domingo, maio 30, 2010
Cine(poe)ma: o Recife em O cão sem plumas e Recife de dentro pra fora
1- Documentário poético: dois gêneros de duas linguagens
Se na Antiguidade a poesia era cantada, mesmo nos versos escritos para serem lidos silenciosamente, no gênero lírico permanece uma confluência entre a palavra e a música através do ritmo, das rimas, dos refrãos, da sonoridade própria dos vocábulos (STALLONI, 2003 p.24). Essa conjunção entre música e poema se faz presente em O cão sem plumas através da musicalidade criada pela repetição de palavras, e é introduzida na estética do documentário Recife de dentro pra fora, de Kátia Mesel, que percorre as águas do Rio Capibaribe ao som do poema de João Cabral de Melo Neto cantado por Geraldo Azevedo, Zé Ramalho e Elba Ramalho.
No gênero lírico, “o poeta abandona o domínio da imitação da realidade em troca daquele da introspecção individual” (STALLONI, 2003 P.135). Ora, não é diferente no caso do documentário poético. Esse tipo de documentário vai de encontro às expectativas comuns em relação ao gênero cinematográfico definido geralmente em termos de objetividade. Tomemos a definição de Jacques Aumont e Michel Marie, no Dicionário Teórico e Crítico de Cinema: “o filme documentário tem, quase sempre, um caráter didático ou informativo, que visa, principalmente, restituir as aparências da realidade, mostrar as coisas e o mundo tal como eles são” (AUMONT e MARIE, 2003 p.86). Como observa Bill Nichols (2008, p.138-140), o documentário poético submete o mundo histórico às impressões subjetivas e fragmentadas do cineasta.
Apesar de imersos na dimensão subjetiva, tanto o poema quanto o documentário poético podem tratar de temas sociais. O documentário poético, aliás, herda do modernismo a relação lírica com o mundo histórico (NICHOLS, 2008 p.139). Vale ressaltar que João Cabral de Melo Neto é um poeta modernista e, segundo Angélica Soares (2007, p.26), “o lirismo moderno é de conteúdo explicitamente social”. Destarte, o lirismo moderno se afasta da definição de lirismo vinculada aos problemas individuais, que se distinguia assim na Antiguidade em relação à epopéia, a qual tematizava as grandes questões coletivas, para restaurar a dimensão social típica da epopéia no olhar subjetivo. Podemos observar tanto em Kátia Mesel quanto em João Cabral uma preocupação com as contradições de uma cidade como o Recife, repleta de desigualdades sociais e de dilemas entre o progresso e a natureza, a metrópole e a miséria.
O modo como o poeta João Cabral de Melo Neto observa essa realidade social é através da aproximação, assim como a cineasta Kátia Mesel chega mais perto do rio Capibaribe, do mangue, do Recife pelas lentes da câmera. Desde sempre o gênero lírico foi marcado pela “eliminação do distanciamento entre o eu lírico e o objeto cantado”, pois no lirismo ocorre tantas vezes a “fusão entre sujeito e objeto” (SOARES, 2007 p.24). Assim também ocorre no caso do documentário poético. Tomemos como exemplo o tipo de documentário designado por Jean-Claude Bernardet (2003) como modelo sociológico. Nessa forma específica de documentário, “os entrevistados são a amostragem – são o objeto da fala do locutor, que se constitui sujeito do saber” (BERNARDET, 2003 p.18). Mesmo que o documentário poético em questão não apresente entrevistados como donos da voz do filme, os moradores da periferia do Recife não são representados como exemplos de alguma verdade sociológica, nem a realidade em questão é submetida a avaliações que pretendam chegar a conclusões científicas, mas a obra busca tão somente poetizar o Recife e suas contradições sociais.
Mesel não acredita no dualismo que separa ficção e documentário, dicotomia essa que Leon Hirszman defendeu durante boa parte de sua carreira, segundo a qual a criação ficcional é produto da imaginação, ou seja, é fruto de um olhar para dentro, enquanto o processo de construção do documentário partiria de um olhar para fora (ESCOREL, 2005 p.260). A dualidade objetividade e documentário de um lado, e ficção e subjetividade de outro, não se faz presente no filme de Mesel, intitulado inclusive Recife de dentro pra fora.
