nem o fogo aceso,
nem o sorriso para os infelizes
nem a oração de cada instante.
É preciso não esquecer de ver a nova borboleta
nem o céu de sempre.
O que é preciso é esquecer o nosso rosto,
o nosso nome, o som da nossa voz, o ritmo do nosso pulso.
O que é preciso esquecer é o dia carregado de atos,
a idéia de recompensa e de glória.
O que é preciso é ser como se já não fôssemos,
vigiados pelos próprios olhos
severos conosco, pois o resto não nos pertence.
Cecília Meireles
nem a torneira aberta nem o fogo aceso,
nem o sorriso para os infelizes
nem a oração de cada instante.
É preciso não esquecer de ver a nova borboleta
nem o céu de sempre.
O que é preciso é esquecer o nosso rosto,
o nosso nome, o som da nossa voz, o ritmo do nosso pulso.
O que é preciso esquecer é o dia carregado de atos,
a idéia de recompensa e de glória.
O que é preciso é ser como se já não fôssemos,
vigiados pelos próprios olhos
severos conosco, pois o resto não nos pertence.
Cecília Meireles
domingo, fevereiro 12, 2006
A bosta que veio do céu. É pau, é pedra, é o fim do caminho.
Nas minhas andanças em Aracaju City...
Gritos ininteligíveis no caos do pensamento. Bosta no chão do ônibus. Fecha, fecha tudo, fechem as janelas, eles podem mandar mais. Impactos de janelas se fechando. Como é que pode uma coisa dessa, ein? Tem que pegar um safado desse, quebrar os dentes, e fazer ele engolir a bosta. É bosta de gente, fede demais. O cara cagou na sacola e jogou pela janela de cima do ônibus.
Um homem esquálido, negro, com a feição extenuada, ergueu os braços se livrando da camisa azul melada de merda. Uma mulher chora depois de se contorcer e ver que suas costas estavam todas sujas de bosta. Olho mais atentamente, e percebo que era uma professora do CCPA, colégio onde estudei na infância. Sua filha estava no colo de uma amiga que estava sentada. Meu Deus, e se tivesse pegado na criança?
Alguns passageiros saltam no próximo ponto. E os que ficam aos poucos vão passando da indignação às pilhérias. Ah, tô na merda mermu! Ai caraio, que fedor, eu não agüento isso não! Todos já estavam rindo daquela insólita situação e achando tudo uma grande piada. Até que um homem tirou a bolsa cheia de merda do ônibus, e o fedor diminuiu, e as risadas diminuíram também.
Estava eu com Wenna e Ícaro esperando o Circular Shopping’s num ponto de ônibus lá no Augusto Franco. Dois homens segurando enormes pedaços de pau, dois homens segurando enormes pedaços de pau, eles correm, dois homens segurando enormes pedaços de pau vindo pra cá, o que eles querem? , pedaços de pau.
- Cadê o viadinho que tava aqui?- um homem negro, a boca cortada escorrendo sangue.
- Eu não vi, não- respondeu Ícaro.
- Não viu o quê, rapaz?
- Foi ele!- disse o homem branco que também segurava um pedaço de pau.
- Foi ele foi? Foi você o viadinho?- ele se aproximou de Ícaro erguendo o pedaço de pau, ele não vai bater em Ícaro, nós não vamos tomar uma surra, será que ele é tão imbecil? Ele está bêbado. Ícaro tá com medo, deu um passo pra trás, subiu na calçada.
- Eu não sei de nada, não, eu tava aqui- ele não consegue arranjar muitas palavras.
Encaro o homem branco que segurava o pedaço de pau. Um olhar que não era nem de ameaça nem de medo. Era uma ira plácida que intimida. Eu estava tranqüila, fria, porque não conseguia assimilar a cena que presenciava. O homem que acusou Ícaro percebeu que Wenna e eu éramos amigas dele, e sim, ele estava com a gente o tempo inteiro.
E se Ícaro estivesse sozinho naquele ponto de ônibus? E se Wenna e eu não estivéssemos lá? O que seria de Ícaro no meio de dois homens bêbados doidos pra bater no primeiro preto que aparecesse na frente? E daí se eles não sabem se é ele mesmo? Tome porrada!
Eles correm até se perderem da nossa vista. Tiros. Uns homens ao longe segurando pedaços de pau. Quem sabe?
