Às vezes eu ia ao trabalho da minha mãe para almoçarmos juntas. Sempre ao chegar, logo me dirigia à garrafa de café e me punha a escutar as histórias de Alex, técnico em enfermagem colega de mamãe. Só que uma história me chamou a atenção em especial.
Estava ele no Magg’s durante o intervalo do almoço, quando então assiste a um acidente da janela do restaurante enquanto mastigava sua refeição. Um carro sai a toda velocidade e colide com um monumento, um caju com araras desenhadas, em homenagem à Aracaju, localizado na praça em plena Beira Mar, uma das avenidas mais movimentadas da cidade. Diante dos olhares apreensivos de todos que estavam no restaurante a exigir uma providência sua, pois Alex estava vestido de branco, ele corre até o local do acidente como um herói que não sabe ao certo o que fazer.
Ao chegar à praça, observa o casal que havia sofrido o acidente discutir. A mulher chorava convulsivamente. Ela era loira, jovem e bonita. Seu marido esbravejava as mais duras ofensas, e ela mal sabia conter tamanho desespero diante dos curiosos.
- Sua louca! Você é uma louca! Por acaso queria me matar?
Enquanto ela soluçava, ele se explicava às gentes que se acumulavam ao redor do inusitado acontecimento. Dizia que sua esposa havia enlouquecido, e num momento de total descontrole ameaçara matar os dois batendo o carro. Muitos perguntavam por que ela faria isso, e ele só reafirmava que ela estava louca, devia ser internada, não sabia mais o que fazer com a mulher. O marido, sempre com postura tão ponderada, enquanto a esposa de nada mais queria saber além de chorar, sem de forma alguma se importar em confidenciar sua fraqueza diante dos valores dos passantes.
Alex havia notado desde o instante em que assistira ao carro colidir com o monumento, que não era possível aquilo se tratar de um acidente. Na verdade, era sim algo provocado, só não entendia o que levaria alguém a querer dar fim à própria vida, ainda mais de forma tão violenta.
Enquanto Alex me contava a história, eu conjeturava a respeito dos possíveis motivos que levaram a mulher a querer matar a si e ao marido. Só conseguia pensar que ela não tinha coragem suficiente para viver sem o esposo, como também não suportava mais estar com ele, e então a saída seria a morte. E seu sentimento de posse deveria ser tão intenso ao ponto de ela não permitir que houvesse vida para ele, outras mulheres, outros lugares, depois de ela falecer.
Estariam convertidos em um só. Talvez ela tivesse perdido a sua própria identidade, já não sabia onde terminava ela e começava ele, nem quais eram os limites entre os eles e o mundo. Destarte, ao ver o mundo transformado neles dois, e com o sentimento de que não poderia haver saída para aquele inferno além do fim desse mundo, preferia a morte.
Muitos psicólogos afirmam que os suicidas fantasiam a respeito de uma vida após a morte e de uma vingança através do suicídio. Eles não concebem que de fato deixarão de existir, mas imaginam que irão para um lugar melhor e ainda verão cair em desgraça as pessoas a quem querem atingir. Como um homem que se mata só para ver a namorada sofrer, pois o sofrimento dela seria a sua maior prova de amor, o deleite do amor sádico. Mal sabe ele que não poderá ter tal prazer.
Mas o que aguardava uma mulher que tenta cometer suicídio e matar o marido? Parece-me que tal expurgação aguarda uma recompensa póstuma. Ela não admitia de modo algum vê-lo viver depois de sua morte. Assim seria um maldito fantasma que retorna para fazer assombrações com passos pela casa. Entretanto, me parece que ao mesmo tempo em que ela se agarra à vida, ao acreditar que poderá presenciar alguma coisa mesmo depois de morta, ela se conduz até a morte, e uma morte que não levaria a outra vida onde estariam felizes juntos, mas ao fim, à anulação completa de ambos.
Não entendo muito bem o porquê de tal atitude, mas me interesso por tentar desvendar tanta paixão misturada com ódio levada às últimas conseqüências. Gosto de analisar as pessoas, um hábito que em verdade não me agrada, mas enfim, sei que quando ouvi essa história logo me lembrei dos filmes de Truffaut. Recordo que em A Mulher do Lado e Jules e Jim há personagens que também se suicidam e matam o objeto de desejo como findo recurso para se livrarem do que não conseguem se libertar em vida: um relacionamento frustrado que anula as suas identidades até ir ao encontro da morte, do não-ser.
2 comentários:
tenho medo de chegar a esse ponto...
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