Várias pessoas me disseram que eu tenho uma mente masculina. Já houve até quem dissesse que penso como um homem gay. Não sei direito o que é isso, mas enfim. Vamos lá. A única escritora feminina que realmente conseguiu quebrar minhas estruturas foi Virginia Woolf. E só. E mesmo assim, entre Sra. Dalloway e Orlando, eu fico com o segundo, que fala sobre a experiência da transformação de um nobre em mulher, trazendo assim uma ambiguidade entre masculino e feminino. Ou talvez fosse preciso ir além da questão dos gêneros? Será que sou afeita a esta ambiguidade? Mas se os gêneros existem na cultura e nós estamos inseridos na cultura, é possível falar para além dos gêneros, ou de fora dessa cultura? Dúvida. E mesmo numa obra como Madame Bovary, Flaubert se aventura pelo universo feminino, mas esse livro carrega o olhar do homem. Não é Madame Bovary quem nos fala, mesmo que Flaubert diga: "Madame Bovary c'est moi".
Mas os escritores que conseguiram provocar uma identificação mais forte em mim foram Fernando Pessoa, com seu heterônimo Álvaro de Campos, e Caio Fernando Abreu. Em Álvaro de Campos eu encontrei uma espécie de alma gêmea, identificando-me com a sua busca pelas paisagens, vadiando pelos lugares, seu cansaço por sentir sensações extremas, o tédio profundo no choque com o mundo, a insônia, a ânsia, o sarcasmo... E meu poema favorito é Passagem das horas, um trecho:
Não sei se a vida é pouco ou demais para mim.
Não sei se sinto demais ou de menos, não sei
Se me falta escrúpulo espiritual, ponto-de-apoio na inteligência,
Consangüinidade com o mistério das coisas, choque
Aos contatos, sangue sob golpes, estremeção aos ruídos,
Ou se há outra significação para isto mais cômoda e feliz.
Seja o que for, era melhor não ter nascido,
Porque, de tão interessante que é a todos os momentos,
A vida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger,
A dar vontade de dar gritos, de dar pulos, de ficar no chão, de sair
Para fora de todas as casas, de todas as lógicas e de todas as sacadas,
E ir ser selvagem para a morte entre árvores e esquecimentos,
Entre tombos, e perigos e ausência de amanhãs,
E tudo isto devia ser qualquer outra coisa mais parecida com o que eu penso,
Com o que eu penso ou sinto, que eu nem sei qual é, ó vida.
Já Caio Fernando Abreu eu conheci recentemente, e digamos que ele foi meu companheiro de longas madrugadas de angústia. Digamos que Morangos mofados era a tradução literária do que estava acontecendo na minha vida. E quando li Os dragões não conhecem o paraíso e Triângulo das águas eu percebi que eu não lia Caio, não entendia, não racionalizava, eu simplesmente embarcava na loucura junto com ele. Uma escrita confessional que me levava, me puxava, me arrancava com palavras cruas. Caio parece querer dizer assim: não são apenas palavras, não são apenas emoções, não é apenas linguagem, é carne! Escrita do corpo! Foi quando eu encontrei no silêncio do apartamento, na tela do computador meio difusa pela madrugada, alguém que compartilhava de coisas que vivi. Trecho de Natureza viva, do livro Morangos mofados:
Mas já não sou capaz de me calar, talvez dirás então, descontrolado e um pouco mais dramático, porque meu silêncio já não é uma omissão, mas uma mentira. O outro te olhará com olhos vazios, não entendendo que teu ritmo acompanharia o desenrolar de uma paisagem interna absolutamente não verbalizável, desenhada traço a traço em cada minuto dos vários dias e tantas noites de todos aqueles meses anteriores, recuando até a data maldita ou bendita, ainda não ousaste definir, em que pela primeira vez o círculo magnético da existência de um, por acaso banal ou pura magia, interceptou o círculo do outro.
No silêncio que se faria, pensas, precisarás fazer alguma coisa como colocar um disco ou ensaiar um gesto, mas talvez não faças nada, pois ele continuará te olhando com seus olhos vazios no fundo dos quais procuras, mergulhador submarino, o indício mínimo de algum tesouro escondido para que possas voltar à tona com um sorriso nos lábios e as mãos repletas de pedras preciosas.
Quando leio palavras como as de Fernando Pessoa ou de Caio Fernando Abreu, eu sinto algo diferente do que ao ler escritoras femininas. Talvez tudo não passe de imaginação minha. Mas é como se neles a delicadeza tivesse alguma brutalidade que não vejo nas mulheres. Na verdade não sei direito verbalizar isso. Pra terminar sem conclusão nenhuma, só questionando, eu recorro a uma canção de Chico Buarque, que conseguiu com maestria se aproximar dos sentidos de uma mulher:
O meu amor tem um jeito manso que é só seu
Que rouba os meus sentidos, viola os meus ouvidos
Com tantos segredos lindos e indecentes
Depois brinca comigo, ri do meu umbigo
E me crava os dentes
Eu sou sua menina, viu? E ele é o meu rapaz
Meu corpo é testemunha do bem que ele me faz.
3 comentários:
Já tive uma larga discussão com Edilson, meu chefe, sobre esta brilhante capacidade do Chico Buarque em escrever como se fosse mulher e ficar genial... "Olhos nos Olhos", pro exemplo, é uma obra-prima de completa transmutação genérica, na voz de quem quiser que a cante...
Já comentei que tenho problemas com o caio, mas só li o "Morangos Mofados" por ora... Falta-me mais!
Se tu fores um leitor-macho, de fato, és 'gay', tanto quanto eu (risos), que me identifico com autores bem similares, mas puxo mesmo a saia para as mulheres que destacaste em teu texto... Se bem que a ousadia machadiana ou os traumas sociais do Lima Barreto mexem comigo como se eu próprio escrevesse, com toda modéstia desta identificação conteudística. É como se eu sentisse o que eles querem que eu sinta. Mérito macho para os dois!
Meu pai literário, entretanto, é 'gay' mesmo: ave, Jean Genet!
WPC>
eu ainda não entendo o que querem dizer com "mente masculina".
você poderia definir isso pra mim?
kkkkkk
Tatiana, não tens um mente masculina. O facto de gostares mais de autores masculinos é facilmente explicado por leis da probabilidade. Existem muito mais autores masculinos do que femininos.
hugo vinagre
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