Com alguma dor então Lóri percebeu que Ulisses, apesar de dizer o contrário, não queria se dar a ela. E ela pagaria com a mesma moeda. Talvez antes de ele falar, ela tivesse a intenção de um dia dar-se, pois sabia que teria de dar a alguém o que ela era, senão o que faria de si? Como morrer antes de dar-se, mesmo em silêncio? Porque no dar-se teria enfim uma testemunha de si própria. E porque Ulisses também teria pensado na morte, ele disse:
- Antes de morrer se vive, Lóri. É uma naturalidade morrer, transformar-se, transmutar-se. Nunca se inventou nada além de morrer. Como nunca se inventou um modo diferente de amor de corpo que, no entanto, é estranho e cego e no entanto cada pessoa, sem saber da outra, reinventa a cópia. Morrer deve ser um gozo natural. Depois de morrer não se vai ao paraíso, morrer é que é o paraíso.
Ficaram em silêncio muito tempo, um silêncio que não pesava. Até que ele, como se quisesse lhe dar alguma coisa, disse:
- Olhe para esse pardal, Lóri - mandou ele - não pára de ciscar o chão que aparentemente está vazio mas com certeza seus olhos vêem a comida.
Obediente, ela olhou. E de súbito eis que o pardal alçou vôo, e na surpresa Lóri esqueceu-se de si própria e disse como uma criança para Ulisses:
- É tão bonito que voa!
Falara com a inocência que usava nas aulas com as crianças, quando não temia ser julgada. Inquieta então olhou rápido para o lado de Ulisses. Ele a olhava. Com um susto Lóri notou: era um olhar... de amor?
O livro dos prazeres, Clarice Lispector
Imagem: Ulisses e as sereias, de Herbert Draper
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