terça-feira, novembro 29, 2005

Vá logo tomar o remédio

A boneca em cima da cômoda à esquerda me fita com um ar de cobrança maternal estranha às suas trancinhas coloridas e à sua falta de vida. “Vá logo tomar o remédio”, é o que diz o bilhete escrito com minha insegura letra, colado ao vestido de Jasmim. Já vou, respondo em pensamento, dialogando com o olhar estático dela.

A pia parece uma montanha de pratos para lavar, e a combinação daquela imagem com os gritos coléricos da minha mãe e as ordens dos meus irmãos querendo comida na mesa faz um belo começo de dia, igual àqueles das propagandas de margarina.

- Você só vive na rua tomando cachaça, virando noite, enquanto eu me mato de trabalhar naquela porra de hospital pra lhe dar de comer, e chegar em casa e você vir me pedir dinheiro pra ir pra essas festas? Não quer saber de estudar, depois faça que nem eu que não tirei diploma e vivo nessa merda. Meu Deus do céu, eu tô pagando meus pecados!

Sinceramente, é melhor nem responder. Olho a minha mãe de relance, só para ela não me dar um tapa dizendo que a ignorei como fez outro dia. Finjo que presto atenção nas suas lamúrias enquanto atento ao ruído do meu anel em atrito com o prato. Brinco um pouco com a espuma. Os talheres, ah, eu até que gosto de lavar os talheres, fico meio encostada na pia, toda preguiçosa, lavando um por um.

Meu irmão já reclamava do almoço, dizia que o de ontem estava muito ruim. E eu lá tenho culpa se nessa casa não tem nada pra comer? Vou inventar o quê agora? Abro a geladeira e só vejo água e uma tigela cheia de feijão de anteontem. Mas o importante é que eu era a culpada de tudo.

Só limpo a casa cantando, e isso dá uma demora! Às vezes faço uma enganação, não limpo debaixo da cama, sei lá, estou farta de cansaço, e minha mãe não vai perceber se eu fizer isso uma vez ou outra. Deus me livre ela me bater com o pau que ela guarda no armário dela.

A cômoda do meu quarto está cheia de poeirinhas que tratei com displicência, e de repente vejo novamente a porcaria da boneca. “Vá logo tomar o remédio”. Eu já vou, aiai, eu não disse que já vou, mas primeiro preciso terminar de limpar o meu quarto.

Uma sensação de paz, dever cumprido, uma vontade de se jogar em qualquer lugar é o que eu tenho ao terminar as tarefas da manhã. Fico estendida indolentemente na cama e entregue ao abandono de nada fazer. Oxalá o tempo não passe para eu não ter de ir à escola assim, como queria contemplar o êxtase da mais insolente lassidão. Viro para a esquerda. “Vá logo tomar o remédio”. Eu já tomei, porra, que saco!

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