A estrada fazia aquele barulho das pedras sendo machucadas pelos pneus do carro. Fazia tempo que eu não ia ao sertão. Aquele sol tostando a terra, aquelas plantas sofridas. Foi então que eu vi: a avó do meu amado, uma senhora de 70 e poucos anos, sacrificando um carneiro para nos oferecer. Ele dava os seus últimos gritos. Ela corria em nossa direção com a roupa e as mãos cheias de sangue, feliz com a nossa chegada e sem se importar com o sangue que manchava a sua roupa, pois era da sua oferenda.
Tomai todos e comei. Este é o meu corpo, que será entregue por vós - disse o padre na missa na igreja do interior, repleta de pessoas tão arrumadas para a grande ocasião da cidade.
O carneiro pendurado no teto da cozinha de cabeça para baixo e eu me sentia mal sempre que ia beber água. Eu, menina da capital, não estava afeita a esses costumes. Não comi carne naqueles dias.
No entanto, não deixei de me embrenhar por aqueles matos para trepar em cima de grandes pedras e por entre os galhos das folhas secas. Montava a cavalo em direção ao Velho Chico, subindo por estranhas elevações, aguentando tropeços do bicho, com a pele arranhada pelos espinhos da vegetação. Nas águas do Rio São Francisco, eu conheci a liberdade. A cada vez que jogava a água pra cima, a cada vez que mergulhava profundamente, a cada beijo que dava no meu amor, ao confundir seus cabelos com os cabelos do rio.
Eu o abraçava com medo de cair do cavalo. Não poderia montar, passava logo meu medo para o bicho. Meu amado não: estava sempre seguro sobre a cela, certo dos caminhos a percorrer. Talvez por isso o bicho podia até escorregar, mas nunca caía.
Com o meu amado, eu pude ver as estrelas do sertão. E o sertão é lugar onde se descobre o tamanho do universo, assim infinito de estrelas. Uma mão boba aqui, outra ali, disfarçadamente na rede da varanda da casa. "Vocês dois, venham jantar. Tem carneiro e cuscuz!".
O galo cantou e eu fui conversar com as galinhas que bebiam a água de barro como se mordessem milho. Ele me deu umas flores modestas de laranjeiras. No bilhete, um escrito: Não sou bom com palavras. Eu te amo.
Ele sempre teve vergonha de sua pouca intimidade com os vocábulos, com a prosa e a poesia.As vezes eu desejava secretamente que ele escrevesse mais, para poder ler seus versos para mim escritos. Mas em todo o seu cuidado ao massagear o meu ventre doído de cólica havia a mais bela poesia. E as nossas viagens eram prosas escritas nas páginas dos albuns de fotografias. As caixas em que ele guardava todos os meus bilhetes afetuosos eram como baús de livros. E descobri que poesia podia ser escrita com gestos.
Eu te amo: era tudo o que ele sabia me falar. E era tanto, mas tanto! Ele não sabe, mas foi o único verdadeiro amor da minha vida. Cantava e tocava ao violão sempre esta música para mim... Pois ele não sabia escrever poesias, mas entendia o que Tom Jobim e Vinicius de Moraes queriam dizer...
Eu sei que vou te amar
Por toda a minha vida eu vou te amar
Em cada despedida eu vou te amar
Desesperadamente, eu sei que vou te amar
E cada verso meu será
Prá te dizer que eu sei que vou te amar
Por toda minha vida
Eu sei que vou chorar
A cada ausência tua eu vou chorar
Mas cada volta tua há de apagar
O que esta ausência tua me causou
Eu sei que vou sofrer a eterna desventura de viver
A espera de viver ao lado teu
Por toda a minha vida
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