-
Gritos ininteligíveis no caos do pensamento. Bosta no chão do ônibus. Fecha, fecha tudo, fechem as janelas, eles podem mandar mais. Impactos de janelas se fechando. Como é que pode uma coisa dessa, ein? Tem que pegar um safado desse, quebrar os dentes, e fazer ele engolir a bosta. É bosta de gente, fede demais. O cara cagou na sacola e jogou pela janela de cima do ônibus.
Um homem esquálido, negro, com a feição extenuada, ergueu os braços se livrando da camisa azul melada de merda. Uma mulher chora depois de se contorcer e ver que suas costas estavam todas sujas de bosta. Olho mais atentamente, e percebo que era uma professora do CCPA, colégio onde estudei na infância. Sua filha estava no colo de uma amiga que estava sentada. Meu Deus, e se tivesse pegado na criança?
Alguns passageiros saltam no próximo ponto. E os que ficam aos poucos vão passando da indignação às pilhérias. Ah, tô na merda mermu! Ai caraio, que fedor, eu não agüento isso não! Todos já estavam rindo daquela insólita situação e achando tudo uma grande piada. Até que um homem tirou a bolsa cheia de merda do ônibus, e o fedor diminuiu, e as risadas diminuíram também.
Estava eu com Wenna e Ícaro esperando o Circular Shopping’s num ponto de ônibus lá no Augusto Franco. Dois homens segurando enormes pedaços de pau, dois homens segurando enormes pedaços de pau, eles correm, dois homens segurando enormes pedaços de pau vindo pra cá, o que eles querem? , pedaços de pau.
- Cadê o viadinho que tava aqui?- um homem negro, a boca cortada escorrendo sangue.
- Eu não vi, não- respondeu Ícaro.
- Não viu o quê, rapaz?
- Foi ele!- disse o homem branco que também segurava um pedaço de pau.
- Foi ele foi? Foi você o viadinho?- ele se aproximou de Ícaro erguendo o pedaço de pau, ele não vai bater em Ícaro, nós não vamos tomar uma surra, será que ele é tão imbecil? Ele está bêbado. Ícaro tá com medo, deu um passo pra trás, subiu na calçada.
- Eu não sei de nada, não, eu tava aqui- ele não consegue arranjar muitas palavras.
Encaro o homem branco que segurava o pedaço de pau. Um olhar que não era nem de ameaça nem de medo. Era uma ira plácida que intimida. Eu estava tranqüila, fria, porque não conseguia assimilar a cena que presenciava. O homem que acusou Ícaro percebeu que Wenna e eu éramos amigas dele, e sim, ele estava com a gente o tempo inteiro.
E se Ícaro estivesse sozinho naquele ponto de ônibus? E se Wenna e eu não estivéssemos lá? O que seria de Ícaro no meio de dois homens bêbados doidos pra bater no primeiro preto que aparecesse na frente? E daí se eles não sabem se é ele mesmo? Tome porrada!
Eles correm até se perderem da nossa vista. Tiros. Uns homens ao longe segurando pedaços de pau. Quem sabe?
-
quinta-feira, fevereiro 09, 2006
Quando eu for canção
Às vezes queria poder ser só uma canção
Porque ouvir não dá jeito
Hei de ser verso e melodia
No meio de tanto caos
Encontro uma pequena pausa pra ser canção
E viver mais do que posso
Enfim ser um sol
Fá ré mi sol
Porque ouvir não dá jeito
Hei de ser verso e melodia
No meio de tanto caos
Encontro uma pequena pausa pra ser canção
E viver mais do que posso
Enfim ser um sol
Fá ré mi sol
quarta-feira, fevereiro 08, 2006
Invocação a Joyce
Dispersos em dispersas capitais,
Solitários e muitos
Brincávamos de ser o primeiro Adão
Que nomeou as coisas.
Pelos vastos declives da noite
Que lindam com a aurora
Buscamos (lembro ainda) as palavras
Da lua, da morte, da manhã
E dos outros hábitos do homem
Fomos o imagismo, o cubismo,
Os conventículos e seitas
Que as crédulas universalidades veneram
Inventamos a falta de pontuação,
A omissão de maiúsculas,
As estrofes em forma de pomba
Dos bibliotecários de Alexandria.
Cinza, a faina de nossas mãos
E um fogo ardente nossa fé.
