domingo, agosto 15, 2010

Unhas vermelhas

Eu não posso acreditar quando te vejo assim, Carlos. Você não tinha esses olhos saltando das órbitas magras, esses ossos de pele seca, essa boca caverna de moscas, essas mãos que não tocam, apenas se estendem doentes. E é por isso que eu choro toda vez que vou retirar os lençóis cheios de merda e urina enquanto você mal se mexe. É o ritual de todos os dias. Mover o seu corpo lentamente, puxar os lençóis, enrolá-los com a merda dentro, jogá-los no lixo no quintal. Não sei se você preferia estar morto a viver assim os seus penosos últimos dias.

Você não era assim. Onde está aquele homem que virava copos de cachaça igual fossem água, que ia a festas no interior se esfregar em mulheres tão fáceis quanto você, que falava mais alto que todos nas discussões sobre política, religião e futebol? E que por mais que dissessem que política e religião a gente não discute, sempre teimava a colocar tais assuntos em pauta... Onde está aquele homem robusto e bastante bonito, que chamava a atenção das empregadas domésticas, das advogadas, das amigas da esposa, da cunhada?

Agora você, meu irmão, se contorce com vergonha de estar nu para eu lhe dar banho. Menos pelo seu corpo nu, menos por eu ter de tocar no seu pênis, mais por não poder sequer lavar o próprio corpo, mais por cada gota d'água doer como a vida que chora a morte aos poucos pelo ralo. A prova de vida, sentir tanta dor. A prova de morte, sentir tanta dor...

E aqueles seus amigos que dividiram com você tantos engradados de cerveja, agora se recusavam a entrar no quarto quando viam como você estava. Que raiva que eu sinto, irmão! Quanto ódio! Poderia comprar uma arma para, a cada vez que alguém fizesse isso, atirar após fechar o portão da casa, e ver o infeliz ou a infeliz cair no chão de costas, afogando em sangue no meio da rua. Meu ódio me consome!

Quantas e quantas noites de vigília... E meu pequeno filho às vezes me acorda no meio da tarde, eu dormindo após uma noite em claro, ele puxa o meu braço com sua pequenina mão e aponta para o soro que eu devo trocar. Meu filho te ama tanto, irmão. Mais que todos os seus filhos! Esses passam tão pouco tempo ao seu lado quando vêm aqui... Não sei como ele irá reagir quando já não houver essas gotas de soro contando o tempo...

Já minha filha, ela não compreende. Não sei o que se passa na cabeça dela. Você morrendo aos poucos, e ela desrespeita meu luto de todos os dias ouvindo música, dançando no quintal, já disse que nessa casa ninguém pode ouvir música ou contar piadas, ou dar risadas... Ás vezes eu me sinto culpada por não sentir com você toda e cada dor que você sente! Por ter saúde, meu irmão, eu sinto culpa por ter saúde! Até que certo dia eu não aguentava mais as malditas músicas e danças da minha filha, e lhe gritei a verdade escondida: Tenha mais respeito! O seu tio está com câncer! CÂNCER, entendeu?

Ela, que sempre me perguntou o que você tinha, que insistia em dizer que você tinha câncer, e eu continuava dizendo que não... Quando eu gritei que você tinha câncer sim, ela derrubou o prato que lavava na pia e desembestou-se a chorar passando as mãos sujas de detergente na cara e com a torneira aberta escorrendo a água sobre o monte de pratos empilhados...

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Eu não acredito que tenho de aguentar este velório! Você não foi feito para que chorassem a sua morte. Queria que você virasse cinzas para jogar no mar... Não queria ver o seu corpo que eu tantas vezes dei banho agora assim vestindo um terno, arrumado para que te olhassem morto! Isso é tudo uma grande farsa! E quantos que se recusaram a entrar no seu quarto quando você estava doente agora choram junto ao seu caixão! Tantos me perguntam detalhes sobre sua doença e sua morte... Com que direito? Eu repito, com que direito? Eu só queria uma ilha, as suas cinzas lançadas no mar...

E quando me perguntam sobre o momento de sua morte, eu me lembro com tanta culpa! Meu irmão, no instante em que você deu o seu último suspiro eu estava pintando as unhas dos pés! Lembro de minha filha gritando no exato momento em que eu pintava de vermelho o dedo polegar do pé esquerdo! De vermelho, cor de puta! Cor de rapariga que sai para paquerar de noite... Eu entretida com minhas unhas vermelhas e você... Sabe-se lá o que você viveu na morte...

E agora penso sobre o enterro que eu queria para você, as cinzas lançadas no mar, enquanto fito as cinzas do meu cigarro juntando-se no cinzeiro... O cigarro que você pedia para dar um traguinho, mesmo padecendo na cama de câncer de pulmão...

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