domingo, novembro 17, 2013

Gladiador (2000), Ridley Scott


Gosto de ler críticas depois que vejo um filme. E ontem, depois de rever Gladiador li algumas críticas e constatei que as principais reclamações em torno do filme diziam respeito a uma abordagem política pífia. Fato. No coliseu onde lutam os gladiadores diante do povo e dos senadores, há muito da mitologia democrática americana que retorna à Roma antiga com um herói que fala inglês e defende com todas as forças o fim do império e a consolidação da República. Mas o que mais me chamou a atenção no filme foram as disputas de poder que se instauram numa cena, e as relações entre o espaço da plateia e o do espetáculo.

A primeira sequência deste filme épico mostra a vitória de Maximus contra os bárbaros sob o olhar impávido do imperador Marcus Aurelius. A montagem justapõe dois espaços: o da luta de Maximus e o de seu observador, num jogo entre a cena e o espectador (jogo constante no espaço fílmico da obra em questão, como veremos adiante). Marcus Aurelius está próximo da morte, e termina escolhendo Maximus para sucedê-lo, com o objetivo de que ele torne Roma uma República. Mas o seu filho, Commodus, ao descobrir que o posto de imperador não lhe será transmitido, mata o pai. Toda essa sequência que mostra a decadência e morte do imperador apresenta uma belíssima composição de luz e cor. A paleta de cores apresenta a predominância do magenta e do azul acinzentado: o magenta, união das cores vermelho (o sangue e a violência), e azul (a virtude, o poder e a honra); e o cinza, que impregna o império com a decadência e a morte.

Commodus ordena a morte de Maximus que, no entanto, mata os seus algozes. Ele vai em busca de sua família para salvá-los, no entanto, ao chegar encontra a esposa e o filho mortos, queimados, pendurados na frente de sua casa. A montagem paralela reforça a tragicidade da cena ao unir a imagem do filho correndo pelo campo e gritando "papai!", acreditando que era seu pai quem estava chegando com a tropa, aos planos de Maximus correndo em busca de sua família.

Então, Maximus é encontrado e levado junto com homens escravizados, vendidos para serem gladiadores. O homem que os compra se auto-intitula um "entertainer", ou um "homem de entretenimento". Ele também havia sido gladiador, mas, após conquistar a plateia, teria conseguido a liberdade com um gesto do imperador Marcus Aurelius. Maximus, então, se dá conta do jogo estabelecido entre os dois espaços: o da cena e o da plateia, e, obedecendo aos brados do povo pedindo "Mate!Mate!", ele mata aqueles que cruzam o seu caminho na arena. Rompendo com a separação entre a cena enquanto um microcosmo, e a plateia enquanto o lugar da observação, ele lança uma espada para a plateia e grita: "Vocês estão se divertindo? Não é isso o que vocês querem?", tornando-se um verdadeiro show man. O seu inimigo, Commodus, como todo bom político totalitário, tem consciência da relação intrínseca entre o seu poder e o controle que exerce sobre a multidão. Por isso, em sua luta pela manutenção do Império contra a iminência da República, investe na conquista das massas através do fomento da política de pão e circo, oferecendo os espetáculos das lutas de gladiadores às multidões enérgicas e sádicas. Maximus, por outro lado, desafia aquele que matou sua família através do entretenimento das massas.

Lucius, o filho de Lucilla, a irmã de Commodus (este, obcecado pela irmã, vive sempre ansioso pelo incesto, não-realizado), se encanta pelas batalhas de gladiadores e tem Maximus como um herói, que na arena veste uma máscara e se chama Spaignard. O pai de Lucius provavelmente teria sido assassinado pelo ciumento cunhado. Quando Commodus decide encontrar o gladiador junto com Lucius para conhecer o gladiador que encanta as multidões e o seu sobrinho, ele descobre a verdadeira face de Maximus sob a persona criada para o público. Commodus pergunta o seu nome, e o gladiador responde que ele é Maximus, que servia ao verdadeiro imperador de Roma, e brada que ele havia sido assassinado pelo próprio filho. Eles, os espectadores do "teatro de gladiadores", não acompanham tudo isto; nós, espectadores de cinema, transportados para o interior da cena através dos mecanismos de projeção/identificação da decupagem clássica, estamos bem próximos da luta travada entre Maximus e Commodus. Para a próxima batalha, Commodus arma uma série de armadilhas para que Maximus morra na arena; no entanto, o gladiador vence diversos homens e ainda mata tigres. Ao final, abre mão de matar um dos seus adversários, e a plateia então brada: "Maximus, o piedoso!", ganhando, para infelicidade de Commodus, ainda mais prestígio junto às massas.

Então, Lucilla arma um plano para que Maximus lidere soldados para destituir o imperador, com o objetivo de que Gracco instaure uma República em Roma. Mas Commodus descobre a traição da irmã, tudo isso através da visão de uma cena. A montagem, mais uma vez, une os espaços da cena e da espectatorialidade. Lucius brinca de gladiador com uma espada, e brada que Maximus irá salvar Roma. Commodus assiste a toda a sua representação assombrado, e pergunta onde o sobrinho teria ouvido isto, descobrindo assim o plano de sua irmã.