Tu, enquanto,
Nas cidades do desterro,
Naquele desterro que foi
Teu aborrecido e eleito instrumento,
A arma de tua arte,
Construídas teus árduos labirintos,
Infinitesimais e infinitos,
Admiravelmente mesquinhos,
Mais populosos que a história.
Teremos morrido sem haver divisado
A biforme fera ou a rosa
Que são o centro de teu dédalo,
Mas a memória tem seus talismãs,
Seus ecos de Virgílio,
E assim nas ruas da noite perduram
Teus infernos esplêndidos,
Tantas cadências e metáforas tuas,
Os ouros de tua sombra,
Que importa nossa covardia se há na terra
Um só homem valente,
Que importa a tristeza se houve no tempo
Alguém que disse feliz,
Que importa minha perdida geração,
Esse vago espelho,
Se teus livros a justificam
Eu sou os outros. Eu sou todos aqueles que teu rigor obstinado resgatou.
Sou os que não conheces e os que salvas.
Poema retirado de Elogio da sombra, de Jorge Luis Borges
Solitários e muitos
Brincávamos de ser o primeiro Adão
Que nomeou as coisas.
Pelos vastos declives da noite
Que lindam com a aurora
Buscamos (lembro ainda) as palavras
Da lua, da morte, da manhã
E dos outros hábitos do homem
Fomos o imagismo, o cubismo,
Os conventículos e seitas
Que as crédulas universalidades veneram
Inventamos a falta de pontuação,
A omissão de maiúsculas,
As estrofes em forma de pomba
Dos bibliotecários de Alexandria.
Cinza, a faina de nossas mãos
E um fogo ardente nossa fé.
Tu, enquanto,
Nas cidades do desterro,
Naquele desterro que foi
Teu aborrecido e eleito instrumento,
A arma de tua arte,
Construídas teus árduos labirintos,
Infinitesimais e infinitos,
Admiravelmente mesquinhos,
Mais populosos que a história.
Teremos morrido sem haver divisado
A biforme fera ou a rosa
Que são o centro de teu dédalo,
Mas a memória tem seus talismãs,
Seus ecos de Virgílio,
E assim nas ruas da noite perduram
Teus infernos esplêndidos,
Tantas cadências e metáforas tuas,
Os ouros de tua sombra,
Que importa nossa covardia se há na terra
Um só homem valente,
Que importa a tristeza se houve no tempo
Alguém que disse feliz,
Que importa minha perdida geração,
Esse vago espelho,
Se teus livros a justificam
Eu sou os outros. Eu sou todos aqueles que teu rigor obstinado resgatou.
Sou os que não conheces e os que salvas.
Poema retirado de Elogio da sombra, de Jorge Luis Borges
terça-feira, fevereiro 07, 2006
Os desvairados
Ontem estava indo para a universidade na odisséia de mais um dia ordinário. Eu e o terminal, o terminal e eu. Esse é um ambiente tão sórdido, um ar de decadência, odores de comidas imundas e banheiros que a gente passa bem longe, o sol derretendo os miolos e fazendo ondas no chão. Tudo parece um fardo.
De repente, os gritos de um homem dão tapas na sucessão dos meus pensamentos. Você tome cuidado que eu sou doido, óoooi, não mexa comigo, não. Olhei pra um lado, pro outro, e nada, não havia ninguém o insultando ou ameaçando lhe dar uma surra. Aquele homem negro, com roupas sujas, as veias iradas saltando do pescoço, os passos dançando pra frente e pra trás num ritmo ameaçador, aquele homem erguia os braços e apontava para um inimigo imaginário. Diante da doidice do homem, alguns viravam o rosto para não ver, outros baixavam a cabeça com medo, e eu o observava pensando: quem é o inimigo dele?
Não podia parar de contemplar os seus delírios. A bestialidade dos seus movimentos, os olhos tinham certeza no seu olhar, não eram perdidos, eles se fixaram em alguma entidade que só o tal homem era capaz de perceber. Queria saber o que ele via, por que tinha tanto ódio da tal criatura.
Quantas vezes eu vi gente pobre que nem ele agarradas a alucinações e provocando o medo, o asco, a pena dos espectadores. Lembro-me de uma vez em que estava num ponto de ônibus perto do trabalho da minha mãe, ali na avenida Beira Mar, quando vi surgir uma mulher com os braços estendidos e os olhos desorientados no céu. Ela era um sacrifício ao deus-céu. Entregava-se à infinitude azulada, pra onde levava a sua alma e a deixava lá. Os carros indo e vindo, ela no meio da pista, mas só havia o deus-céu, e aquele abandono era um ritual que brincava com sua vida, talvez não lembrasse que havia vida. As buzinas a trouxeram de volta à pista dos homens xingando e da dor de viver as migalhas.