Ao tentarmos distinguir o cinema e a literatura, diríamos numa primeira instância que o cinema é arte da imagem e a literatura arte das palavras. No entanto, o gênero lírico, mesmo que não apresente imagens diante dos espectadores como aquelas do cinema, brinca todo o tempo com imagens que ressoam na mente do leitor através de metáforas, comparações, metonímias (STALLONI, 2003 p.142). O processo metonímico está presente em O cão sem plumas na medida em que “não se fala mais aqui de rio, do Capibaribe, mas muito além, de todo um entorno, um modo de vida, de uma certa organização social”(GODOY, 2009 p.79). João Cabral utiliza procedimentos de derivação e transferência de significados entre vocábulos, como no modo em que rio e homens são igualados a um cão sem plumas (GODOY, 2009 p.84).
Essa união de signos que resulta em um novo significado lembra o modo como atua a própria montagem cinematográfica. Segundo Kulechov, um teórico do cinema na época da Revolução Russa de 1917, “o plano é um signo, uma letra para a montagem” (KULECHOV apud XAVIER, 1984 p.38). O chamado “efeito Kulechov” trata da forma como uma imagem absorve sentidos diferentes a partir da justaposição dos planos, posto que o significado de um plano cinematográfico é construído em sua relação com outros planos (XAVIER, 1984 p.38).
Através da confluência entre imagem e musicalidade, sujeito e objeto, da ficcionalização do real ou da realidade da ficção, da imersão no universo social por meio da própria subjetividade, Recife de dentro pra fora e O cão sem plumas poetizam o mundo histórico, ou seja, abordam-no sem perder de vista a dimensão subjetiva do olhar.
2- Rios, pontes e overdrives: manguebeat, João Cabral e cinema
“Rios, pontes e overdrives, impressionantes esculturas de lama”. Nesse trecho
da célebre música de Chico Science e Nação Zumbi vemos o espanto diante do progresso urbano e o elogio ao riquíssimo ecossistema mangue. O movimento manguebeat, surgido nos anos 90 e liderado pelas bandas Mundo Livre S.A. e Chico Science e Nação Zumbi, terminou por reanimar a auto-estima do pernambucano e influenciar também a sétima arte. No manifesto do movimento manguebeat, um press release enviado à imprensa, Fred 04, vocalista do Mundo Livre S.A. afirma:
Após a expulsão dos holandeses, no século XVII, a (ex) cidade “maurícia” passou a crescer desordenadamente às custas do aterramento indiscriminado e da destruição dos seus manguezais. Em contrapartida, o desvario irresistível de uma cínica noção de “progresso”, que elevou a cidade ao posto de “metrópole” do Nordeste, não tardou a revelar sua fragilidade (...) Mais da metade de seus habitantes moram em favelas e alagados. (ZERO QUATRO apud FONSECA, 2006 p.54)
De acordo com Gabriela Lopes (2009, p.112), os integrantes do manguebeat eram influenciados pela obra do sociólogo e médico Josué de Castro, segundo o qual o subdesenvolvimento não é a ausência de desenvolvimento, mas sim resultado das contradições, exclusões e desigualdades do próprio desenvolvimento. O manguebeat apresenta diversas referências ao bicho do mangue, o caranguejo, influência essa cara ao cientista Josué de Castro, que em sua obra Homens e caranguejos (1945) chega a afirmar que “no mangue, tudo é, foi ou será caranguejo, inclusive o homem ou a lama” (FONSECA, 2006 p.60). Não é à toa que na música Cidadão do mundo, do álbum Afrociberdelia, Chico Science grita: “Josué!”.
O movimento manguebeat, que mescla ritmos americanos a exemplo do rock e do hip hop com música popular tradicional, como o maracatu e o samba de coco, vai de encontro aos movimentos regionalista e armorial. Entre os integrantes do regionalismo estão autores como Gilberto Freyre, Rachel de Queiroz e José Lins do Rego. No manifesto regionalista, publicado em 1952, Gilberto Freyre critica o que ele chama de falso modernismo e mau cosmopolitismo, fazendo um elogio aos elementos tradicionais da cultura popular (FONSECA, 2006 p.24).
