terça-feira, janeiro 03, 2006

As paixões de Almodóvar


O universo almodovariano é permeado pelas cores de tons rubros, que no inconsciente coletivo estão relacionadas à paixão e à sensualidade. E a paixão é a lei que rege a vida de seus personagens, entregues à catarse de amores por divindades seculares, seres humanos a quem se atribuem a magia dos deuses.

Almodóvar não fala de amor, fala de paixão. Ele não traz aos nossos olhos personagens envolvidos na sutileza do amor maduro, e sim na obsessão da idolatria amorosa. Em A lei do desejo, o personagem Pablo fala: “O que mais adoro e o que mais odeio no amor são uma e a mesma coisa; o fato de tomar todo o meu tempo e todas as minhas forças”.

O amor de Almodóvar é vassalo, quando Benigno ama e cuida de uma mulher em coma em Fale com ela; é possessivo, quando Ricky amarra Marina na cama em Ata-me; é vingativo quando Antônio mata Juan, a verdadeira paixão de Pablo, em A lei do desejo. Esse amor dá e não precisa receber, ou às vezes exige o outro por inteiro, mas sempre ultrapassando os limites da adoração e se tornando de alguma forma destrutivo, fazendo aquele que ama perder partes de si num mundo onde o centro é o amante-deus.

Há momentos em que me pergunto se não seria essa a forma de o próprio Almodóvar lidar com o amor. Sim, já que seus filmes têm um tom autobiográfico, principalmente Má educação e A lei do desejo. Em ambas as películas o personagem principal é um diretor de cinema, e Almodóvar brinca com as coincidências, usando até a metalinguagem, como no filme dentro do filme, com limites por vezes imprecisos entre um e outro, em Má educação. Almodóvar lança-se descaradamente na tela, e ele mesmo chegou a dizer, até como estratégia de marketing, que conviveu com mais de quarenta meninos em um internato e foi abusado sexualmente por um padre assim como o protagonista de Má educação.

Em Almodóvar, o amor pode não ser maduro, mas também não é hollywoodiano. É bizarro na sua própria medida. Nos amores de Hollywood, há o encantamento do encontro, o êxtase dos desencontros, e a paixão eternizada nos créditos finais que interrompem o nascimento do tédio. Almodóvar nos brinda com seu mundo de bichas, mulheres neuróticas, héteros reduzidos a mínimas dimensões, perdidos dentro da vagina, ou da mente da mulher, como na clássica cena do filme preto e branco inserido em Fale com ela.

Almodóvar recorre ao exagero para mostrar a maturidade de suas reflexões. Ele dá uma bofetada nas nossas convicções ao mostrar uma mulher renascer de um coma logo após ser estuprada pelo perdidamente enamorado Benigno em Fale com ela. Diante de personagens e enredos tão esdrúxulos, encontramos algo de familiar na dimensão semântica do filme. Gentes que num primeiro momento podem parecer tão extraordinárias, mas na verdade são universais. Os amores de Almodóvar surgem como uma faceta para falar de nós.

Ilustração: Eusebio Poncela e Antonio Banderas em A lei da desejo.


Um comentário:

Anônimo disse...

tem épocas em que eu não suporto falar de amor.. as vezes me dá tanta raiva desse sentimento que eu.. que eu.. deixa pra lá

eu acho que sou uma dessas mulheres neuróticas de almodóvar. se ele tivesse xereca, com certeza ele teria me parido.

;/