Última Parada 174 (2008), de Bruno Barreto, conta uma história que todo mundo já conhece. Entretanto, o filme não busca ser fiel à realidade, apesar de logo no início nos lembrar que se trata de uma história baseada em fatos reais. Não haveria problema em não apresentar uma pretensa objetividade (há problemas bem maiores em querer abarcar o real em sua totalidade), caso a maneira como a história de Sandro Nascimento é contada não chegasse a ser canalha, devido à delicadeza do tema e a forma tola como o personagem é abordado.
O Sandro Nascimento do documentário
Ônibus 174 (2002), de José Padilha, é um homem que é arrastado à violência através da violência. Ele vê a mãe ser esfaqueada aos sete anos, ele é sobrevivente da chacina da Candelária, ele passou pela FEBEM até chegar ao sistema prisional, onde conheceu nas entranhas a árdua justiça punitiva da sociedade. Há uma diferença primordial entre o Sandro de
Ônibus 174 e o Sandro de
Última parada – o primeiro é um produto da violência e das injustiças sociais, enquanto o segundo não passa de um desviado.
O Sandro de
Última Parada chegou a ser internado no reformatório, mas nunca foi para a cadeia. O Sandro de
Última Parada não assistiu à morte da mãe, pois quando ele chegou, ela já estava caída ao chão. O Sandro de
Última Parada não tem vida própria - ele é sempre visto a partir de um olhar de pena. Vale lembrar de outro filme do cinema nacional que abordou a realidade dos “meninos de rua”,
Pixote – a lei do mais fraco (1981), de Hector Babenco. Uma das qualidades que faz do filme de Babenco uma obra-prima é o fato de os seus personagens, especialmente Pixote, serem sujeitos com vontades e histórias suas. Eles não estão ali como coitadinhos ou meninos perturbados que precisam de ajuda, justamente a representação que
Última Parada termina oferecendo.
Ainda em comparação a
Ônibus 174, a ficção deixou totalmente de lado o que o documentário abordou com ênfase – o desejo de visibilidade de Sandro levado até as últimas conseqüências e o espetáculo midiático que terminou criando um monstro. O mérito do documentário de Padilha foi ter ressaltado em seu filme a maneira como a encenação que Sandro fez para as câmeras era uma revolta diante da sua invisibilidade social. O ponto fraco do documentário de Padilha está no fato de o parentesco com o jornalismo ter deixado tal relação ser elaborada numa forma muito simplificada – por exemplo, ele simplesmente pega imagens de meninos de rua ignorados pelos motoristas no sinal e insere a narração em off de um especialista, numa espécie de pleonasmo em que a fala repete o que já está presente na imagem. Já a ficção de Bruno Barreto deixa a canalhice da mídia de lado e pouco aborda a problemática questão da sociedade do espetáculo.
Nas cenas da ficção que representam o seqüestro do ônibus surge uma figura inusitada – no lugar do policial do BOPE que faz negociações com Sandro está André Ramiro, que interpretou Matias em
Tropa de Elite (2007), de José Padilha, mesmo diretor de
Ônibus 174. Coincidentemente, André Ramiro tem semelhanças físicas com o policial que conversou com Sandro e que deu entrevista para
Ônibus 174. Não por acaso o personagem Matias, que é o policial mais bem comportado de
Tropa de Elite, assume em
Última Parada o papel de um policial que queria apenas reconciliar conflitos e receber Sandro de braços abertos. Ramiro, assim como em
Tropa de Elite, interpreta um personagem que acaba ficando revoltado – só que em
Última Parada ele se senta frustrado de cabeça baixa na rua, enquanto em
Tropa de Elite ele atira na cara do espectador no último plano do filme.
Em
Ônibus 174, Sandro Nascimento avacalha porque “não tem ninguém”, “não tem nada a perder”, e não quer voltar de maneira alguma para a prisão depois de ter conhecido o gostinho do inferno. Em
Última Parada a prisão sequer existe – ela foi apagada da história de Sandro. O Sandro de
Ônibus 174 está só e cercado por todos os lados. Já em
Última Parada, a salvação está a sua espera, com a moça da ONG e a mulher que acredita que é sua mãe esperando-o aflitas logo ali perto do ônibus. Sandro não se redimiu, ao contrário da mulher que acredita que é sua mãe, e que de viciada em drogas passou a evangélica. O Cristo Redentor, que surge em planos do filme sobre a cidade do Rio de Janeiro, poderia ser uma representação dessa salvação mítica (seja numa ONG ou num lar) que terminou por não ser encontrada.
Ele termina sendo vítima trágica de um policial que de maneira impensada contribuiu para a morte dele e de sua refém, e inclusive esse momento apresenta decupagem da ficção semelhante à do documentário, com o uso de câmera lenta. E é aí onde tanto a ficção quanto o documentário sobre o evento do 174 trazem representações problemáticas na medida em que espetacularizam também o acontecimento que “fascinou” os brasileiros na frente da TV.
A narrativa de
Última Parada 174, onde nenhuma cena tem uma beleza em si, mas apenas está ali para adiantar o andamento da história, onde os personagens à margem não têm vida própria, mas estão sempre sob o olhar de quem dá esmola na porta da igreja. Pra terminar, é claro que não podia faltar um
happy end. Marisa, a mulher que na ficção acreditava ser mãe de Sandro, acaba encontrando seu verdadeiro filho pelas mãos do destino no enterro do falso filho que havia morrido no trágico episódio da linha 174.