Influenciado pelo regionalismo, o movimento armorial é lançado no Recife durante a década de 70. Esse movimento liderado por Ariano Suassuna apresentava uma visão erudita da cultura popular, romantizava os seus aspectos mais tradicionais, e era contra quaisquer manifestações da cultura de massa (FONSECA, 2006 p.27). A proposta do manguebeat é completamente oposta ao movimento armorial, pois os armorialistas “não vêem com bons olhos os experimentos que traduzam essas manifestações a partir de uma roupagem contemporânea” (FIGUEIRÔA, 2000 p.116).
Tendo iniciado sua poesia com um caráter surrealista numa obra como Pedra do sono (1942), João Cabral de Melo Neto passa a compartilhar com os formalistas do modernismo da Geração de 1945 o rigor métrico e estético em sua poesia (BOSI, 1976 p.521). Segundo Alfredo Bosi, a Geração de 45 trata-se de
Uma literatura penetrada de pensamento, uma literatura que faz da auto-análise, da pesquisa do cotidiano (rústico, urbano, suburbano, marginal), do sarcasmo e da paródia o seu apoio para contrastar as ideologias dominantes; uma literatura que vive em tensão com os discursos da rotina e do poder; e que se faz e se refaz no nível da representação arduamente trabalhada da linguagem. (BOSI, 2003 p.225).
Herdeiro da poética de Drummond, sua poesia é prosaica e Cabral parece buscar uma nova dimensão do lírico “com a preocupação de desbastar suas imagens de toda ganga de resíduos sentimentais ou pitorescos, ficando-lhes nas mãos apenas a nua intuição das formas” (BOSI, 2003 p.521).
Expoente do modernismo, o poeta João Cabral de Melo Neto é tema de documentário de Kátia Mesel. Recife de dentro pra fora, no entanto, faz parte de um contexto de produções cinematográficas em Pernambuco bastante influenciadas pelo manguebeat, a exemplo de Baile Perfumado (1996), Paulo Caldas e Lírio Ferreira, Maracatu, maracatus (1995), Marcelo Gomes, Conceição (1999), Heitor Dhalia, e Amarelo Manga (2002), Claudio Assis. Como afirma Nara Aragão Fonseca (2006, p.56), “a escolha desse poema de João Cabral para representar a cidade através do rio vem da afinação do discurso do poeta com os mesmos preceitos”.
Numa tese bastante arriscada, Godoy (2009) filia o poema O cão sem plumas ao surrealismo fílmico. Se o próprio João Cabral de Melo Neto afirma “eu fui um falso surrealista”, apesar de produzir associações bastante inusitadas, o poeta não consegue mergulhar no irracionalismo e na aleatoriedade dos surrealistas, terminando por apresentar uma estranha espécie de surrealismo caracterizada pelo método e pelo sentido, mesmo que de forma peculiar. No cinema, o diretor, diferentemente do poeta, tem de lidar com uma série de aspectos que impedem uma produção ao acaso, a exemplo do extremo apuro técnico que as tecnologias utilizadas na sétima arte exigem e ainda o fato de o cineasta coordenar uma equipe, dividida inclusive em diversos setores, o que torna, assim, impossível a falta de racionalidade e método numa arte caracteristicamente industrial (GODOY, 2009 p.13). Dessa forma, Godoy (2009) tece uma relação entre o surrealismo fílmico e a associação de imagens, com a poesia de Cabral e suas associações de palavras.
3- O Recife segundo João Cabral de Melo Neto e Kátia Mesel
As cidades são as paisagens contemporâneas. O skyline de São Paulo visto do alto dos prédios alastra-se como o chão arcaico do Pelourinho. As praças de Belém circunscrevem o mesmo vazio de Brasília. As margens lamacentas do Capibaribe – diz o poeta- e o solo pedregoso de Sevilha. Manaus dos Igarapés e as cidades tomadas pela água e a bruma do pó. (PEIXOTO, 2004 p.11).
