Gosto de ler críticas depois que vejo um filme. E ontem, depois de rever Gladiador li algumas críticas e constatei que as principais reclamações em torno do filme diziam respeito a uma abordagem política pífia. Fato. No coliseu onde lutam os gladiadores diante do povo e dos senadores, há muito da mitologia democrática americana que retorna à Roma antiga com um herói que fala inglês e defende com todas as forças o fim do império e a consolidação da República. Mas o que mais me chamou a atenção no filme foram as disputas de poder que se instauram numa cena, e as relações entre o espaço da plateia e o do espetáculo.
A primeira sequência deste filme épico mostra a vitória de Maximus contra os bárbaros sob o olhar impávido do imperador Marcus Aurelius. A montagem justapõe dois espaços: o da luta de Maximus e o de seu observador, num jogo entre a cena e o espectador (jogo constante no espaço fílmico da obra em questão, como veremos adiante). Marcus Aurelius está próximo da morte, e termina escolhendo Maximus para sucedê-lo, com o objetivo de que ele torne Roma uma República. Mas o seu filho, Commodus, ao descobrir que o posto de imperador não lhe será transmitido, mata o pai. Toda essa sequência que mostra a decadência e morte do imperador apresenta uma belíssima composição de luz e cor. A paleta de cores apresenta a predominância do magenta e do azul acinzentado: o magenta, união das cores vermelho (o sangue e a violência), e azul (a virtude, o poder e a honra); e o cinza, que impregna o império com a decadência e a morte.
Commodus ordena a morte de Maximus que, no entanto, mata os seus algozes. Ele vai em busca de sua família para salvá-los, no entanto, ao chegar encontra a esposa e o filho mortos, queimados, pendurados na frente de sua casa. A montagem paralela reforça a tragicidade da cena ao unir a imagem do filho correndo pelo campo e gritando "papai!", acreditando que era seu pai quem estava chegando com a tropa, aos planos de Maximus correndo em busca de sua família.
Então, Maximus é encontrado e levado junto com homens escravizados, vendidos para serem gladiadores. O homem que os compra se auto-intitula um "entertainer", ou um "homem de entretenimento". Ele também havia sido gladiador, mas, após conquistar a plateia, teria conseguido a liberdade com um gesto do imperador Marcus Aurelius. Maximus, então, se dá conta do jogo estabelecido entre os dois espaços: o da cena e o da plateia, e, obedecendo aos brados do povo pedindo "Mate!Mate!", ele mata aqueles que cruzam o seu caminho na arena. Rompendo com a separação entre a cena enquanto um microcosmo, e a plateia enquanto o lugar da observação, ele lança uma espada para a plateia e grita: "Vocês estão se divertindo? Não é isso o que vocês querem?", tornando-se um verdadeiro show man. O seu inimigo, Commodus, como todo bom político totalitário, tem consciência da relação intrínseca entre o seu poder e o controle que exerce sobre a multidão. Por isso, em sua luta pela manutenção do Império contra a iminência da República, investe na conquista das massas através do fomento da política de pão e circo, oferecendo os espetáculos das lutas de gladiadores às multidões enérgicas e sádicas. Maximus, por outro lado, desafia aquele que matou sua família através do entretenimento das massas.
Lucius, o filho de Lucilla, a irmã de Commodus (este, obcecado pela irmã, vive sempre ansioso pelo incesto, não-realizado), se encanta pelas batalhas de gladiadores e tem Maximus como um herói, que na arena veste uma máscara e se chama Spaignard. O pai de Lucius provavelmente teria sido assassinado pelo ciumento cunhado. Quando Commodus decide encontrar o gladiador junto com Lucius para conhecer o gladiador que encanta as multidões e o seu sobrinho, ele descobre a verdadeira face de Maximus sob a persona criada para o público. Commodus pergunta o seu nome, e o gladiador responde que ele é Maximus, que servia ao verdadeiro imperador de Roma, e brada que ele havia sido assassinado pelo próprio filho. Eles, os espectadores do "teatro de gladiadores", não acompanham tudo isto; nós, espectadores de cinema, transportados para o interior da cena através dos mecanismos de projeção/identificação da decupagem clássica, estamos bem próximos da luta travada entre Maximus e Commodus. Para a próxima batalha, Commodus arma uma série de armadilhas para que Maximus morra na arena; no entanto, o gladiador vence diversos homens e ainda mata tigres. Ao final, abre mão de matar um dos seus adversários, e a plateia então brada: "Maximus, o piedoso!", ganhando, para infelicidade de Commodus, ainda mais prestígio junto às massas.
Então, Lucilla arma um plano para que Maximus lidere soldados para destituir o imperador, com o objetivo de que Gracco instaure uma República em Roma. Mas Commodus descobre a traição da irmã, tudo isso através da visão de uma cena. A montagem, mais uma vez, une os espaços da cena e da espectatorialidade. Lucius brinca de gladiador com uma espada, e brada que Maximus irá salvar Roma. Commodus assiste a toda a sua representação assombrado, e pergunta onde o sobrinho teria ouvido isto, descobrindo assim o plano de sua irmã.
Commodus mata os seus inimigos e prende Maximus, ferindo-o com um punhal para que ele lute contra ele diante do público, pois o seu único modo de matá-lo sem fazer dele um mártir era derrotando-o na arena. No entanto, mesmo cambaleando e ferido, Maximus vence e mata Commodus, e então morre. Nos seus últimos minutos de vida, o que obceca Maximus é uma imagem: uma porta fechada, um jardim, sua esposa esperando por ele, seu filho correndo ao seu encontro, o paraíso. A vidência da felicidade é a sua realização, a verdade do paraíso é essa imagem.
O filme finda com o amigo de Maximus, um negro escravo e gladiador, enterrando dois bonecos que representam o seu filho e a sua esposa, dizendo que agora é livre e um dia irá encontrá-los. O último plano é um travelling sobre o coliseu. A democracia, finalmente, se realiza, sob o estandarte do governo do povo e da liberdade. O sonho do imperalismo americano: os Estados Unidos, que defendem com unhas e dentes a mitologia democrática e seus princípios republicanos, por outro lado, se relacionam com o resto do mundo como um império. E Maximus, quer queira, quer não, conseguiu concretizar o sonho da democracia às custas do espetáculo, do poder exercido sobre as massas, ao modo do totalitarismo. E nós somos um pouco como a plateia que grita "Mate!" ao assistir às suas lutas. Não é isto o cinema americano dos blockbusters, enfim?