E aqueles que fazem pregações nos ônibus, no centro da cidade? Falam de um Deus bondoso que ama a todos nós, gritam a sua dor misturada com fé numa catarse, e fecham os olhos diante do mundo para encontrar um Deus que guarda para eles um céu com belos campos e felicidade eterna. Deus irá nos salvar. É só segurar na mão de Deus que ele vai te ajudar. Irmãos, grande e poderoso é o Senhor!
Alucinados bêbados de uma realidade atroz, quais serão os seus mundos?Quem são seus inimigos, seus deuses? Qual sua fé, sua falta de fé, seu suicídio? Novos mundos fantasiados diante de um mesmo mundo.
De repente, os gritos de um homem dão tapas na sucessão dos meus pensamentos. Você tome cuidado que eu sou doido, óoooi, não mexa comigo, não. Olhei pra um lado, pro outro, e nada, não havia ninguém o insultando ou ameaçando lhe dar uma surra. Aquele homem negro, com roupas sujas, as veias iradas saltando do pescoço, os passos dançando pra frente e pra trás num ritmo ameaçador, aquele homem erguia os braços e apontava para um inimigo imaginário. Diante da doidice do homem, alguns viravam o rosto para não ver, outros baixavam a cabeça com medo, e eu o observava pensando: quem é o inimigo dele?
Não podia parar de contemplar os seus delírios. A bestialidade dos seus movimentos, os olhos tinham certeza no seu olhar, não eram perdidos, eles se fixaram em alguma entidade que só o tal homem era capaz de perceber. Queria saber o que ele via, por que tinha tanto ódio da tal criatura.
Quantas vezes eu vi gente pobre que nem ele agarradas a alucinações e provocando o medo, o asco, a pena dos espectadores. Lembro-me de uma vez em que estava num ponto de ônibus perto do trabalho da minha mãe, ali na avenida Beira Mar, quando vi surgir uma mulher com os braços estendidos e os olhos desorientados no céu. Ela era um sacrifício ao deus-céu. Entregava-se à infinitude azulada, pra onde levava a sua alma e a deixava lá. Os carros indo e vindo, ela no meio da pista, mas só havia o deus-céu, e aquele abandono era um ritual que brincava com sua vida, talvez não lembrasse que havia vida. As buzinas a trouxeram de volta à pista dos homens xingando e da dor de viver as migalhas.
E aqueles que fazem pregações nos ônibus, no centro da cidade? Falam de um Deus bondoso que ama a todos nós, gritam a sua dor misturada com fé numa catarse, e fecham os olhos diante do mundo para encontrar um Deus que guarda para eles um céu com belos campos e felicidade eterna. Deus irá nos salvar. É só segurar na mão de Deus que ele vai te ajudar. Irmãos, grande e poderoso é o Senhor!
Alucinados bêbados de uma realidade atroz, quais serão os seus mundos?Quem são seus inimigos, seus deuses? Qual sua fé, sua falta de fé, seu suicídio? Novos mundos fantasiados diante de um mesmo mundo.
sexta-feira, fevereiro 03, 2006
O gosto simples da paz
Abandonada ao sofá vermelho, diante da janela cheia de nuvens, o tempo está cinza, e há neve no meu peito. Encontro o prazer tão sutil e o mais nobre. O prazer das coisas simples. Em tempos assim, descubro que o bom da vida está em cantar na mente uma música suave, em fazer carinho na minha cadela, em dizer palavras bobas ou abraçar quem se gosta no silêncio da paz. Ah, como gosto dessa tarde que se vai escapando das minhas forças como uma leve brisa, a me furtar todas as coisas, deixando um vazio que me faz dormir igual criança.
Ausência
Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços, que rio e danço e invento exclamações alegres, porque a ausência, essa ausência assimilada, ninguém a rouba mais de mim.
Carlos Drummond de Andrade
quinta-feira, fevereiro 02, 2006
Palavras do Demo
Não diga palavrões, minha neta, essas palavras chamam o Diabo. O Demo gosta de quem fala essas coisas feias, ah, eu bem me lembro de uma história que Ninha Daria me contou...
