sábado, setembro 04, 2010

O homem urso (Grizzly Man, 2005), Werner Herzog



Eu sou uma presa fácil
Timothy Treadwell

Os documentários que abordam a vida animal exibidos em canais como Animal Planet ou Discovery Channel apresentam um objetivo muito claro: representar o universo dos animais a partir de um cirúrgico olhar científico que se posiciona de modo distante do seu objeto de estudo e com pretensões de um conhecimento total. Mas neste documentário de Werner Herzog o cineasta nos apresenta um homem completamente envolvido com os ursos que se dedica a filmar, e O homem urso termina sendo um filme sobre um documentarista.

Na pesquisa antropológica, há um termo que designa um limite na conduta adequada durante a realização de uma etnografia: going native. Após um certo período de inserção num determinado ambiente que se pretende estudar, o antropólogo deve se afastar a tempo de não passar a ser um deles. E é justamente isso o que aconteceu com Timmy, o ecologista a quem o filme é dedicado. Ele se tornou um urso. Ou, na verdade, queria se transformar em urso e terminou sendo devorado por um.

E é aí onde eu entro como espectadora apaixonada por este filme. Acho que Timmy é um dos personagens que mais me encantou em toda a minha história do cinema. Eu me identifiquei completamente. Um homem que se apaixonou pelos ursos e que queria viver no seu habitat. Mas o lugar dos ursos não era o lugar dele. Um amor tão grande por algo, que em certo momento esse algo te devora. Há uma frase dele que adorei: eu sou uma presa fácil. E ele tinha uma ilusão de harmonia num mundo em que, natural ou não, impera o caos e a hostilidade, como afirma Herzog no filme.

Herzog, inclusive, está sempre metendo o bedelho nas imagens filmadas por Timmy. Ele está ali o tempo inteiro dizendo que pensa diferente. Como quando, diante da imagem do cadáver de uma fêmea de urso estraçalhada por não servir mais à procriação, argumenta sobre uma espécie de agressividade, predação, desequilíbrio inerente ao mundo, a qual Timmy era incapaz de perceber. Para Timmy, essa desarmonia existia somente na civilização e na interferência destruidora que ela exercia sobre a Natureza, ou o seu paraíso.

Outro momento, belíssimo por sinal, em que Herzog intervém nas imagens captadas por Timmy é quando ele afirma em voz over que havia sublimes instantes de ausência de ação, da não-presença do personagem Timmy que repetia obsessivamente as suas aparições no video como um ator, em que a realidade parecia querer se sobressair na imagem. Nesse momento, Timmy havia saído de quadro, e o que nos resta são as plantas se movendo de acordo com o vento, o invisível manifestado na imagem. Aquela duração de que fala Deleuze em A imagem-tempo: uma duração própria da poesia da realidade contida em imagens óticas e sonoras puras, opsignos e sonsignos, um cinema de vidente e não mais de ação. Mais além: temos um ponto de vista a partir do qual a representação é produzida, mas ninguém filma, a câmera havia sido abandonada sobre as pedras por Timmy.

Mas se o real parece sempre resguardar seu lírico mistério cristalizado na imagem, há também a dimensão do irrepresentável. Os homens que mataram o urso que devorou Timmy encontraram dentro dele não só pedaços do corpo dele e de sua companheira Amie, como também a câmera, conseguindo preservar o áudio do instante da morte dos dois. Vemos um homem narrar o que ele imagina que aconteceu após ouvir o áudio daquele trágico momento. E, se Jacques Aumont afirma que é difícil imaginar no cinema um som fora de campo, Herzog torna isso possível quando vemos o próprio cineasta com os fones no ouvido escutando atentamente os sons da morte de Timmy e Amie. E o diretor não o mostra: ele reconhece que existe uma dimensão do irrepresentável.

Resta-nos só o mistério da realidade. O imprevisível, o inefável e até mesmo um misticismo religioso existente no filme de Herzog que revela a sacralidade no que há de mais visceral. E Herzog nos mostra duas amigas de Timmy jogando suas cinzas no parque ecológico onde ele foi morto, no meio de uma paisagem etérea, como se elas lançassem não suas cinzas, mas seu espírito.

2 comentários:

Pseudokane3 disse...

Li somente os parágrafos ímpares (visto que não vi o filme ainda e sou influenciável), mas foi o suficiente para me ver encantado diante de sua paixão espectatorial, do excelente uso da citação deleuziana, do apelo ao Herzog genial de outrora... Ainda não vi sequer O SOBREVIVENTE (está aqui em casa faz tempo, mas tenho receio) e fiquei com gosto de gás no que tange à vontade de ver esta jóia que descreveste de forma tão pessoal... Quero... Vou ver se acho!

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Unknown disse...

esse filme é impressionante..

bjão!