sexta-feira, agosto 06, 2010
A agulha
Quando dá oito da noite eu só penso em dormir. Essa vida de trabalhar o dia inteiro me consome. E sempre que chego da rua é a mesma odisséia: a pilha de pratos enorme na cozinha. É tanta sujeira, e eu só penso em matar a fome e depois dormir. Agora aqui nesse edredom eu me sinto tão bem depois de um dia inteiro de labuta, entrevistando algumas pessoas mal educadas, outras bem simpáticas, empurrando repórteres em coletivas, escrevendo de olho no relógio. Eu preferia escrever poesias e com calma, mas fazer o quê?
- Amor, por favor, costure essa camisa. - ele me pede.
- Já já eu faço isso.
Que dias frios, que vontade de permanecer na cama para todo o sempre, que edredom gostoso, mas acho que vou adoecer. O corpo mole, a garganta dói um tanto, o corpo quente. Espero não ficar doente, o clima no trabalho não está bom, qualquer coisa poderia ser uma desculpa para me botar pra fora. E não quero ter que ir ao médico, eu odeio ir ao médico.
Brigitte me arranha o braço com os olhos pidões, e eu sei que ela quer carinho. Minha cachorra é assim, ela demonstra afeto ferindo. Há pessoas que agem desse jeito também. Quando eu coço a sua cabeça, uma hora ela dá mordidinhas na minha mão. E pula na cama, e se deita ao meu lado, e até sente quando estou triste e respira de modo ofegante.
Eu olho pra Brigitte e lembro que eu decidi dar o primeiro passo criando um cachorro para depois ter um filho. Na verdade tudo começou com orquídeas. Comprei orquídeas, queria saber se eu ia conseguir cuidar delas direitinho. Mas não demorou muito para elas ficarem murchas. Nesse dia eu chorei bastante. Como poderia educar uma criança se nem ao menos sabia tomar conta de orquídeas?
Foi aí que eu ganhei a Brigitte de uma amiga. No começo acontecia de eu esquecer de lhe dar comida, água. E percebia ao ver Brigitte lamber o chão do banheiro em busca de água. Até que me acostumei. E lembro logo de lhe dar alimento. Mas ainda acho que não dou atenção suficiente à Brigitte. Então também seria assim com meu filho?
Às vezes eu me perco fitando as janelas do prédio que fica em frente ao meu. Engraçado que sempre há alguém em alguma janela. Há uma garota muito exibida no terceiro andar. Ela sempre troca de roupa com o vidro fechado, mas com as cortinas abertas. Dá pra ver tudo. E ela se veste bem devagar, peça por peça. Demora mais colocando o sutiã, sempre de costas para a janela. Meu marido costuma vê-la.
Vou dormir. Amanhã costuro a camisa de Bernardo.
Sabe quando você sonha e tem consciência de que está sonhando? É isso o que está acontecendo comigo. Eu estou nua de bruços sobre uma mesa e um velho homem chinês coloca agulhas no meu corpo. Há agulhas nos meus braços, nas minhas pernas, muitas agulhas. Nunca fiz acupuntura e sempre considerei uma técnica estranha. Também não ficaria nua assim para um desconhecido, do mesmo modo que prefiro ginecologistas mulheres a homens, pois jamais permitira que um homem que não conheço ficasse no meio das minhas pernas bulindo na minha buceta. É por isso que tudo não passa de um sonho.
Abro os olhos. Vejo Bernardo enfiando no meu braço esquerdo a agulha que seria para eu costurar a sua camisa.
- Isso é pra você aprender a fazer logo o que eu mando você fazer.
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4 comentários:
Ai, ai, Deus meu... Meu futuro de Amélia é bem parecido!
WPC>
ixe..
Wesley, eu já gravei seu filme do Godard.
mando por Nina.
não sei se foi o seu caso, acho que sim, mas eu tenho a impressão de que consigo falar melhor do que são os outros.
Caralho. gosto de contos assim onde a vida nõ dá brecha. o dia-a-dia tantas vezes pode parecer simples e daí para o fantástico acontecer é tão ráido e imperceptível...o texto capta isso: o fantástico recebido como a mais normal das coisas.
Parabéns!
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