quarta-feira, novembro 17, 2010

Fragmentos sobre um filme de Tarkovsky


Hoje revi Nostalgia (1983), de Tarkovsky. Trata-se de um daqueles filmes que se tornam mais prazerosos da segunda vez, dado que passam a ser mais compreensíveis. Alguns pensamentos que tive a respeito do filme...

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Um filme que aborda a relação nostálgica de seus personagens com a sua "terra de origem", trazendo à tona uma espécie de diáspora. Lembremos que estamos na fase de exílio de Tarkovsky, pois esse diretor não tinha boas relações com o estado soviético, portanto, existe uma clara identificação entre a trajetória do cineasta e a dos seus personagens. O poeta Andrei Gorchakov vai à Itália em busca de dados biográficos de um músico russo, Sosnovsky, que passou uma temporada em Bolonha, e acabou retornando à Rússia por amor a uma escrava russa, mesmo sabendo que chegando lá se tornaria um escravo. Temos também Eugenia, que diante das paisagens italianas por diversas vezes relembra a cidade de Moscou. Eugenia conta também a história de uma serva que matou os senhores e se suicidou pelo ódio que tinha por não poder regressar à Calábria.

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As escolhas estéticas de Tarkovsky, como era de se esperar, divergem absolutamente da linguagem clássica. Em nenhum momento do filme ele se vale do manjadíssimo campo/contracampo. Para filmar uma conversação, em lugar do campo/contracampo, a câmera mostra apenas um dos personagens envolvidos num diálogo, ou se detém em plano geral enquadrando ambos.

Outra ousadia estética de Tarkovsky seria a temporalidade e a montagem que por vezes segue de modo cinematográfico os princípios da técnica literária do fluxo de consciência, adotada por autores como James Joyce e Virginia Woolf. Afinal, Tarkovsky vai além de mostrar o passado dos personagens - sua estética sugere que estamos em contato com o inconsciente dos personagens, ou da sua memória involuntária. Além disso, o diretor se utiliza de variações cromáticas ao adentrar no universo do sonho ou da lembrança, recorrendo a tons acobreados ou ao preto-e-branco. De repente, nós vemos a encenação do momento em que o filho de Domenico foge dos seus braços, e finalmente se senta numa escada para contemplar o mundo. Câmera lenta, preto-e-branco. O menino olha para o pai. A imagem fica colorida. Diante da paisagem, ele pergunta: "é o fim do mundo, papai?". Domenico havia prendido a família durante sete anos acreditando que o fim do mundo estava próximo...

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Domenico encena um dos momentos mais arrebatadores do filme. É quando ele sobe numa suntuosa estátua de algum herói sobre um cavalo para se suicidar em público. A câmera realiza um travelling vertical para cima, assenta diante da imagem de Domenico de costas tendo ao fundo enormes estátuas de deuses. Em plongée é possível ver pessoas na escada, hipnotizadas, que vieram presenciar o espetáculo. Antes de atear fogo ao próprio corpo, Domenico brada: "Vocês nos chamam de loucos e nos isolam dos sãos.. mas foram vocês, sãos, que levaram o mundo à catástrofe". Por fim, Domenico, que tanto temia o fim do mundo, realiza o seu apocalipse. E vemos os policiais avançando sobre as escadas cheias de pessoas - do ponto de vista inverso ao da célebre cena da escadaria de Odessa, realizada por outro cineasta russo, Eisenstein, em O encouraçado Potenkim. Não por acaso essa cena de Nostalgia é realizada na antiga capital de um dos maiores impérios da história da humanidade: Roma, capital do império romano. Uma cena mítica, que está ali para destronar impérios...

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O historiador Eric Hobsbawn se refere ao século XXI como "a era das catástrofes". Não por acaso: Primeira e Segunda Guerra Mundial, holocausto, Guerra Fria... "Mas foram vocês, sãos, que levaram o mundo à catástrofe!", grita Domenico.

Assim como constataram Adorno e Horkheimer em A dialética do esclarecimento, a grande contradição do iluminismo consiste no projeto da modernidade baseado na razão e tendo o progresso tecnológico como impulso que conduziria a humanidade a um futuro melhor. Mas a razão instrumental levou o conhecimento a servir a fins econômicos, e a tecnologia de produção em massa encontrou o seu auge na produção industrial durante a guerra. A catástrofe da modernidade! O progresso conduziu à guerra pelo novo império, o império no tempo do capitalismo...

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O plano final, de Andrei estático situado ao centro do quadro tendo uma paisagem bucólica como fundo, demonstra um diálogo com a pintura. A busca pela imagem na duração, no transcorrer do tempo. Como nas fotografias descritas por Walter Benjamin, aquelas antigas fotografias em que o modelo vivia o instante, inseria-se na duração, dado que as películas tinham pouca sensibilidade à luz e as fotos demoravam a ser tiradas. Essas primeiras fotografias obrigavam os modelos a viver aquela duração típica da pintura, quando eles aguardavam os pintores pintarem a sua imagem durante horas...

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No começo do filme, Eugenia sai em busca da paisagem que a lembra Moscou. Andrei afirma se irritar com a busca incessante de Eugenia pela beleza.

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Diante da disseminação generalizada da imagem pela publicidade, um retorno à beleza kantiana. As imagens que esperam. É também isso o que sugerem, no diálogo com a pintura, filmes como L'Hypothese du tableau volé (1979), Raoul Ruiz, e Caravaggio (1986), de Derek Jarman, analisados por Fredric Jameson em As transformações da imagem na pós-modernidade. Jameson defende nesse ensaio a necessidade de uma arte utópica, indo de encontro à noção de "fim da história".

Mas o que vemos é o suicídio de Domenico e de Andrei, o desespero concretizado. E o paraíso é o belo "quadro" de Andrei imerso no cenário idílico da sua infância. O sonho do retorno ao seu "lugar de origem".

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Todavia, será que Eugenia está no filme para se rebelar diante da arte aurática? Eugenia defende a impureza da arte: ela afirma que um tradutor é um poeta, um criador, enquanto Andrei recomenda que ela leia apenas o original. E ela se revolta diante de Andrei: "você não quer mulheres como eu! você só quer Nossas Senhoras!". A quebra da aura é, afinal, uma profanação!

Um comentário:

Gomorra disse...

Rever este filme deve ser mesmo uma experiência mágica... E, para além da explosão ignea de encanto e supremacia na cena em que o Domenico protesta contra o vazio estético contemporãneo, de fato, esta negação do campo/contracampo rende belíssimos exemplos de relação amorosa em que o diálogo transcende... Enquanto um fala, o outro caminha e deambula e vê e enxerga, sendo cada um destes verbos diferentes do anterior...

Filme lindo, que, sendo revisto torna-se bem mais acessível e prenhe de reivindicação poética comno disseste. Dica mais do que anotada!

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