sexta-feira, outubro 09, 2015

Que horas ela volta? (2015), Anna Muylaert



Não é à toa que a personagem Jéssica, no filme Que horas ela volta?, de Anna Muylaert, saiu de Pernambuco para ir à São Paulo prestar vestibular para Arquitetura. A personagem, apesar de não admitir, tem plena consciência das relações conflituosas entre mundos e de como elas se tecem a partir de distintos lugares e funções destinadas aos corpos – lugares e funções que ela recusa, em plena rebeldia dos seus 17 anos de idade. Ela estranha o fato de sua mãe, Val, morar na casa dos patrões, e assim que chega à residência sai explorando o espaço, pega o livro da estante da sala emprestado, senta na cama do quarto de hóspedes e acaba indo dormir lá, em vez de deitar no colchão no chão do apertado e quente quarto de empregada, considerado pela mãe o seu “cantinho”. E Jéssica é o elemento que perturba o equilíbrio anterior existente na narrativa, e seduz os integrantes de uma família burguesa para desintegra-la defronte suas vidas vazias e fúteis, tal como o visitante misterioso de Teorema, de Pasolini (guardadas as devidas distinções).

A forma como Val se relaciona com o espaço da casa dos patrões é totalmente distinta, e é assim que ela entende e aceita os códigos da subalternidade. Nas primeiras cenas, Val dá tudo na mão de seus patrões, que sequer se levantam para buscar comida na geladeira, e, tanto na cena em que ela serve “doutora” Bárbara, assim como quando coloca a mesa para “doutor” Carlos, a câmera se situa na cozinha, com o vão da porta separando a câmera da ação. O distanciamento entre os personagens criado através do enquadramento desenha o lugar ocupado de fato por Val: o de subordinada, apesar de Bárbara referir-se a ela como “alguém da família”, depois de dar uma flor para desejar boas vindas à sua filha. Esse enquadramento lembra aquele que em Santiago, de João Moreira Salles, separava o diretor do documentário e o personagem do filme, seu mordomo Santiago – modo de enquadrar que o diretor, numa guinada reflexiva, analisa como distanciado e revelador de uma relação assimétrica. Além disso, o quarto de Val localiza-se na parte inferior e sua janela dá de frente para uma parede com uma grade; num plano em que ela conversa ao telefone, o quadro enfatiza a grade de forma a estruturar o espaço do quarto de Val como uma prisão.

Já Jéssica se diverte com o fato de o filho dos patrões, Fabinho, e o seu amigo jogarem-na na piscina. Nessa cena, a água toma conta do quadro de forma a ganhar textura, a expressar sensações que o corpo de Jéssica era privado de sentir. Ato de desobediência que lhe custou caro; depois de almoçar com o marido da patroa na sala de estar, mergulhar na piscina junto com o filho foi o cúmulo. O desconforto cresce a tal ponto que em certo momento a patroa determina que, enquanto elas não arrumam uma casa para alugar, Jéssica só pode utilizar o espaço “da cozinha pra lá”. Na verdade, a restrição ao espaço “da cozinha pra lá” já era uma realidade para pessoas como sua mãe e ela, a insubordinação de Jéssica apenas “forçou” a explicitação da hierarquia.

Progressivamente, a personagem de Bárbara ganha contornos de vilã no filme. No entanto, há algo no âmbito dos afetos que torna patroa e empregada semelhantes. O sentido do título do filme vem numa cena em que Jéssica conta que, depois que a mãe foi embora para São Paulo, sempre perguntava para sua tia que a criou “que horas ela volta?”. A mesma pergunta que Fabinho, na primeira cena do filme, teria feito ainda quando criança à Val, na espera pelo retorno da sua mãe. Assim, o filme de Muylaert revela-se não apenas uma narrativa sobre classes, mas também sobre relações familiares. Não há ali apenas algo do “conflito de classes” a partir da banalidade cotidiana como em O som ao redor, de Kleber Mendonça (que desse filme se afasta pelo tom revanchista), ou da dualidade entre afetos e relações de dominação de Doméstica, de Gabriel Mascaro, mas também o melodrama e a narrativa sobre culpa e perda que vimos em Jogo de cena, de Eduardo Coutinho.


Após muitos anos de resignação, Val ousa molhar os pés na piscina enquanto dá os parabéns por telefone à sua filha por ter passado no vestibular. O ruído da água da piscina que ela faz questão de mostrar à filha por telefone mais uma vez dá textura às sensações que Val não podia ter. A filha promove uma transformação fundamental na personagem, que já não cabe no quarto de empregada nos fundos da casa. Ela vai morar junto com Jéssica e pede para cuidar do filho que ela deixou em Pernambuco. O seu “happy end” foi ter finalmente o seu próprio espaço, o da casa inteira, e não mais “da cozinha pra lá”.