Para observar a representação do Recife no documentário Recife de dentro pra fora, inspirado no poema O cão sem plumas, utilizamos a metodologia da análise fílmica segundo Francis Vanoye e Anne Goliot Lété (2006). Os autores sugerem que a análise seja guiada por um foco do pesquisador na descrição e interpretação de determinados aspectos do material fílmico (GOLIOT-LÉTÉ e VANOYE, 2006 p.75), e no presente artigo consideramos como essencial o estudo do espaço, som e da montagem em Recife de dentro pra fora. Justificamos a escolha de tais elementos posto que a análise aborde a representação do Recife, ou seja, o espaço desvendado no filme é fundamental para a pesquisa; consideramos também o som tendo em vista que a música tocada no documentário é o próprio poema O cão sem plumas cantado por Elba Ramalho e Geraldo Azevedo; e, finalmente, a montagem é importante de ser investigada já que o processo metafórico no poema de Cabral é comparável à justaposição de imagens no curta de Mesel.
As primeiras imagens do documentário Recife de dentro pra fora apresentam João Cabral falando sobre sua relação com o rio Capibaribe. O poeta destrói alguns mitos que circundam a sua biografia, pois muitos acreditam que ele teria tomado banho nas águas do rio, que ele descreve como sujo, mangue, esgoto, enfim, inadequado para o mergulho. João Cabral ressalta que escreveu O cão sem plumas quando estava em Barcelona, o que evidencia sua visão memorialística do Capibaribe e do Recife.
Os espaços são conspícuos à obra de Cabral. A cidade penetra sua lírica de tal forma, que, muito mais do que mero cenário, adquire um significado essencial em seus poemas. Inclusive as cidades como Olinda e Sevilha são frequentemente sexualizadas pelo poeta, que fala delas iguais fossem mulheres (SARAIVA, 2002 p.334). Uma das imagens do documentário Recife de dentro pra fora mostra o corpo de uma mulher remando uma embarcação sobre o Capibaribe enquanto a música apresenta o seguinte trecho de O cão sem plumas: “Sabia seguramente da mulher febril que habita as ostras”.
Apesar de a poesia extremamente urbana de João Cabral percorrer as mais diversas cidades do poeta e diplomata, as cidades mais marcantes em sua obra são Sevilha, na Espanha, e a capital pernambucana (SARAIVA, 2002 p.329). Ao passo que o Recife é representado como um lugar de vida difícil, dados os diversos problemas sociais de uma cidade do Terceiro Mundo, enquanto que Sevilha é tematizada como lugar de vida alegre e harmoniosa, destacando-se o fato de pertencer a um país do Primeiro Mundo (SARAIVA, 2002 p.332-333). Se O cão sem plumas adota a perspectiva da denúncia social explícita, isso não quer dizer que o poeta apresente uma visão univocamente pessimista a respeito da metrópole pernambucana, pois
Apesar de parecer um pouco insatisfeito com alguns resultados desastrosos que a modernidade trouxe para o Recife, o poeta não se opõe abertamente ao desenvolvimento, desde que as relações humanas permaneçam intactas. (PINHEIRO, 2009 p.9).
O poeta não quer que os habitantes das cidades percam aquele olhar intimista dos que passeiam pelas ruas em busca de aventuras e de belas paisagens. Se Georg Simmel (1979), em seu célebre ensaio A metrópole e a vida mental, afirma que as grandes cidades são caracterizadas por uma vida econômica, ocupacional e social bastante atribulada, e seus habitantes são fustigados por uma sensibilidade marcada pelo bombardeio de estímulos, o que acaba gerando em muitos citadinos um olhar blasé, ou seja, impessoal diante dos lugares e acontecimentos. O poeta João Cabral quer recuperar a perspectiva mais pessoal, mais íntima dos que residem nas metrópoles.
