quarta-feira, fevereiro 09, 2011

Ciclope

Há pessoas cujos pontos de vista são deveras limitados. Tais pontos de vista são marcados pelo preconceito e a intolerância. E é sobre isso e outras coisas que fala o décimo segundo capítulo de Ulisses, de James Joyce. Na Odisséia, de Homero, Odisseu é aprisionado por Polifemo, um gigante de um olho só. Já em Ulisses o gigante de um olho só é uma metáfora para o Cidadão, personagem sem nome que tem um desentendimento com Leopold Bloom, e o ofende por ser judeu. O Cidadão detesta os povos estrangeiros que habitam a Irlanda e trava um intenso debate com Bloom sobre o que é Nação. O ápice da discussão acontece quando Leopold Bloom afirma que homens como Marx, Espinoza e Jesus Cristo eram judeus.

- Deus de quem? - diz o cidadão.
- Bem, seu tio era um judeu - diz ele. - Seu Deus era um judeu. Cristo era um judeu como eu.

Nossa, o cidadão deu um mergulho dentro da loja.

- Por Cristo - diz ele - eu vou partir o crânio desse maldito judeu por usar o santo nome. Por Cristo, eu vou crucificá-lo, sem dúvida que vou. Me dêem aqui essa caixa de biscoito.

No momento em que o Cidadão lança um biscoito na cabeça de Leopold Bloom, James Joyce introduz, sarcasticamente, a narração de um distúrbio císmico.

A catástrofe foi terrível e instantâneo o seu efeito. O observatório registrou ao todo onze choques, todos do quinto grau da escala de Mercalli, e não há registro existente de um distúrbio sísmico semelhante em nossa ilha desde o terremoto de 1534, o ano da rebelião de Silken Thomas.

Esse capítulo, por sinal, é narrado por um estranho narrador, desconhecido na verdade, que conta as peripécias em primeira pessoa, uma tremenda ousadia estética do James Joyce.

Num pub, Alf Bergan, Joe e Bob Doran começam a ler cartas, até quando Joe comenta sobre a morte de Paddy Dignam e Alf, assustado, afirma que o havia visto há pouco. Logo após essa parte, James Joyce introduz descrições sobre um universo sobrenatural.

Indagado por meio de seu nometerrestre quanto ao seu paradeiro no mundocelestial ele declarou que estava agora a caminho do prãlãyã ou retorno mas ainda estava submetido à prova nas mãos de entidades sedentasdesangue nos níveis astrais inferiores. Em resposta à pergunta quanto às suas primeiras sensações para lá das fronteiras do além ele declarou que previamente ele tinha visto como se num espelho obscuramente mas que aqueles que já tinham passado para o outro lado tinham possibilidades máximas de desenvolvimento átmico à disposição deles. Indagado se a vida ali se assemelhava à nossa experiência corporal ele declarou que ouvira de seres mais favorecidos agora em seu espírito que suas habitações eram equipadas com todo o conforto de uma casa moderna (...)

Uma carta lida por Joe no pub era uma redação impressionante. Havia sido escrita por Rumbold, um carrasco que havia escrito ao xerife de Dublin oferecendo seus serviços e afirmando ter uma excelente técnica para amarrar o nó do réu. Ao que James Joyce introduz a narração de um dia em que Rumbold enforcou um homem...

Tranquilamente, despretensiosamente Rumbold subiu ao patíbulo num traje matinal impecável e usando sua flor favorita, a Gladiolus cruentus. (...) A chegada do carrasco de renome mundial foi saudada por um estrondo de aclamação da enorme multidão (...)

Após ler esta carta, Joe e os demais colegas entram numa discussão sobre o que ocorre aos homens durante o enforcamento: dizem que eles tem uma ereção. Esta seria a contradição máxima entre morte e vida, entre libido e a falência dos sentidos, mas que Leopold Bloom descreve em termos meramente biológicos.

Agora parto para o 13° capítulo, que se inicia com uma frase deliciosa: A tarde de verão começara a envolver o mundo num misterioso abraço.

3 comentários:

Boca da Noite disse...

Nunca li James, nunca, apenas assim, coisas dele que vejo na internet, trechos. Pois bem, essa parte que tu escreveste no final falando sobre a chegada do carrasco de renome mundial em que a as pessoas o recepciona com estrondosa saudação me fez recordar de Dostoievsk na obra O Idiota.
Lá o herói da trama Pincipe Liev Miquin está na França na casa de um médico tentando se curar de sua languidão e conta que vi algumas pessoas serem guilhotinadas quando retorna a Rússia Surge então juntamente com outro interlocutor a seguinte indagação sobre a forma de aniquilar vidas na citada cidade, “morrer na guilhotina é menos dolorido, maldoso?” A premissa era positiva, mas Liev discorda e diz que viu as faces extremamente torturadas pelo receio, medo, aterrorizadas pelo apocalíptico momento antes e após o golpe da lamina incrível. Mas olhando, com um olhar poeta a morte de Rumold fora sem dúvida charmosa, impecável com flores gladíolos.

tatiana hora disse...

nunca li O idiota, mas tenho vontade, e esse trecho que você citou é particularmente interessante.
abraços!

. disse...

"A tarde de verão começara a envolver o mundo num misterioso abraço."


que frase linda!