- Marthe, ele foi seu amante?
- Sim -disse ela- Mas estou interessada no filme.
Naquele dia, Mersault começou a apegar-se a Marthe. Ele a conhecera há alguns meses, atraído por sua beleza e por sua elegância. Um rosto um pouco largo, mas regular, os olhos dourados, e os lábios tão bem pintados que ela parecia alguma deusa de rosto desenhado. Uma tolice natural que brilhava nos seus olhos acusava, ainda, seu ar longíquo e impassível. Até agora, a cada vez que Mersault tinha com uma mulher os primeiros gestos decisivos, consciente da desgraça que determina que o amor e o desejo se expressem da mesma forma, ele pensava no rompimento antes de ter estreitado esse ser em seus braços. Mas Marthe acontecera num momento em que Mersault se liberava de tudo e de si mesmo. A preocupação de liberdade e de indiferença só é concebível num ser que ainda vive de esperança. Naquela época, para Mersault, nada contava. E, na primeira vez em que Marthe se descontraiu nos seus braços e que ele viu, nos traços que a proximidade tornara suaves, os lábios até então imóveis como flores pintadas, animarem-se e oferecerem-se a ele, não vislumbrou o futuro através dessa mulher, mas toda a força de seu desejo fixou-se nela e encheu-se com essa aparência. os lábios que ela lhe estendia pareciam-lhe a mensagem de um mundo sem paixão e inflado de desejo, em que seu coração se teria satisfeito. Isto ele sentia como um milagre. O coração batia com uma emoção que quase confundiu com o amor. E, quando sentiu a carne cheia e elástica sob os dentes, foi uma espécie de liberdade selvagem que mordeu furiosamente, depois de tê-la acariciado com os próprios lábios durante muito tempo. Tornou-se sua amante naquele mesmo dia.
A morte feliz, Albert Camus
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