sexta-feira, agosto 06, 2010

Sarcasmo acadêmico


Há um teórico de cinema americano que me faz rir muito enquanto o leio. O nome dele é David Bordwell, e ele escreveu um texto sarcástico ao extremo, Estudos de cinema hoje e as vicissitudes da grande teoria, em que ele detona estruturalistas, culturalistas, pós-modernos, pós-estruturalistas, franceses, americanos, enfim, quase todo mundo. Ao final ele defende uma tal de "pesquisa nível médio" que valoriza o problema de pesquisa em lugar da aplicação de doutrinas, e vai de encontro às chamadas "grandes teorias" que almejam uma concepção totalizante da sociedade, da cultura, etc etc. Esse texto está no livro Teoria Contemporânea de Cinema I, organizado por Fernão Ramos. Confira algumas pérolas...

Será preciso lembrar que a vida intelectual francesa estimula suas celebridades a adotarem posições controversas, por vezes até mesmo caricatas, e sujeitas a imprevisíveis reviravoltas? De modo geral, o pensamento humanístico francês é muito mais dominado pelo modismo e pela celebrização de seus expoentes do que os países de língua inglesa. Sem nenhuma ironia aparente, um semanário parisiense dirigido a um público médio pode muito bem lançar uma edição especial intitulada "O pensamento francês hoje", estampando em sua capa uma foto do pensador de Rodin debruçado sobre a pirâmide do Louvre, e anunciando artigos como "As palavras-chave", "As escolas e os círculos", "Os novos temas", "Quem pensa o quê?" e "Quem é quem nos 45 nomes de ponta". Um sociólogo observou, certa vez, que essa pomposa e narcisística frivolidade é precisamente o resultado das circunstâncias sociais nas quais se realiza o trabalho intelectual na França.

O apelo tão frequente à teoria continental implica ainda o problema da incompetência involuntária. São poucos os acadêmicos da área de cinema a dominar as línguas européias em que esses teóricos escrevem, e por isso os estudos contemporâneos de cinema dependem enormemente de traduções. Mas a sociologia e a psicologia alemãs do cinema, a teoria do cinema do Leste Europeu, e as semiologias italiana e escandinava permanecem sem tradução, e por essa razão os estudos de cinema anglo-americanos contemporâneos pouco se detêm sobre elas. Comparados a outras disciplinas acadêmicas, os estudos de cinema se mostram extremamente provincianos.
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Sejam quais forem as suas fontes, o pensamento atraído por doutrinas é um desestímulo à análise criteriosa de problemas e questões. Ao contrário, ele conduz a uma procura casual por ideias de segunda mão. É comum ouvir esse conselho de professores e seus alunos mais confusos: Por que você não usa 'fulano' nesta altura de sua análise?. Muitos acadêmicos da área de cinema acreditam ser mais conveniente recorrer à última tradução de um mestre francês (ou ao mais novo manual da Editora Rotledge) do que se envolver com pesquisa ou reflexão das questões em si mesmas.
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Guy Rosolato, um teórico da psicanálise, conversa com Raymond Bellour, um teórico do cinema. Rosolato observa que, para falar em detalhe a respeito de um filme, seria preciso analisá-lo congelando a imagem. Bellour responde: "Quer dizer que, se não pudermos re-ver um filme dessa forma, na prática ele não existe?". Em seguida, Bellour comenta que certos processos formais do cinema despertam a emoção , apresentando o retrocesso como exemplo:
Pouco importa o que o retrocesso de fato reconta, é de sua natureza produzir um choque emocional extremamente violento, pelo simples fato de remeter ao passado. Um amigo meu, certa época, tin ha uma relação um pouco perturbada com o seu passado, e os retrocessos tinham sobre ele um efeito quase que automático, pode-se dizer que era a sua forma, em si, que o fazia chorar.
Presume-se que os interlocutores desse diálogo queriam ser levados a sériop. (Afinal de contas, publicaram o diálogo). Mas a discussão é ininteligível, porque as conexões entre as ideias não satisfazem a nenhum padrão de inferência razoável. Rosalato afirma que, para que se possa discutir um filme com precisão, ele deve ser estudado cuidadosamente: que elementos isso fornece para a estupenda conclusão de Bellour de que, portanto, talvez o filme não exista?
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Sandy Flitterman-Lewis, por exemplo, em um relato recente da teoria da posição-subjetiva, afirma ser a metapsicologia de Freud um "modelo conceitual" que "resiste à verificação empírica". No entanto, Freud assim escreveu sobre sua metapsicologia:
Não se deve supor que estas ideias muito gerais sejam pressuposições das quais depende o trabalho da psicanálise. Pelo contrário, são suas conclusões mais recentes e estão abertas à revisão. A psicanálise está firmemente alicerçada na observação dos fatos da vida mental, e por essa mesma razão sua superestrutura teórica está incompleta e sujeita a constante alteração.

3 comentários:

Gomorra disse...

vOU CINFESSAR DE FORMA TÍMIDA, MAS... Eu até gosto do Bordwell (risos), mas não tinha prestado atenção nestes trechos até que estudei uma tal de uma pósinha em Filosofia aqui na UFS e entendi o porquê de esta briga besta com a tal da "filosofia continental"...

Coisa de análitico, coisa de gente viciada em Epistemologia, coisa que Jadson vai rir mais ainda! (WPC>)

tatiana hora disse...

realmente é risível, tanto que me papoquei de rir lendo.

tatiana hora disse...

ah
e eu adora a filosofia analítica de wittgenstein hehe
e um cara dos estudos culturais como stuart hall tb
vá entender...
e um monte de teóricos q bordwell critica nesse ensaio...
mas gosto do ensaio dele... gosto do modo como ele questiona usar um filme para aplicar uma teoria ao invés de usar uma teoria para desvendar um filme...