Não é à toa que a
personagem Jéssica, no filme Que horas ela volta?, de Anna Muylaert, saiu de
Pernambuco para ir à São Paulo prestar vestibular para Arquitetura. A
personagem, apesar de não admitir, tem plena consciência das relações conflituosas
entre mundos e de como elas se tecem a partir de distintos lugares e funções destinadas
aos corpos – lugares e funções que ela recusa, em plena rebeldia dos seus 17
anos de idade. Ela estranha o fato de sua mãe, Val, morar na casa dos patrões,
e assim que chega à residência sai explorando o espaço, pega o livro da estante
da sala emprestado, senta na cama do quarto de hóspedes e acaba indo dormir lá,
em vez de deitar no colchão no chão do apertado e quente quarto de empregada,
considerado pela mãe o seu “cantinho”. E Jéssica é o elemento que perturba o
equilíbrio anterior existente na narrativa, e seduz os integrantes de uma
família burguesa para desintegra-la defronte suas vidas vazias e fúteis, tal
como o visitante misterioso de Teorema,
de Pasolini (guardadas as devidas distinções).
A forma como Val se
relaciona com o espaço da casa dos patrões é totalmente distinta, e é assim que
ela entende e aceita os códigos da subalternidade. Nas primeiras cenas, Val dá
tudo na mão de seus patrões, que sequer se levantam para buscar comida na
geladeira, e, tanto na cena em que ela serve “doutora” Bárbara, assim como
quando coloca a mesa para “doutor” Carlos, a câmera se situa na cozinha, com o
vão da porta separando a câmera da ação. O distanciamento entre os personagens
criado através do enquadramento desenha o lugar ocupado de fato por Val: o de
subordinada, apesar de Bárbara referir-se a ela como “alguém da família”,
depois de dar uma flor para desejar boas vindas à sua filha. Esse enquadramento
lembra aquele que em Santiago, de João Moreira Salles, separava o diretor do
documentário e o personagem do filme, seu mordomo Santiago – modo de enquadrar
que o diretor, numa guinada reflexiva, analisa como distanciado e revelador de
uma relação assimétrica. Além disso, o quarto de Val localiza-se na parte
inferior e sua janela dá de frente para uma parede com uma grade; num plano em
que ela conversa ao telefone, o quadro enfatiza a grade de forma a estruturar o
espaço do quarto de Val como uma prisão.
Já Jéssica se diverte
com o fato de o filho dos patrões, Fabinho, e o seu amigo jogarem-na na
piscina. Nessa cena, a água toma conta do quadro de forma a ganhar textura, a
expressar sensações que o corpo de Jéssica era privado de sentir. Ato de
desobediência que lhe custou caro; depois de almoçar com o marido da patroa na
sala de estar, mergulhar na piscina junto com o filho foi o cúmulo. O desconforto
cresce a tal ponto que em certo momento a patroa determina que, enquanto elas não
arrumam uma casa para alugar, Jéssica só pode utilizar o espaço “da cozinha pra
lá”. Na verdade, a restrição ao espaço “da cozinha pra lá” já era uma realidade
para pessoas como sua mãe e ela, a insubordinação de Jéssica apenas “forçou” a
explicitação da hierarquia.
Progressivamente, a
personagem de Bárbara ganha contornos de vilã no filme. No entanto, há algo no
âmbito dos afetos que torna patroa e empregada semelhantes. O sentido do título
do filme vem numa cena em que Jéssica conta que, depois que a mãe foi embora
para São Paulo, sempre perguntava para sua tia que a criou “que horas ela
volta?”. A mesma pergunta que Fabinho, na primeira cena do filme, teria feito
ainda quando criança à Val, na espera pelo retorno da sua mãe. Assim, o filme
de Muylaert revela-se não apenas uma narrativa sobre classes, mas também sobre
relações familiares. Não há ali apenas algo do “conflito de classes” a partir
da banalidade cotidiana como em O som ao
redor, de Kleber Mendonça (que desse filme se afasta pelo tom revanchista),
ou da dualidade entre afetos e relações de dominação de Doméstica, de Gabriel Mascaro, mas também o melodrama e a narrativa
sobre culpa e perda que vimos em Jogo de
cena, de Eduardo Coutinho.
Após muitos anos de
resignação, Val ousa molhar os pés na piscina enquanto dá os parabéns por
telefone à sua filha por ter passado no vestibular. O ruído da água da piscina
que ela faz questão de mostrar à filha por telefone mais uma vez dá textura às
sensações que Val não podia ter. A filha promove uma transformação fundamental
na personagem, que já não cabe no quarto de empregada nos fundos da casa. Ela vai
morar junto com Jéssica e pede para cuidar do filho que ela deixou em
Pernambuco. O seu “happy end” foi ter finalmente o seu próprio espaço, o da
casa inteira, e não mais “da cozinha pra lá”.
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