Certa vez estava eu num ônibus de madrugada, e um menino de uns 14 anos entrou pela parte de trás do veículo. O cobrador mandou o rapaz descer, e ele simplesmente se sentou. O motorista parou o veículo sob ordem do cobrador, que se levantou de sua cadeira e foi até o menino gritando você não pagou a passagem, seu vagabundo, filho da puta, e o empurrou escada abaixo.
Eu me assustei com a cena, então olhei para trás e percebi que só havia eu de passageira. Ouvindo a música do silêncio do ônibus se movimentando na madrugada cheia de ventos vazios, comecei a pensar sobre o fato. O que levava um homem que recebe um salário de fome a lutar com unhas e dentes pela empresa para qual trabalha?
Pensei na ausência de consciência de classe. Ele não reconhecia que era explorado pela empresa e não via o menino como integrante de uma mesma classe dominada. Depois refleti melhor. O cobrador não lutava pela empresa, ele fazia um espetáculo para se sentir semelhante aos que o exploram.
Uma das formas que os dominados têm para uma quimérica insurreição é imitar o dominador. Essa é a maneira de eles se sentirem legítimos, e, assim, muitos negros querem ser brancos, muitos pobres se fingem de ricos. Eles não cogitam a possibilidade de lutar contra quem os explora, e a sua falsa sublevação ocorre através da imitação.
O que aquele cobrador queria era a sensação de poder. Naquele momento ele se sentia dono do ônibus, o meio no qual trabalha e não lhe pertence. E aquele era um dos raros momentos em que podia exercer sua autoridade e criar um dominado. Sim, ele poderia fazer uma inversão de papéis à custa de um menino negro e pobre.
É muito comum indivíduos da classe subordinada se travestirem de dominadores. Quando tomados por tal acesso histriônico eles só respeitam quem é da classe dominante, e se dirigem aos pares como subalternos. Assim acontece com alguns atendentes de lojas, por exemplo, que tratam as pessoas de acordo com a quantidade de dinheiro no cartão, mas são eles mesmos pobres.
Lembro-me da vez em que minha mãe levou Nide, uma amiga nossa de Boquim, ao hospital João Alves. A moça do atendimento tratava a todos na fila com imensa soberba, agindo como se fosse alguma autoridade do lugar, e disse para Nide e mamãe voltarem daqui a um mês. Minha mãe perguntou a ela:
-Você olhou a ficha?
-Não.
-Você sabe o que ela tem para mandar ela voltar daqui a um mês?
Os olhos da mulher saltaram ao auscultar a ficha.
-Ela tem câncer- disse mamãe, sancionando o assombro da moça.
É isso o que vejo tantas vezes. Indivíduos sem consciência de classe, e cada um no seu mundo tentando fazer outros de subordinados numa escala interminável. A busca de poder vai além da procura pelo bem comum. Um poder imaginário, sonhado através das miragens sedutoras da publicidade, ao teatro da dominação no dia a dia.
Um comentário:
vejo pessoas assim todos os dias
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