Havia um velho que vivia xingando. Era porra pra lá, caraio, cabrunco, esses nomes feios. Sempre que ele tava com raiva, gritava palavrões. Você sabe, minha neta, que o Demo gosta de ódio, aí quando ele sente a ira crescendo no seu coração, ele chega mais perto pra ver se pega a sua alma e guarda no quinto dos infernos.
Então de noite, quando o Velho foi dormir, ele apagou todas as luzes e caminhou como um cego até a sua cama. O Velho não rezou, era desse povo que dorme feito bicho, parece não ter Deus. E você sabe, minha neta, que nesse mundo a gente só vive e é feliz de verdade com Deus no coração. Não confio nesse povo que diz que Deus é coisa inventada, oxe, gente assim faz mal aos outros e nem se preocupa, porque acha que não existe Deus nem o Diabo.
Ah sim, então o homem viu uma luz vindo de lá do corredor e invadindo o quarto. Ele sentiu uma tremedeira atravessar todo o seu corpo, não cabia em si de tanto medo, e não se mexia porque não havia tempo pra pensar, só pra temer. O que era aquilo, diacho? Mas se não era o Demo, o Tinhoso, o Coisa Ruim! Era um monstro enorme e peludo com dois chifres, e seus pêlos se misturavam com o brilho da luz que saía do seu corpo. Os olhos em brasa, chispando um ódio calmo, e fitando sem piscar o velho xingão. A coisa não se movia, minha neta, ficava lá parada com todo seu movimento de terror expelido pelo seu olhar perdido nos rumos desvãos. E assim mesmo metia um medo danado no Velho, que também parado se mantinha.
Mas Deus salva, minha neta. Sim, Jesus é muito bom e generoso. O Velho fez com as mãos trêmulas e com olhos mirando o céu o sinal da cruz. Quando ele voltou os olhos pro chão, a criatura não estava mais lá. Tinha rumado quem sabe pra onde, talvez pra o lugar que ela fitava, e o velho disse não ser o norte, nem oeste, não tinha direção, nunca viu um olhar daqueles.
Desde aquele dia, nunca mais o velho disse palavrão nenhum.
Havia um velho que vivia xingando. Era porra pra lá, caraio, cabrunco, esses nomes feios. Sempre que ele tava com raiva, gritava palavrões. Você sabe, minha neta, que o Demo gosta de ódio, aí quando ele sente a ira crescendo no seu coração, ele chega mais perto pra ver se pega a sua alma e guarda no quinto dos infernos.
Então de noite, quando o Velho foi dormir, ele apagou todas as luzes e caminhou como um cego até a sua cama. O Velho não rezou, era desse povo que dorme feito bicho, parece não ter Deus. E você sabe, minha neta, que nesse mundo a gente só vive e é feliz de verdade com Deus no coração. Não confio nesse povo que diz que Deus é coisa inventada, oxe, gente assim faz mal aos outros e nem se preocupa, porque acha que não existe Deus nem o Diabo.
Ah sim, então o homem viu uma luz vindo de lá do corredor e invadindo o quarto. Ele sentiu uma tremedeira atravessar todo o seu corpo, não cabia em si de tanto medo, e não se mexia porque não havia tempo pra pensar, só pra temer. O que era aquilo, diacho? Mas se não era o Demo, o Tinhoso, o Coisa Ruim! Era um monstro enorme e peludo com dois chifres, e seus pêlos se misturavam com o brilho da luz que saía do seu corpo. Os olhos em brasa, chispando um ódio calmo, e fitando sem piscar o velho xingão. A coisa não se movia, minha neta, ficava lá parada com todo seu movimento de terror expelido pelo seu olhar perdido nos rumos desvãos. E assim mesmo metia um medo danado no Velho, que também parado se mantinha.
Mas Deus salva, minha neta. Sim, Jesus é muito bom e generoso. O Velho fez com as mãos trêmulas e com olhos mirando o céu o sinal da cruz. Quando ele voltou os olhos pro chão, a criatura não estava mais lá. Tinha rumado quem sabe pra onde, talvez pra o lugar que ela fitava, e o velho disse não ser o norte, nem oeste, não tinha direção, nunca viu um olhar daqueles.
Desde aquele dia, nunca mais o velho disse palavrão nenhum.
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