É esse olhar intimista do qual fala João Cabral que Kátia Mesel recupera através das imagens do documentário Recife de dentro pra fora. As imagens do Capibaribe são em grande parte elaboradas a partir do ponto de vista do rio (FIGUEIRÔA, 2000 P.112). Mais parece que o filme segue o movimento do rio, assim como em O cão sem plumas.
A cidade é passada pelo rio
como uma rua
é passada por um cachorro;
uma fruta
por uma espada (MELO NETO, 1985 p.44).
Assim como na poesia de João Cabral “a cidade exige deslocação – a pé, a cavalo, de carro e até de avião” (SARAIVA, 2002 p.6), o documentário de Mesel também é feito pela deslocação, produzida a partir da magia criadora do movimento de câmera, através dos travellings a partir do movimento do barco. A maioria dos movimentos de câmera do documentário são travellings laterais, que, segundo Marcel Martin (2003, p.48) têm geralmente um papel de descrição do espaço. Não obstante, em Recife de dentro pra fora e encontramos “o cinema como paisagismo” e encontramos, assim como em Godard, “uma arte da paisagem, não do espaço”, pois “paisagem tem alma” (PEIXOTO, p.43).
Segundo Nelson Brissac Peixoto (2004, p.25), num mundo em que as imagens midiáticas dominam a experiência sensorial e sobrecarregam a percepção com a visibilidade, “a literatura e a pintura perderam a paisagem”. Indo de encontro a essa tendência, o curta valoriza a dimensão literária, posto que o poema é cantado durante o filme, promovendo uma impureza da arte cinematográfica sendo contaminada pela literatura. No entanto, a poesia revela o que a descrição minuciosa tenta esconder – essa impossibilidade do esgotamento do real.
A poesia então nasceria da compreensão da incapacidade de as palavras darem conta da paisagem. Ela torna disponível à invasão das nuances, torna passível ao timbre: é a escrita da descrição impossível. Da mesma maneira, a metrópole. É um lugar desprovido de situação, não tem medida nem limites. Ela não tem interior, nem exterior, ali não se está dentro nem fora, tudo é estrangeiro e nada o é. (PEIXOTO, 2004 p. 37).
O modo como estrangeiro e familiar se confundem, como a vida no mangue e a metrópole se misturam é representado no documentário de Mesel. No filme, a imagem à distância dos grandes edifícios da cidade dá lugar à de um catador de caranguejo com os braços todos sujos de lama, como se ele mesmo fizesse parte da lama. O plano seguinte apresenta um caranguejo caminhando pelo mangue. Enquanto isso, são cantados os seguintes versos do poema
onde começa o rio;
onde a lama
começa do rio;
onde a terra
começa da lama;
onde o homem,
onde a pele
começa da lama;
onde começa o homem
naquele homem. (MELO NETO, 1985 p.49).
A junção do plano do catador de caranguejo com a imagem do caranguejo percorrendo o mangue diz ao espectador o mesmo que afirma Josué de Castro, segundo o qual no mangue tudo é caranguejo, inclusive o homem e a lama. Esse processo de comparação, que inclusive está presente no poema de Cabral, é recriado no documentário de Mesel através do artifício da montagem cinematográfica. A montagem em Recife de dentro pra fora constrói o espaço e também produz significados mais profundos. Encontramos então a montagem desempenhando duas funções semânticas: a produção do sentido denotado, ou seja, da representação do Capibaribe e da sua relação com a cidade do Recife, e ainda a produção de sentidos conotados, isto é, “casos em que a montagem relaciona dois elementos diferentes para produzir um efeito de causalidade, de paralelismo, de comparação” (AUMONT, 1995 p.68).
A montagem e a música se encontram numa sintonia ao modo clássico, pois, como afirma Jacques Aumont (1995, p.60), “o filme clássico tem a tendência a apresentar sua trilha sonora e sua trilha de imagem como consubstanciais”. A música desempenha em Recife de dentro pra fora um papel lírico. O curta não apresenta um sentido óbvio nas imagens e na sua relação com o poema, e a música é uma espécie de música ambientação, como definida por Marcel Martin (2003, p.26), ou seja, ela funciona como totalidade e não se limita a ser um pleonasmo da imagem. Nessa totalidade, poema e documentário confluem no mesmo sentido a respeito da cidade do Recife. Tomemos o plano em que ouvimos os seguintes versos de O cão sem plumas:
Nada sabia da chuva azul,
da fonte cor de rosa,
da água do copo de água,
da água de cântaro,
dos peixes de água,
da brisa na água (MELO NETO, 1985 p.44).
