domingo, fevereiro 08, 2009

O que é isso, companheiro?


Um dos maiores problemas do cinema brasileiro é a vontade de ganhar o Oscar. Essa necessidade de obter o aval estrangeiro pode produzir pérolas como O que é isso, companheiro? (1997), do diretor Bruno Barreto. O filme relata o sequestro de um embaixador americano, Charles Elbrick, por um grupo de militantes comunistas em plena ditadura militar no Brasil. Charles termina por ser a figura mais carismática do filme: um democrata bonzinho, apaixonado pela esposa, que não fazia a mínima idéia de que representantes do governo dos Estados Unidos davam aulas de como torturar comunistas. O embaixador, segundo o que ele próprio afirma no filme, queria apenas ter relações diplomáticas com o Brasil.

O filme faz uma defesa de valores de liberdade, com todo aquele discurso choroso sobre democracia e etc, com pretensões de documento histórico, justamente como o júri do Oscar adora. É uma obra que exibe também a linguagem clássica de Hollywood - fica bem na fita ver como os brasileiros aprenderam a fazer filme do jeito deles, tanto é que o filme foi indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro.

Muito diferente da ousadia estética buscada pelo Cinema Novo, que teve como manifesto a Estética da Fome, lançada pelo cineasta Glauber Rocha. Se Bruno Barreto traz sua linguagem limpinha, exemplar do modelo do Cinema da Retomada, e representa os comunistas como malucos que se metiam num mundo violento, Glauber fazia um elogio à violência como manifestação libertadora dos oprimidos. Deus e o diabo na terra do sol é um marco no elogio à violência como revolta dos subordinados.

Bruno Barreto vai de encontro à essa violência, o que não consistiria um problema caso sua crítica não fosse tão rasa quanto um pires, e sua visão da realidade social um verdadeiro conto da carochinha. Logo no começo da obra, vemos o trabalho da direção de arte elaborar uma tiração de sarro com a tradição cinemanovista: no quarto dos jovens, que mais tarde irão se empenhar na luta pela revolução, encontra-se pendurado um pôster do filme Deus e o diabo na terra do sol, como também do mártir Che Guevara.

Ora, em que consiste a sacanagem do Bruno Barreto com os comunistas e também com uma tradição do cinema brasileiro? É que, por mais que o diretor tenha a pretensão de apresentar um filme não-ideológico, a visão de mundo impregnada na obra em questão coincide surpreendentemente com a de um dos personagens do filme. Quem? O torturador Henrique. É Henrique quem afirma que a grande maioria dos jovens comunistas era formada por meninos sonhadores e ingênuos manipulados por líderes iníquos que queriam tomar o poder.

Não é por acaso que os jovens comunistas são representados exatamente assim na obra - como meninos que vivem no mundo da lua, colocando o comunismo e o Cinema Novo, presentes em pôsteres no quarto dos comunistas, também como projetos nefelibatas. E também não é por acaso que o único personagem de fato autoritário e perverso da obra é o líder comunista Jonas, tratado como um manipulador pelo filme.

Só que Bruno Barreto tenta aparecer bem na fita com um pretenso filme politicamente correto e isento de ideologias políticas, todavia, no fim das contas, terminou representando a realidade de acordo com um personagem torturador. A tortura não doeu tanto assim para os comunistas, segundo Bruno Barreto. Tanto é que, numa das cenas do filme, torturadores falam sobre um sargento que se casou com uma vítima que sentia gozo pela tortura. Sem dúvida deve ter sido extremamente prazeroso para muitas mulheres serem estupradas e receberem choques elétricos na vagina nos porões da ditadura.

Numa versão tola da idéia de Rousseau, segundo a qual "o homem é bom, mas o meio o corrompe", os indivíduos aparecem no filme todos como seres humanos bons, exceto o líder comunista Jonas. Os personagens são arrastados até a violência por uma força maior que eles. O filme estabelece laços afetivos entre os comunistas e seu refém, o embaixador, o que poderia constituir uma maneira complexa de tratar a realidade, sem o típico maniqueísmo vítima e algoz, porém termina retirando a discussão política em prol de uma parábola sobre homens levados à violência por forças estranhas. A luta contra as injustiças sociais ou a defesa do fascismo não se relaciona diretamente com as motivações dos personagens, pois os problemas sociais permanecem fora da diegese, Henrique pratica a tortura apenas porque é seu trabalho, e o embaixador sequer sabe sobre a relação dos EUA com a tortura no Brasil.

Os personagens pertencem a outro mundo, pois enquanto eles ficam metidos com discussões sobre a coletividade, as pessoas comuns tentam levar suas próprias vidas. A partir do momento em que os jovens comunistas escolhem a guerrilha, eles perdem suas identidades (são chamados por nomes falsos), e afastam-se da família e dos amigos. O filme os mostra como se estivessem cegos. Na cena em que eles vestem máscaras para esconderem seus rostos do olhar do refém, o embaixador, o plano destaca a imagem de uma tesoura cortando o pano para fazer buracos na região do capuz que ficaria sobre os olhos, numa referência clara à "cegueira" dos personagens comunistas.

Eles estão cegos desde a cena em que o amigo de César e Fernando, que decidiu levar sua própria vida fazendo teatro, sai de quadro e, num jogo de campo e contracampo, segue um outro mundo e um outro caminho, separando-se dos seus colegas. O filme poderia apontar uma crítica, já que em outro momento Fernando e o amigo ator se reencontram, e Fernando afirma que é melhor estar envolvido com suas lutas do que vivendo no faz de conta de uma peça de teatro.

