Se, de acordo com Nelson Brissac Peixoto, as cidades são as paisagens contemporâneas, as paisagens urbanas se revelam de forma afetiva através da arte. Mais especificamente, o lugar dos documentários poéticos, desde as vanguardas das primeiras décadas do século passado, é o espaço urbano. Poderíamos citar vários exemplos, como Berlim, sinfonia de uma metrópole (1926), de Walter Ruttman, Apenas as horas (1926), de Alberto Cavalcanti, ou Chuva (1929) e A ponte (1928), ambos de Joris Ivens. Assim, os documentários poéticos desvendam as imagens esquecidas pelo nosso olhar cansado, preso a uma rotina atribulada, ou mesmo propõe imagens que divergem daquelas do sensacionalismo midiático e da efemeridade dos ícones publicitários.
Sempre vinculado a certa marginalidade do capitalismo em seus filmes, Jem Cohen lança um olhar de flâneur sobre a cidade através da perspectiva de um trabalhador, um vendedor ambulante que descobre na invisibilidade de sua condição social (ele se torna invisível para os passantes situado detrás de seu carrinho), o mistério das coisas, das pessoas, dos lugares da cidade. Tudo isso após ler um livro de bolso que obtém junto a outro vendedor ambulante, que sequer fala a mesma língua.Um homem, um livro perdido, a poesia das paisagens urbanas reencontrada nas imagens do documentário poético.
Todo o documentário é conduzido pela voz over que, muito longe de produzir um relato sociológico, oferece uma perspectiva íntima e confessional da relação desse homem com a cidade. Lugar de arranha-céus, de vitrines, da sujeira das sacolas de plástico pelas ruas, dos mendigos dormindo nas calçadas, de pessoas que dormem no trem. Uma câmera que, se olha para cima, para o topo dos altos edifícios, também tenta penetrar vitrines e mesmo investigar esgotos. Câmera que percorre o céu e o chão da cidade. Câmera que às vezes se assemelha às câmeras de vigilância, ou às vezes parece o olhar de um observador qualquer.
E se Michel de Certeau acredita que os habitantes da metrópole produzem práticas de espaço em suas caminhadas, transformando lugares homogêneos em espaços incertos e construídos na indeterminação, é possível olhar para essa geografia cinematográfica produzida por Jem Cohen como um relato de espaço, desse de que Certeau fala como sendo uma produção e eterna reinvenção da cidade de um pólo a outro de suas extensões. Metaphorai são como os gregos chamam seu transporte coletivo – e Certeau nos revela que nossas metáforas sobre o espaço urbano são também construtoras de cidade. Destarte, Jem Cohen finaliza o seu média-metragem com planos de pessoas comuns olhando para a câmera, estes que em seus caminhos incertos desenham múltiplas cidades.
Um comentário:
Repito o que já disse antes: a vontade de ver (ou ouvir) algo do Jem Cohen é algo que queima como fogo ardente dentro de mim!
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