Enquanto esses versos são cantados, vemos a imagem do esgoto desaguando no Rio Capibaribe. O rio da infância de João Cabral é bastante presente na temática do manguebeat, movimento musical com o qual o filme de Mesel dialoga, e ambos são preocupados com “a importância de preservar o estuário formado pelo encontro do rio Capibaribe com o mar” (ARAGÃO, 2006 p.54). O Capibaribe e os homens que habitam as suas margens são consubstanciais no poema. A vegetação negra é comparada ao homem negro e pobre que vive nas palafitas.
Abre-se em flores
Pobres e negras
Como negros
Abre-se numa flora
Suja e mais mendiga
Como são os mendigos negros.
Abre-se em mangues
De folhas duras e crespas
Como um negro.
A mesma comparação é produzida no documentário através da montagem: do plano da vegetação do mangue o filme conduz aos homens que moram nas palafitas na beira do Capibaribe. Esses homens são como cães sem plumas. Como diria Cabral, um cão sem plumas “é mais que um cão saqueado, é mais que um cão assassinado”. O cão sem plumas é o cão sem enfeite, sem nobreza, assim como os homens que vivem na miséria. E o filme termina com a imagem de um cão nadando a todo custo pelo rio Capibaribe.
“Como a vida que se luta cada dia, como a vida que se adquire cada dia”, dizia o poeta. Espesso como o real mais espesso. Ouvimos em Recife de dentro pra fora Elba Ramalho cantar “o que vive choca, tem dentes, arestas, é espesso”. Enquanto isso, a câmera percorre o rio Capibaribe com imagens em primeiro plano. Bem perto da sua vegetação, do fundo do rio, bem perto das flores da oferenda colocada no rio pelas mães de santo. A escolha estética do primeiro plano não é por acaso.
Entre o espetáculo e o espectador, nenhuma ribalta. Não contemplamos a vida, penetramo-la. Essa penetração permite todas as intimidades. Um rosto, sob a lupa, abre-se como a cauda do pavão, expõe sua geografia ardente... É o milagre da presença real,da vida manifesta, aberta como uma bela romã despida de sua casca, assimilável, bárbara. Teatro da pele. (EPSTEIN apud MARTIN, 2003 p.38).
4- Conclusão
Um olhar intimista diante das paisagens do Capibaribe. É essa perspectiva que Kátia Mesel e João Cabral trazem. Os lirismos do poeta e da cineasta nos levam para um olhar subjetivo sobre as contradições sociais da cidade do Recife. De dentro pra fora e de fora pra dentro, a direção do olhar é aquela que produz o encontro entre subjetividade e a realidade social.
A preocupação com a dialética entre desenvolvimento e miséria, progresso e natureza, temáticas bastantes presentes no movimento musical manguebeat, são o centro da representação do Recife em O cão sem plumas e Recife de dentro pra fora. A imagem de adolescentes pobres saltando da ponte para o rio Capibaribe em Recife de dentro pra fora enquanto um metrô, símbolo da metrópole, passa logo atrás deles, sintetiza essa contradição.
Se o poema de Cabral se conduz até os limites do sentido, ele revela o dilema da literatura de não conseguir dar conta da descrição das paisagens. É justamente por trabalhar com os limites da linguagem que a poesia expõe essa impossibilidade, ao passo que torna as descrições ainda mais enriquecedoras. De modo que o animismo das paisagens em Recife de dentro pra fora traz um novo olhar ao habitante da metrópole que havia perdido a capacidade de contemplar as paisagens. E essa contemplação, apesar de não ser pessimista, não deixa de ser extremamente crítica.
5- Referências bibliográficas
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