Só que segundo O que é isso, companheiro? parecia haver dois Brasis nos tempos de chumbo: um das primeiras imagens que aparecem no filme, com fotografias documentais da praia de Copacabana ao som de Garota de Ipanema, como também o Brasil que surge ao final, com Maracanã lotado de torcedores eufóricos num jogo de futebol, e outro Brasil país dos militantes e torturadores se digladiando entre si, como se não houvesse em nenhum lugar um Brasil que passasse fome.

11 comentários:

[Kleber] disse...

Puta que pariu!
Muito bom texto!
Esse eu não vo passar no pão!
Hahhaa

marcolino joe disse...

Faço côro e me confesso surpreso:
além do poker tu também escreve?

Anônimo disse...

Bom texto! Mas... a idéia de que as questões sociais e políticas estarem descoladas das motivações dos personagens, ou seja, serem introduzidas de fora e não tocarem ou nascerem a partir dos problemas mais miseráveis do país não aponta para um fenômeno de importação das tendências por uma determinada classe, sejam essas tendências conservadoras ou revolucionárias? Não lembro quase nada do filme... mas, o olhar (se houver algum) não seria da juventude classe média que vive conforme as oscilações flutuantes provocadas pela atração exterior impedindo-a de tocarem o solo miserável de seu país? O que fez Glauber respirar a Nouvelle Vague e tocar esse solo? Será que sua linguagem (importada?) chegou algum dia a ser compreensível pelos brasileiros não-cinéfilos? Pensar qualquer coisa relacionada ao Brasil me deixa perplexo e confuso.

Diário de uma cinéfila disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
tatiana hora disse...

concordo com essa crítica ao Glauber, sobre ter se mantido entre poucos espectadores, e também aos jovens de classe média e etc e tal... meu objetivo não era elogiar o Glauber e os militantes da época, nas atacar a pretensão do filme de ficar distante de ideologias políticas (aspirando se restringir a questões "universais" e "humanas"), quando ele termina por respirar liberalismo.

Anônimo disse...

Descobri Truffaut. Tornou-se um dos meus diretores preferidos. O primeiro filme que assisti foi "Os incompreendidos". Esplêndido. Terminei de assistir à saga de Antoine Doinel, que inclue "Os incompreendidos", "Amor aos vinte anos", "Beijos Proibidos", "Domicílio COnjugal" e "Amor em fuga". O tema preferido de Truffaut é o amor. Sua relação com a Nouvelle Vague é um tanto ambígua: é considerado um dos fundadores do movimento e intensamente criticado pelo seu "classicismo". Apesar de simplificar o processo de filmagem tornando-o mais verossímil e de imprimir sua marca no conjunto de obra vinculando-se à política de autor (termo que ele mesmo cunhou), Truffaut considera seu cinema como espetáculo, desenvolve os temas sem descontinuidades ou demais estratégias "vanguardísticas" de simulação, e refere-se à Novelle Vague não como uma revolução na linguagem mas como retomada do amadorismo e simplicidade característicos do cinema mudo. Truffaut não abre mão da prosa em nome do cinema-poesia. Talves ele se insira nos filmes que precederam ao movimento, seria o última de uma linhagem que inclue Vigo e Renoir? De qualquer modo, os filmes de Truffaut sempre mantém um pé no passado. A lembrança, a infância costumam estar presentes. Ao contrário de Godard, para o qual o acontecimento da Novelle Vague impede qualquer retorno à concepção de cinema do passado. Sou mais Truffaut. Prefiro "Vivre sa vie" a "Pierrot le fou", "Deus e Diabo na terra do sol" do que "Terra em transe". Vi "Jules et JIm". Passo agora à "Fahrenheit 451". Conhece Truffaut, Tati? Taí a dica.

tatiana hora disse...

olha, fica difícil escolher entre Vivre sa vie e Pierrot le fou... são os filmes do Godard que mais gosto. também sou mais Deus e o diabo na terra do sol... e o filme do Truffaut que mais gostei foi Jules et Jim... disparado.

e quanto a essa discussão sobre espetáculo cinematográfico, no fim das contas o que mais me atraiu nos favoritos de Godard e Truffaut foi justamente a identificação com certos personagens. também não tenho nenhum problema com classicismo, mas sim com obviedade. nem com vanguardismo, e sim com pedantismo.

sim, mas saindo das questões filosóficas, você me conhece de vista? hehe

Anônimo disse...

QUanto à Jules et Jim... o filme foi baseado num livro de mesmo nome, mas aparece outra referência que, apesar de não ter lido o Jules e Jim, ajudou-me bastante para atentar aos outros aspectos do filme. É o livro do Goethe, "Afinidades Eletivas" junto com o comentário que o Walter Benjamim faz! Há todo um simbolismo da MORTE (Presta atenção nas palavras Deb) envolto no livro que o Benjamim esclarece. Esses sinais voltam a aparecer no filme. A neblina, o lago, o cemitério, a inocência da protagonista... mt bacana.

Anônimo disse...

Quando o romance do Goethe aparece no filme, e começo a perceber os mesmos sinais.... pressenti logo que a protagonista ia se suicidar. Nas Afinidades Eletivas, a protagonista se suicida também e no lago.

Anônimo disse...

Boa noite!

tatiana hora disse...

pessoal, agora que o mistério foi solucionado, apaguei os recados para não expor as pessoas em questão.
(meu blog não é o BBB).
não lembro dessa do sociólogo hahaha.