Commodus mata os seus inimigos e prende Maximus, ferindo-o com um punhal para que ele lute contra ele diante do público, pois o seu único modo de matá-lo sem fazer dele um mártir era derrotando-o na arena. No entanto, mesmo cambaleando e ferido, Maximus vence e mata Commodus, e então morre. Nos seus últimos minutos de vida, o que obceca Maximus é uma imagem: uma porta fechada, um jardim, sua esposa esperando por ele, seu filho correndo ao seu encontro, o paraíso. A vidência da felicidade é a sua realização, a verdade do paraíso é essa imagem.

O filme finda com o amigo de Maximus, um negro escravo e gladiador, enterrando dois bonecos que representam o seu filho e a sua esposa, dizendo que agora é livre e um dia irá encontrá-los. O último plano é um travelling sobre o coliseu. A democracia, finalmente, se realiza, sob o estandarte do governo do povo e da liberdade. O sonho do imperalismo americano: os Estados Unidos, que defendem com unhas e dentes a mitologia democrática e seus princípios republicanos, por outro lado, se relacionam com o resto do mundo como um império. E Maximus, quer queira, quer não, conseguiu concretizar o sonho da democracia às custas do espetáculo, do poder exercido sobre as massas, ao modo do totalitarismo. E nós somos um pouco como a plateia que grita "Mate!" ao assistir às suas lutas. Não é isto o cinema americano dos blockbusters, enfim?

sexta-feira, outubro 18, 2013

Meu tio (1958), Jacques Tati

Os créditos iniciais de Meu tio apresentam os nomes dos integrantes da equipe de filmagem inscritos em placas numa fábrica, enquanto a trilha sonora traz ruídos de máquinas. Deste modo, neste filme em que Jacques Tati desenvolve uma sátira da vida mecanizada da classe média francesa, submetida ao reinado da técnica sobre as construções, objetos e até mesmo corpos, nem mesmo o cinema escapa da crítica do diretor. Jacques Tati nos lembra, logo de início, que o cinema, misto de arte e técnica, é uma arte que é também indústria e que, portanto, as imagens deste filme foram fabricadas no mesmo modo de produção dos produtos da fábrica Plastac, dirigida pelo Sr. Apler, chefe da família apresentada na obra.

A casa da família Apler é um cenário impessoal e frio, onde prevalecem as formas geométricas, as cores metálicas, os vasos com visual "moderno", e no entanto sem flores, além de muitos aparatos tecnológicos. Já a casa do Sr.Hulot, o tio que dá nome ao filme, é uma simples residência localizada num cortiço num bairro pobre, onde vemos feiras, cachorros vira-latas e vendedor de doces. É lá onde o menino Gérard, filho do casal Apler, tem seus momentos de diversão, até voltar para casa todo sujo, tendo que limpar os pés muitas vezes antes de entrar em casa.

A crítica à vida mecanizada empreendida por Jacques Tati é feita especialmente através do trabalho da direção de arte, realizada por Henri Schmitt. Em Meu tio, o que vemos é uma verdadeira casa-máquina: a Sra.Apler aperta um botão parar abrir a porta da frente, e em seguida liga um chafariz, que tem um formato de peixe, para impressionar as visitas (mas, em certo momento, ao ver que quem tocou a campainha foi o feirante, ela automaticamente desliga o chafariz, revelando uma clara distinção social através do cenário); numa cena, a Sra.Apler prepara o jantar de Gérard tendo à sua disposição todo um maquinário na cozinha, apenas para entregar ao seu filho um ovo cozido e um sanduíche, enrolado num plástico, o que ressalta a artificialidade do ambiente e das relações; em outra cena, a Sra.Apler mostra o presente de casamento ao seu marido: uma porta de garagem que se abre através de um censor - no entanto, após o cachorrinho de estimação passar na frente do censor, o casal fica preso na garagem, de modo que Jacques Tati ridiculariza os indivíduos que se tornam reféns da própria técnica.

Ao final, o pai enciumado manda o tio para o interior, longe do sobrinho, após as tentativas desastrosas de tornar Hulot um "homem exemplar", e assim o pai redescobre a espontaneidade infantil fazendo peraltices com o filho na fábrica. Ao recorrer a um humor simples e ingênuo, e, no entanto, muito ácido e sagaz, Meu tio é permeado por uma exaltação de uma espécie de devir-criança, de uma vontade de tornar-se menor, como tática para se contrapor à racionalidade técnica que domina a vida humana.

As pessoas pensam sempre em um futuro majoritário (quando eu for grande, quando tiver poder...). Quando o problema é o de um devir-minoritário: não fingir, não fazer ou imitar a criança, o louco, a mulher, o animal, o gago ou o estrangeiro, mas tornar-se tudo isso, para inventar novas forças ou novas armas.
Diálogos, Gilles Deleuze e Claire Pernet.