A
primeira imagem que aparece em Sans
soleil (1983), de Chris Marker, apresenta três crianças movendo-se de mãos
dadas numa paisagem idílica na Islândia. A narradora, que lê as cartas do
viajante Sandor Krasna (o narrador das imagens que surgem no filme), recita uma
carta na qual o aventureiro afirma que gostaria de iniciar um filme com esta
imagem, que seria, para ele, a imagem da felicidade. Ela deveria ser
seguida por uma não-imagem, uma tela escura. Para o viajante, se os
espectadores não conseguissem ver a felicidade na imagem das crianças na
Islândia, ao menos eles veriam o escuro. Em La
jetée (1962), Chris Marker também
teria elaborado um personagem obcecado por uma “imagem da felicidade”: desta
vez, a imagem de uma bela mulher num aeroporto, uma recordação que o
protagonista acredita pertencer à sua infância.
Num
mundo pós-apocalíptico, devastado pela Terceira Guerra Mundial, não há
mantimentos, medicamentos, apenas cidades destruídas e radioatividade. Como não
há nem presente e nem futuro possível, a única saída para os homens é o Tempo. No
subsolo, alguns homens realizam experiências com a mente humana, e o
protagonista do filme é escolhido para uma delas. Nesse experimento, o protagonista
se envolve numa escavação pelas imagens de sua vida, criando um romance com a
bela mulher no aeroporto. La jetée,
intitulado como um foto-romance nos créditos iniciais do filme, apresenta uma
decupagem tecida a partir de fotografias. Em Ontologia da imagem fotográfica, André Bazin propunha que se a
morte é a vitória do tempo, a fotografia embalsamaria o tempo na tentativa de
eternizar um instante visto na imagem fotográfica como uma recordação. Na
concepção de Bazin, o cinema, por outro lado, seria uma espécie de “múmia da
mutação”, pela sua capacidade de registrar imagens em movimento. Assim sendo,
diante da impossibilidade do presente e do futuro num mundo pós-apocalíptico, o
que resta são as imagens que remontam a um passado perdido, como numa
fotografia, como nas fotografias que compõem a montagem do filme. A tentativa de lutar contra a morte e a catástrofe da guerra.
Vemos
imagens de uma Paris em ruínas. Apesar da atmosfera de ficção científica que
fala sobre o futuro (Terceira Guerra Mundial), o filme utiliza imagens
documentais capturadas no passado, mais precisamente no contexto pós-Segunda
Guerra Mundial. Marker cria uma diegese de ficção científica através da
justaposição entre a narração da voz over
em terceira pessoa e as imagens documentais de modo a tornar o apocalipse não uma
imagem do futuro, mas tão somente uma imagem do passado.
Durante
o experimento com sua mente, o protagonista vê imagens de plena beleza, como
passeios feitos junto com a mulher do aeroporto. Temos, neste filme, um herói
imobilizado, que aparece sentado numa cadeira com fios ligados seus olhos
recobertos. Um personagem que não age, mas sim está entregue às imagens que o
assaltam. Se lembrarmos do que Deleuze diz em A imagem-tempo, trata-se
de um personagem vidente, não um actancial.
Se,
por um lado, La jetée parece abolir o
tempo das imagens cinematográficas e retornar à temporalidade própria da
fotografia, a montagem se encarrega de conceder um ritmo às imagens e
redimi-las com o movimento. Na sequência em que o protagonista retorna à cena
em que o seu olhar observa atentamente a mulher no aeroporto, e então descobre
que, na verdade, aquele teria sido o instante da sua morte, a montagem adquire
um ritmo intenso, fazendo sucederem rapidamente, com campo e contracampo, e
numa ordem progressiva as imagens da morte do personagem.
Pouco
antes, o protagonista teria ido ao futuro, um mundo harmônico e feliz, mas
teria sido obrigado a retornar ao mundo em ruínas. Os habitantes do mundo do
futuro, que tinham uma espécie de terceiro olho, disseram-lhe que os homens
deveriam aprender com o passado. Do futuro ele não traz nenhuma imagem. Do
mundo devastado, as imagens do pós-Guerra. E um personagem que se agarra a um
instante que parece infinito. Seria essa a lição de Marker? O que nos resta são
as imagens da felicidade no instante da morte? Como a imagem da felicidade em Sans soleil: num momento posterior do
filme, Krasna afirma que aquela paisagem onde as crianças estavam teria sido arrasada
por uma erupção vulcânica. A imagem da felicidade: um instante de pura beleza
eternizado pela câmera numa luta contra a morte.
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