Logo no começo de Get
out!, um homem negro perambula por uma rua escura num subúrbio de classe média
americano, procurando uma casa num lugar que lhe parece perigoso. Ele percebe
que um carro diminui a velocidade e se aproxima dele, então muda de direção e
conclui: “sabe como eles tratam gente como eu né”. Eis que um homem o agarra
abruptamente, lhe dá uma chave de braço e o leva para o carro. Desde a primeira
cena, o filme apresenta o olhar do negro inserido num ambiente hostil e em que
os brancos são como "monstros” que estimulam sobressaltos no espectador. Quando
a narração entra “em fase” com o olhar de um homem negro num lugar repleto de
brancos, não é o negro que é o Outro, e sim o branco é o Outro. E é uma ameaça.
Numa cena, o irmão da
namorada de Chris, o jovem negro que vai passar o final de semana na casa da
família da sua namorada branca (Rose), afirma que se Chris treinasse luta iria
se tornar um “monstro” devido à sua “carga genética” e ao seu porte físico. A monstruosidade
do corpo negro criada pelo olhar racista é colocada em questão neste filme de
forma, eu diria, oposta ao que ocorre em filmes como O som ao redor e Aquarius.
Nos filmes de Kleber Mendonça, o olhar convocado é o do espectador branco, de
classe média, que se assusta com a aparição de figuras negras (os meninos que
pulam o muro da casa em O som ao redor, a empregada negra que furtava joias em
Aquarius e que aparece num pesadelo). O objetivo de Kleber Mendonça parece
expor as feridas abertas dos conflitos raciais, no entanto, esses filmes acabam
reforçando o caráter “monstruoso” do corpo negro. Ao contrário, em Get out!, é
a consciência do negro a respeito do olhar racista do branco que está em jogo.
Assim que Chris chega à
casa dos pais de Rose, ele repara que os empregados, Walter e Georgina, são
negros. E sua chegada é vista à distância, num plano filmado do ponto de vista
de Walter com uma música de suspense, o que, de saída, o aproxima dos misteriosos
empregados (não sem medo). Por mais que os brancos sejam “simpáticos”, por mais que o sogro
afirme que “votaria em Obama pela terceira vez se pudesse”, há na encenação um
conflito proeminente que resiste à falsa conciliação, presente inclusive em
trocas de olhares intimidantes. Exemplo disso, no momento em que a mãe de Rose
hipnotiza Chris, o ruído estridente e repetitivo da colher mexendo na xícara
toma conta da cena da hipnose, e a sua amabilidade dá lugar a um controle
ameaçador. Durante um leilão em que estão presentes muitos familiares, Chris
ouve comentários como “negro está na moda”, ou perguntas sobre se por acaso sua
performance sexual é de fato melhor, enfim, o lugar que lhe é dedicado é o do
exótico e do objeto. Em tempos de “make America great again”, Trump e muros,
Get out! é um filme que faz uma crítica incisiva à sociedade que jamais superou
as heranças da escravatura e da Guerra de Secessão. Quando o irmão da namorada
dá uma chave de braço em Chris, ele conta: “um Mississippi, dois Mississippi,
três Mississippis...”, em referência ao estado americano que até os dias de
hoje tem escolas onde estudam apenas brancos ou apenas negros.
Jordan Peele realiza um
filme de autor (possibilitado inclusive pelo acúmulo de funções: diretor,
roteirista e co-produtor) que lança mão dos códigos do suspense e da ficção
científica, e elabora imagens que adensam o passado e o presente na crítica
histórica sob a forma de uma atmosfera fílmica que dá a ver o “retorno do
recalcado”, ou da presença do “fantasma”, esse passado que permanece
assombrando o presente, mesmo que seja constantemente impelido para o
esquecimento. Chris descobre que é parte de um experimento: a sua namorada o
teria atraído para a propriedade da família com a finalidade de que ele fosse
hipnotizado por sua mãe, uma psiquiatra, e fosse submetido a uma cirurgia
realizada pelo seu pai, um neurocirurgião. Através da cirurgia, Chris perderia
metade do seu cérebro, e, assim, o galerista cego da família iria finalmente
enxergar “através dos olhos” de Chris. Ele descobre também que os empregados da
casa tiveram seus corpos usados para conceder imortalidade aos avós de Rose. O passado
do racismo científico e da eugenia é convocado aqui: áreas da ciência se
desenvolveram às custas da exploração do corpo negro, considerado abjeto, a
exemplo da ginecologia, que tem James Marion Sims, que realizou cirurgias em
mulheres escravizadas sem anestesia, como “pai da ginecologia moderna”. Não há
limites para a exploração e subjugação dos corpos dos negros pelos brancos.
Antes de ser levado
para a cirurgia, Chris é amarrado numa cadeira que faz uma clara alusão à
cadeira elétrica (a grande maioria dos condenados à pena de morte nos Estados
Unidos é constituída por negros), e ele é colocado de frente para uma televisão
em sessões de hipnose, e um cervo empalhado (numa referência ao cervo é morto
após irromper abruptamente na frente do carro quando ele e a namorada estavam
indo à propriedade da família). Ao final, Chris é salvo pelo seu amigo
policial, mas antes temos medo do que irá acontecer a um negro encontrado vivo
junto a diversas pessoas mortas, e nos perguntamos o que será de Chris após
tudo isso. O grande número de negros que continuaram sendo mortos por policiais
durante o governo de um homem negro (ou sobre os limites da representatividade),
“black lives matter”, estão presentes aqui.
Um cinema monstruoso. A
figura do monstro perde humanidade, o monstro é a diferença exposta em carne
viva. O monstro traz à cena um “excesso de presença”, e em todo o filme Chris expõe
a profunda consciência do seu “excesso de presença” perante brancos que lhe
parecem, eles sim, monstros. Monstrum, do latim mostrar, advertir, tem a ver
com presságio, com um perigo que está porvir (o perigo da distopia de uma
sociedade que precisa de muros e novos apartheids?). O monstro é também algo
fora da ordem do real: Get out! recorre à transgressão do real para falar alegoricamente
sobre problemas muito reais.