quarta-feira, outubro 13, 2010

A cegueira da visão


No livro Paisagens urbanas, Nelson Brissac Peixoto cita um fotógrafo esloveno, Evgen Bavcar. O que me chamou a atenção foi o fato de Evgen Bavcar ser um fotógrafo cego - perdeu a visão aos 12 anos, após sofrer dois acidentes. Bavcar faz suas fotografias numa posição contra o vento, e assim o vento desenha os contornos das coisas tateando o seu corpo. Ao que Nelson Brissac, um daqueles raros acadêmicos que escrevem poeticamente para nos seduzir, afirma:

Vidente é aquele que enxerga no visível sinais invisíveis aos nossos olhos profanos. O cego recorre à lembrança, à sensibilidade, a várias descrições. Um modo polifônico de ver, composição de todos esses olhares. Dá voz a todos eles. Desloca o olhar retiniano da sua centralidade convencional, multiplicando os pontos de vista. Passa do olhar à visão.

Lembrei-me de Alfredo Bosi. Citando Santo Agostinho, Bosi mostra que o santo afirmara que a visão é o mais espiritual dos sentidos. Como se houvesse algo de muito profano no tato, no paladar, até mesmo na audição. E Bosi declara em O ser e o tempo da poesia:

A experiência da imagem, anterior à da palavra, vem enraizada no corpo. A imagem é afim à sensação visual.(...) A imagem é um modo de presença que tende a suprir o contato direto e a manter, juntas, a realidade do objeto em si e a sua existência em nós.

Bavcar descobre no corpo a luz, na luz a lembrança, na lembrança a obra de arte. O seu modo ver é o da poesia, assim como a figura de linguagem da sinestesia, essa metáfora que expande os sentidos - o significado e os sentidos.

Mas como poderemos saber se o dispositivo representa a sua imagem interior? Ora, mas tantas vezes nossas fotografias de pessoas que enxergam não são tão distintas daquelas que imaginamos, não são uma surpresa para nós, ou o que Walter Benjamin chamou de inconsciente óptico em Pequena história da fotografia?

Esta imagem de Bavcar logo acima traz o sacro e o profano contidos num instante. E não são tantas as religiões dedicadas ao culto à imagem? Culto esse tantas vezes visto como o pecado de não adorar o verdadeiro deus.

E não estamos repletos de deuses nas nossas memórias? Disse Alfredo Bosi:

A imagem amada, a temida, tende a perpetuar-se: vira ídolo ou tabu. E a sua forma nos ronda como doce ou pungente obsessão.

Um comentário:

Pseudokane3 disse...

Puxa, surpreendente descoberta (tardia, mas a tempo) este fotógrafo esloveno. Quero-o para mim!

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