A primeira cena de Dia
dos mortos (1985), de George Romero, mostra a pesquisadora Sarah sentada
observando um calendário que apresenta uma horta com alguns pés de abóbora. Ela
se aproxima, toca a imagem com certo encantamento, até que mãos atravessam a
parede e agarram o seu corpo. Essa cena mais parece uma síntese da
temporalidade da narrativa fílmica e da relação a ser estabelecida com o
espectador: em Dia dos mortos, não existe um tempo banal da vida que transcorre,
mas somente o caos e o perigo da morte, e o olhar pertence a um corpo que está
em constante ameaça de ser devorado.
A trama de Dia dos
mortos se desenvolve num abrigo militar subterrâneo com uma crescente tensão
entre militares e pesquisadores cercados por um apocalipse zumbi. Tal como em outros
filmes da Trilogia dos mortos, como Noite dos mortos vivos (1968), em que
grande parte da ação se dá numa casa no meio do nada, e Despertar dos mortos
(1978), centrado no espaço de um shopping center, o terceiro filme da trilogia coloca
seus personagens isolados numa espaço claustrofóbico em que parece não haver
saída além da morte.
Em todas as cenas de
ataques de zumbis, o ponto de vista da câmera está do lado de quem está prestes
a ser atacado. E a montagem insere planos violentamente rápidos que tomam de
assalto o espectador, como quando Sarah sonha que seu namorado, Miguel, havia
se tornado um zumbi enquanto ela dormia. Os corpos são reduzidos à carne:
vísceras, miolos, sangue, peles sendo arrancadas, tudo diante dos olhos
atônitos dos personagens que assistem a si mesmos sendo devorados (tal como, em
certa medida, o espectador).
Numa cena, o cientista
Logan faz experimentos com um zumbi enquanto ele é observado pelos
pesquisadores por trás de um vidro, que se sobressaltam quando pensam que ele
iria atacar Logan. Dia dos mortos trabalha a partir das rupturas entre sujeito
e objeto, de uma estética do espanto diante da possibilidade de não ser mais sujeito,
de ser puramente objeto, um cadáver ambulante.
Como diz Logan, “zumbis
são como nós”, e mostra o zumbi que havia sido militar, Bub, sabendo manusear
uma arma, como um corpo que somente repete gestos e age instintivamente em
busca de carne mesmo que não precise ser alimentado. Um filme feito no final da
Guerra Fria e que mostra militares autoritários que acabam sendo devorados
pelos mortos.
O espectador que Dia
dos mortos convoca é justamente aquele que se encontra num pesadelo: com
imagens fortes, com um corpo que é um fantasma, mas que sente e sofre na pele a
pungência das imagens.
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